Folha
de S.Paulo, o jornal da ditadura pós-64
“Hoje,
eu não tenho dúvidas. Nenhum outro jornal recebeu da ditadura militar tantas
benesses, nem colaborou tanto com ela (…)”. Ouvida pelo programa Outra
Manhã em 1º/4, a jornalista e pesquisadora (PPCULT/UFF)
Flora Daemon não hesitou ao lançar a frase que, por colocar em segundo plano
outra organização jornalística, contraria a visão convencional sobre o tema. A
segurança da entrevistada apoia-se num feito notável. Dias antes, ela e outros
quatro coautores haviam lançado, em São Paulo, o livro A serviço da
repressão. Construída após ampla pesquisa documental e dezenas de
entrevistas, a obra traça um panorama vasto da colaboração entre o jornal que
cunhou o termo “ditabranda” e o regime pós-64 – inclusive os seus porões. As
informações sobre o uso de caminhões de distribuição da Folha da
Tarde para disfarçar a perseguição e o assassinato de opositores do
regime são razoavelmente conhecidas. Mas apareciam descosturadas de uma relação
mais ampla. A serviço da repressão preenche esta lacuna. A
parceria entre o Grupo Folha e a ditadura aparece como algo que começa ainda
antes do golpe, acompanha as distintas fases do período autoritário, assume
múltiplas feições e envolve uma barganha. Os afluentes empresários que dirigiram
o jornal à época colaboraram com a ditadura no plano editorial, na montagem de
“operações psicológicas” em que a esquerda era equiparada ao “terror” e no
acobertamento de operações sangrentas. Em contrapartida, podem ter recebido
apoios que resultaram na montagem de uma estrutura gráfica invejável, na
aquisição favorecida de diversos jornais atingidos pelos militares, em
modernização tecnológica e até na compra da TV mais influente à época (a
Excelsior). Tudo está documentado em A serviço da repressão. Um
dos primeiros relatos recuperados pelo livro é a publicação, em 1º de abril de
1964, de um suplemento especial que celebra o “novo Brasil” pós-golpe. Como
teria sido preparado, na era dos jornais impressos, sem o conhecimento e
participação dos proprietários da Folha na trama golpista? Que
acordos garantiram a presença, em suas páginas, de grandes anúncios, pagos por
algumas das maiores empresas brasileiras? Assim como ajuda a revelar a
articulação empresarial-midiática presente na trama do golpe, o livro fornece
elementos para compreender a participação da imprensa no ocaso da ditadura e na
transição controlada para um regime civil. Um dos capítulos narra o estímulo do
general Golbery do Couto e Silva, eminência parda do governo Geisel, à
“modernização” do jornal – que deveria distanciar-se da ditadura para não
perder influência. E revela que, embora sob nova roupagem, a Folha permanece
submissa. Em 1977, diante de um incidente menor, Otávio Frias de Oliveira,
então único proprietário do jornal, aceita a ordem para demitir Cláudio Abramo,
o chefe de redação que comandara a suposta “virada”. Por trás das palavras,
mostra o livro, há sangue. No trecho a seguir – Militares e policiais
na estrutura da empresa – os autores narram como a Folha abrigou,
no prédio de sua redação, agentes dos porões da ditadura. Tinham sala, salário,
telefone, secretária e carro. Mas sua função em nada se relacionava com a
atividade jornalística ou administrativa do jornal. Apenas acobertava o
verdadeiro papel – espionar e denunciar “elementos perigosos” – alguns dos
quais foram torturados e mortos. A serviço da repressão é fruto de
uma luta fundamental. O primeiro impulso para o livro veio de um dos braços da
Comissão da Verdade sobre a ditadura – o que investigou o papel de grandes empresas
privadas no apoio ao regime e a seu aparato repressivo. Dez grupos empresariais
foram destacados: a Folha de S.Paulo é um deles. Conhecer a
história narrada pela obra é também um ato de luta por um novo país.
- Militares e
policiais na estrutura da empresa
Nossa
pesquisa buscou avançar com as investigações sobre os já conhecidos casos de
policiais e agentes da repressão que atuaram no quadro de funcionários do Grupo
Folha (Sequeira, 2000; Kushnir, 2004; Pilagallo, 2012) e as possíveis relações
de proximidade com o regime que, a partir daí, se estabeleceram. Na primeira
parte deste livro, já descrevemos como eles atuavam, não apenas na Folha da
Tarde, mas também em outras empresas do grupo, como o Notícias Populares, a
Agência Folhas e a própria Folha de S.Paulo. Ocupavam cargos e funções
variadas. Vale lembrar o nome daqueles mais conhecidos, além de Antônio Aggio:
Carlos Dias Torres, investigador de polícia; Carlos Antônio Guimarães Sequeira,
delegado e agente do DOPS; Edson Corrêa, major da PM; Antônio Bim, delegado;
Generoso Grutilla, delegado; Horley Antonio Destro, policial; Armando Gomide,
policial; Waldemar Ferreira de Paula, policial); Messias Ayrton Scatena,
carcereiro do DEOPS; Luiz Carlos Rocha Pinto, delegado; e outros funcionários,
como Antônio Piason, Paulo Nunes e Adhemar Langhi, que tinham relações muito
próximas com a repressão. Em depoimento dado à equipe, Sebastião Ferreira da
Silva — o Ferreirinha, conhecido motorista da Folha, que trabalhou por quase
duas décadas na empresa — confirma que havia vários agentes da repressão nas
redações do grupo, em especial na Folha da Tarde: Eu não gostava muito do
pessoal da Folha da Tarde, porque lá tinha muita polícia e você não sabia quem
era. Tinham muitos que trabalhavam lá e você não sabia quem eram. Eu não sei,
eu tenho medo de falar também, porque eu ia no DOPS, eu via o que eles faziam
com as pessoas para as pessoas confessarem, enfiavam prego na… Então, eu tenho
muito receio, eu via como eles batiam nas pessoas, na parede, com jato d’água.
Eu morro de medo dessas coisas, porque eu estou velhinho. Eles vão fazer mais o
que comigo, né? Mas eu vi isso, eu vi. Isso revolta a gente. Revolta e revolta
muito. […] Estive [no DOPS], estive em tudo quanto foi lugar que você pode
imaginar. Nas Agulhas Negras, em tudo, fazendo matéria. […] Eu ia com repórter,
eu ia de motorista. Repórter, fotógrafo e eu, como motorista. Eu entrava em
tudo quanto era lugar. Ainda com relação aos agentes do DEOPS, Ferreirinha
atestou que vários trabalhavam na garagem da Barra Funda, onde ficavam os
caminhões e os carros de reportagem. Seu depoimento não deixa claro, porém, se
esses agentes eram contratados pela empresa. Ele acredita que muitos “vinham
fazer bico”, trabalhando, por exemplo, como seguranças nas portarias, à paisana:
“Tem lugar que você chega, é um policial que está lá, e você não sabe que ele é
policial”. De qualquer forma, ele afirma ter certeza de que eles estavam ali
por ordem de alguém da direção: “Não sei quem era que dava ordem para eles
trabalharem lá. Eles sabiam quem era”.
O
jornalista Sérgio Gomes da Silva, que foi repórter da Agência Folhas, também
deu um depoimento que confirma a presença de agentes da repressão na portaria
da empresa, na Alameda Barão de Limeira. Ele conta que quando voltou a
trabalhar, após sua prisão, reconheceu um carcereiro do DEOPS trabalhando como
segurança na entrada do jornal: “Aí ficou claro para mim que em todo lugar
tinha alguém”. Ele fala, ainda, sobre os policiais que trabalhavam como
jornalistas e eram, em sua maioria, funcionários da Secretaria de Segurança
Pública: se comportavam mesmo como repórteres de cadeia, repórteres de polícia
que, basicamente, davam a palavra sempre à polícia. E se transformaram em
verdadeiros policiais, traficavam notícias, informações, essas coisas […] Na
Folha da Tarde era praticamente toda a redação. Era uma redação com autonomia
para fazer um jornalismo do ponto de vista da polícia. Para Sérgio Gomes, essa
relação de proximidade do Grupo Folha com as estruturas repressivas da ditadura
não teria ocorrido sem a anuência dos dirigentes da empresa: Ninguém ia
contratar essas pessoas com o desconhecimento deles. Havia uma política de que
tinha que ter a segurança com o que de mais seguro fosse. O que tinha de mais
seguro do que contratar agente da própria polícia? […] O Frias tinha muitos
compromissos extra jornalísticos que o obrigavam a ter relações com as coisas
do poder. Outro jornalista do grupo, Oswaldo Luiz “Colibri” Vitta, afirmou que
a presença de policiais nas redações da Folha era algo comum, sendo que os editores
da Agência Folhas tinham relações de maior proximidade com delegados e agentes
de segurança da ditadura: O seu editor, da agência, sabia mais do que você que
ia no local, porque ele tinha uma relação com o delegado, ele conversava:
“Olha, você tem que escrever isso aqui, isso aqui e isso aqui”. Perguntei onde
ele pegou aquilo: “O delegado é meu amigo, falei com ele, ele me contou que
esse grupo aí, esse bando que foi preso e tal”. […] Você via que eles tinham
uma relação com o poder, no caso, com a polícia. Eles tinham uma relação muito
tranquila, eram amigos. Os caras saíam juntos, bebiam juntos no bar. Os bares
da Barão de Limeira são a prova disso, na época, que o pessoal saía junto com
os delegados. Às vezes, quebrava um galho para alguém que tinha algum problema
na polícia, o cara ficava sabendo antes, através das editorias de Polícia,
porque os editores tinham relação direta com os delegados, e os delegados eram
ligados à repressão. […] Na editoria de Polícia, o editor tinha sempre uma
relação mais direta e promíscua mesmo. Estou falando promíscua porque era uma
coisa de amigos mesmo, de ligar para o cara e saber informações e tal. E, nessa
época, você já começava a ter notícias de quem estava sendo preso. Isso era
preocupante, e todo mundo estava sob suspeição a qualquer momento. Era uma
coisa assim, um clima, o clima estava posto assim. A gente sabia disso. E a
gente convivia com esse pessoal, nem sempre numa b.
Antonio
Carlos Fon, que atuou como auxiliar de contabilidade do Grupo Folha, conta que
certos policiais e militares contratados pela empresa, alguns deles agentes do
DOI-CODI, trabalhavam com metralhadoras em cima da mesa: “A Folha vai negar
isso também? Tem gente viva para provar […]. Quem faz isso não faz jornalismo.
Quem faz isso, faz crime”. De acordo com José Luiz Proença, esses funcionários
tinham uma posição clara de defesa do governo militar: “Não era uma defesa
conceitual do empresariado ou coisa que o valha, mas era uma defesa da posição
dos militares no comando do país”. Na sua visão, os dirigentes da Folha foram
muito “inteligentes” nesta aproximação com o regime, pois souberam utilizar a
situação política como uma espécie de escudo: “Ah, não me encha o saco, porque
eu tenho aqui a Folha da Tarde”. Ao mesmo tempo, o jornalista acredita que esta
situação se deu porque os empresários acabaram ficando “meio desesperados” com
a conjuntura que se descortinava, sobretudo depois do AI-5: “Foi esse momento
de corrida de contratação de pessoal de segurança etc. Acho que aí eles abriram
as porteiras de vez. […] Eles precisavam daqueles caras lá”. O jornalista Jorge
Okubaro afirmou que a presença sistemática de policiais e militares ligados à
repressão na redação de jornais ocorreu apenas no Grupo Folha e que só “alguém
com grande poder de decisão permitiria que isso acontecesse”. Essa posição era,
na verdade, “confortável” para o Grupo Folha, já que lhe garantia benefícios
políticos e econômicos: Políticos, no sentido de que o apoio à ditadura
implicava algumas facilidades para algumas pessoas. […] E também interesses
econômicos dos controladores da empresa Folha da Manhã; era uma forma de
continuar vendendo jornal e ficar de bem com a ditadura. Eles fizeram isso,
gostosamente, e ganharam dinheiro com isso, além de terem aliviado eventuais
pressões políticas. […] A Folha tinha interesses também, de se manter em paz
com a ditadura. […] A Folha serviu gostosamente à ditadura. O resultado foi um
grande impulso de vendas, foi uma aproximação da empresa Folha da Manhã com os
órgãos mais repressivos do regime militar, no período mais repressivo do regime
militar. […] Todas as decisões lhe traziam conforto perante a parte mais
obscura do regime militar. O Grupo Folha contratou policiais e agentes de
repressão para atuarem em seus jornais em diferentes setores, como porteiros,
seguranças, repórteres e editores. Dois deles merecem destaque por conta do
cargo que ocupavam na hierarquia da repressão e em função dos papéis que
exerciam dentro da empresa jornalística. Trata-se dos irmãos Edward e Roberto
Quass, ambos delegados do DEOPS de São Paulo.
Os dois
Quass tinham prestígio dentro da instituição, tendo participado de importantes
operações de repressão às oposições. Ambos os irmãos são mencionados em um
longo relatório da Secretaria de Segurança Pública do estado sobre a Operação
Ibiúna, que resultou na prisão de centenas de estudantes que tentavam realizar
um congresso clandestino da União Nacional dos Estudantes (UNE), em 1968.
Roberto Quass aparece como tendo participado da primeira fase da operação, que
consistiu em um levantamento prévio de informações acerca do congresso. Edward
Quass, por sua vez, figura na lista dos agentes envolvidos na terceira fase da
operação, que tratava da condução do inquérito policial, caracterizado no
documento como “um dos mais volumosos de que se tem notícia”. Para os que
participaram dessa etapa, o relatório apresentava um elogio: “trabalho árduo e
estafante que exigiu, para sua elaboração, a constante dedicação das seguintes
autoridades, escrivães e investigadores”. Levando em conta a centralidade que o
caso da prisão dos estudantes de Ibiúna tem na história da repressão às
organizações de esquerda, é bastante relevante que os Quass tenham ocupado
importantes postos nessa operação. Roberto se tornou, depois, diretor de
informação do DEOPS. Os dois irmãos não eram, portanto, agentes quaisquer
dentro da estrutura da repressão. Em 30 de agosto de 2024, dia em que estávamos
fechando o texto final deste livro, o Ministério Público Federal ajuizou uma
ação na justiça contra 46 agentes da ditadura, dentre os quais está Roberto
Quass. A ação diz respeito à prisão e às torturas sofridas por Denise Peres
Crispim, companheira de Eduardo Collen Leite, o Bacuri. Denise estava grávida
de sua filha Eduarda à época das violências perpetradas contra ela. Segundo o
MPF, não há dúvida quanto às responsabilidades do réu. A inclusão de Roberto
Quass em uma ação como réu, acusado de participar das torturas a uma mulher
grávida, reforça sobremaneira a importância da investigação acerca dos laços
que ele e seu irmão mantinham com o Grupo Folha. A proximidade dos delegados do
DEOPS com Octavio Frias de Oliveira e a presença de ambos dentro da sua empresa
jornalística poderia se justificar pela ideia de que Frias e sua família
solicitaram proteção ao Estado em função dos atentados aos carros de
distribuição de jornais da Folha e das ameaças proferidas pela ALN. A presente
pesquisa, no entanto, ao cruzar datas e dados oficiais referentes à
contratação dos referidos policiais, identifica o caráter orgânico e prévio das
vinculações entre Frias e Caldeira com a família Quass.
Foi em
21 de setembro de 1971 que o Grupo Tático Armado da ALN promoveu a primeira
empreitada contra o Grupo Folha, incendiando dois carros da empresa. Em 26 de
outubro do mesmo ano, a organização queimou o terceiro veículo do jornal. Na
edição do jornal Venceremos referente aos meses de setembro,
outubro e novembro foi publicada a ameaça de justiçamento de Frias. Ao
observarmos as informações oficiais referentes à contratação de integrantes da
família Quass pelo Grupo Folha a que tivemos acesso, notamos que alguns membros
já constavam como formalmente vinculados à empresa antes dos episódios da
queima dos carros e das ameaças de justiçamento. Roberto Quass foi admitido em
1º de janeiro de 1961 como datilógrafo e recepcionista de noticiários. Joseph
Quass Filho foi contratado em 16 de agosto de 1970 como auxiliar de escritório
vinculado à direção do Grupo Folha. Joseph Quass, irmão de Roberto e Edward,
foi admitido em 16 de setembro de 1971 como auxiliar de auditoria, também
vinculado à direção da empresa. Edward Quass não apenas zelava pela segurança
dos proprietários do Grupo Folha, mas de todo o patrimônio da empresa. Ele era
chefe de segurança do grupo e trabalhava diariamente no jornal, onde tinha sala
própria e secretária. A presença desses indivíduos atesta uma problemática
relação de proximidade de Frias e Caldeira com agentes que cumpriam funções
significativas na engrenagem repressiva da ditadura. A ameaça direcionada a
Octavio Frias por membros da ALN justifica uma atenção especial por parte da Secretaria
de Segurança do Estado de São Paulo à sua família e à do seu sócio, mas não
explica a contratação, com vínculo trabalhista e remuneração direta, de
delegados do DEOPS para atuarem como funcionários da empresa jornalística,
muito menos em cargos de gestão, como era o caso do Edward Quass.
Não foi
possível saber quem convidou os integrantes da família Quass para trabalhar na
empresa Folha da Manhã S.A. É verdade que o vínculo funcional de um deles
antecede a aquisição do jornal por Frias e Caldeira. A admissão dos outros
três, no entanto, ocorreu sob a responsabilidade dos referidos empresários.
Reiteramos, nesse sentido, que Roberto e Edward Quass não devem ser
interpretados como mais dois policiais que atuavam no Grupo Folha. Eles eram
reconhecidos delegados do DEOPS de São Paulo, que acumulavam acusações a seu
respeito e exerciam um papel central na empresa jornalística no que se refere à
segurança dos dirigentes e de seu patrimônio, bem como às ações de vigilância
interna, conforme veremos. O jornalista Boris Casoy, que trabalhou como editor-chefe
da Folha de S.Paulo, confirmou, em entrevista dada à equipe, que Edward Quass
era chefe de segurança da empresa. O jornalista conta que Quass frequentava
diariamente o prédio da Folha, na Barão de Limeira, onde possuía uma sala, um
departamento próprio. Quando tinha algum problema, Boris pedia à sua secretária
para ligar diretamente para o “doutor Quass”: “Ele circulava, fazia parte da
rotina dele. Ele não era guarda, mas supervisionava se as pessoas estavam nos
lugares certos. […] Era tudo com o Quass”. O jornalista José Luiz Proença
também se recorda da presença constante do delegado Quass nas dependências da
empresa: Ele era uma pessoa que a gente via quase diariamente na entrada do
prédio, ele estava sempre por ali, conversando. Era um sujeito que frequentava
muito a sala do Aggio, ele sempre andava por lá. Algumas vezes que eu estive
lá, participando de alguma reunião junto com o Frias, a gente acabou se
cruzando (…) Você estava na Folha, o Quass estava lá, sempre estava em alguma
coisa. Várias vezes eu o vi entrando na sala do Aggio para levar alguma
notícia, levar algumas recomendações para ele. Ele era talvez o cara de ligação
mais importante. José Luiz Proença acredita que Edward Quass deveria ter algum
tipo de envolvimento, ou até mesmo uma relação direta, com o empréstimo dos
carros da empresa aos aparatos repressivos: Eu acho que ali a coisa era
decidida com o Quass. Eu acho que essa parte era a parte de ligação dele. Acho
que algum delegado falava: “A gente vai fazer uma ação assim, precisa de um
disfarce e tal”. Eu acho que era uma relação assim. O Quass, em função da
própria presença dele na empresa, acho que era um negociante nessa área. […]
esse cara estava lá para que, a ponto de dar expediente diário? Não sei se ele
participava, se ia junto e tal. Acho que nem ia, pegava um investigador da
polícia e punha como motorista. O jornalista Jorge Okubaro conta que Edward
Quass era uma pessoa importante, que tinha relações próximas com Frias e
frequentava seu gabinete Sobre a função do delegado na empresa, ele afirma:
Naquele momento, eu imaginava que seria apenas para garantir a segurança
material da empresa e a segurança pessoal dos seus funcionários. Mais tarde,
dava para entender que era também um mecanismo de relacionamento da empresa Folha
da Manhã com as forças da repressão. Era, digamos, a forma institucional pela
qual a Folha se juntava à repressão. Mas eu acho que havia outras, não era
apenas essa. O Quass talvez fosse um elemento importante do ponto de vista
estrutural. Havia outros, talvez, informais. Outras formas de contato, talvez
informais. Essa visão é reforçada pelo depoimento de Carlos Alberto Augusto
(“Carteira Preta”), investigador de polícia que atuou no DEOPS-SP e integrava a
equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury: “Eu sei o seguinte: se tinha um
delegado lá [na Folha], ele estava cumprindo missão oficial sim”. Ele afirma
que Edward Quass era um delegado de confiança da alta cúpula do regime, que
atuava em operações conjuntamente com Fleury: “Doutor Quass era informação, era
papel, o doutor Fleury era operação, era dar o bote”. Ivan Seixas também
defende que os irmãos Quass não devem ser vistos apenas pelos cargos que
ocuparam na segurança particular ou patrimonial do Grupo Folha, uma vez que
atuavam como “segurança oficial de um departamento de tortura e assassinato
chamado Departamento de Ordem Política e Social, DEOPS” e, com isso, pareciam
prestar um “serviço de troca”, abrindo portas para ambos os lados: “O Roberto
Quass era um torturador, não é uma pessoa qualquer, e ele passa a conviver
intimamente com a família do Frias. Eu não poria um cara desse dentro da minha
casa, a não ser que eu fosse amigo, a não ser que eu confiasse nele. O Frias
fez isso”.
Frei
Betto faz, a esse respeito, uma análise precisa: Uma maneira da empresa se dar
bem com o sistema era essa: deu todo espaço, assim como entregou a direção da
Folha da Tarde a policiais. A empresa queria estar bem com quem estava
mandando, e sobretudo num regime de terror, que era o que o Estado brasileiro
praticava, terrorismo de Estado. Então, a empresa queria se acobertar e por
isso empregava esse pessoal. Roberto Quass foi o responsável pela contratação
de ao menos um dos chamados “arrependidos” para trabalhar na Folha da Tarde
como jornalista. De acordo com Marcos Vinicio Fernandes dos Santos, como vimos,
“foi o Roberto Quass que me indicou para entrar lá (…). Aí eu entrei direto.
Ele era delegado do DEOPS. O Frias, dono da Folha, deixava ele fazer o que
quisesse lá”.
Nossa
investigação revelou, ainda, outra grave acusação direcionada aos irmãos Quass
e ao Grupo Folha. Trata-se do caso protagonizado por Paulo Frateschi, então
militante da ALN. Frateschi foi preso pela Oban quando tinha 19 anos, em
julho de 1969, e ficou detido no DEOPS até novembro do mesmo ano, quando o juiz
da Auditoria Militar determinou sua soltura. De acordo com ele, o processo de
libertação foi precedido por intimidações e ameaças por parte do delegado
Sérgio Paranhos Fleury, que, ao final, convocou um outro delegado para realizar
os encaminhamentos da sua soltura: Este delegado me acompanhou até a
carceragem, deu baixa nos papéis e me levou até a portaria principal do Largo
[General Osório], onde meu pai me esperava. A partir daí é que aconteceu o
inusitado. Saímos os três e caminhamos até o saguão de entrada do jornal Folha
de S.Paulo, na Barão de Limeira. Ali nos esperava outro delegado que fazia
parte da segurança do jornal. Eles se reuniram num canto e eu fiquei esperando
por alguns minutos até que me liberassem e finalmente eu pudesse sair em
companhia do meu pai. Já na calçada perguntei o que significava aquilo tudo e
por que não havia sido liderado lá no DOPS. Muito emocionado, ele pediu que eu
não perguntasse nada e que não me preocupasse. Contou apenas que o outro homem
também era delegado, que eram irmãos, e que estava tudo certo. Fiquei com a
impressão de que no jornal Folha de S.Paulo funcionava uma sucursal da
repressão. E que o meu pai havia sido achacado.
Paulo
Frateschi conta que seu pai, Nelson, vendeu naquele período um dos seus
imóveis. Ele acredita que o dinheiro da venda foi usado para pagar os delegados
naquele dia, no saguão do prédio da Folha. Seu relato apresenta revelações
graves sobre os irmãos Quass e a empresa Folha da Manhã S.A. Ainda que não seja
possível afirmar que Frias e Caldeira soubessem das extorsões promovidas contra
militantes, ambos eram responsáveis pelo que ocorria nas dependências de sua
empresa, tanto no que se refere ao uso dos carros pela repressão quanto no que
diz respeito a situações como esta, de acosso, ameaça e achaques. O fato de os
irmãos Quass utilizarem o saguão do Grupo Folha, local de ampla circulação,
para realizarem uma operação que incluía o pagamento ilegal para a soltura de
um preso político demostra o quanto a empresa havia se tornado um espaço de
livre ação para os agentes da ditadura. Não é à toa que Frateschi reconhece a
Folha como “sucursal da repressão” naquele momento. Para além dos depoimentos
coletados, a pesquisa sistematizou uma série de documentos que comprovam que
Edward Quass ocupava um cargo significativo dentro da estrutura da empresa,
atuando também, juntamente com seu irmão Roberto Quass, como segurança pessoal
dos dirigentes da Folhae seus familiares. Em relatório de 26 de setembro de
1971, localizado no Arquivo Público do Estado de São Paulo, o DEOPS-SP afirmou
ter colocado “à disposição do Dr. Edward Quass dois homens pertencentes a esta
equipe, para darem cobertura policial à residência do Sr. Carlos Caldeira
Filho”, dirigente do grupo Folha à época, “[…] incluindo também para o referido
serviço uma metralhadora de n. 70.U.76”.
Localizamos,
ainda, um inquérito produzido pelo Superior Tribunal Militar, em 1973,
envolvendo dois funcionários do grupo, que evidencia, de forma clara, como os
irmãos Quass exerciam cargos de confiança na empresa, sob o aval de seus
dirigentes, ao mesmo tempo que colaboravam sistematicamente com atividades da
repressão. O documento, disponível no acervo do site Brasil: Nunca Mais
Digit@l, versa sobre Messias Ayrton Scatena e Helena Miranda de Figueiredo,
ambos funcionários do Grupo Folha. Scatena, que também era delegado do DEOPS,
teria passado informações privilegiadas para Helena Miranda, de quem era
amante. Ela, por sua vez, teria repassado essas informações para seu namorado,
pertencente a uma organização de esquerda. Ayrton Scatena e Helena Miranda de
Figueiredo foram detidos após terem seus telefones interceptados pelo DEOPS. No
inquérito, Scatena afirmou que, além de repórter da Ultima Hora e segurança no
DEOPS, “participava de serviços de repressão, combate a subversão e
terrorismo”, tendo atuado entre cinco a dez diligências no período de três anos
em que exerceu o cargo na delegacia. O policial-jornalista disse ter uma
relação próxima com Octavio Frias de Oliveira, uma vez que trabalhava como seu
motorista pessoal e segurança de seus filhos. Afirmou, ainda, que o diretor do
Grupo Folha lhe depositava “grande confiança” e que fora liberado da função de
jornalista da empresa “para se dedicar integralmente à segurança da família
[…], sem prejuízo dos vencimentos”.
De
acordo com o inquérito, a contratação de Messias Ayrton Scatena fora
recomendada pelo seu chefe, o delegado do DEOPS-SP Edward Quass — que,
juntamente com seu irmão e também delegado de polícia, Roberto Quass, como dito
anteriormente, chefiava os serviços de segurança das empresas pertencentes ao
grupo Folha. O documento menciona a proximidade de ambos com o delegado Sérgio
Paranhos Fleury, que “também participava dos mesmos serviços e mais
especificamente relativamente a subversão e terrorismo”. Helena Miranda de
Figueiredo trabalhava na Folha desde 1962. A jornalista, conhecida como Tia
Lenita, criara e era editora do caderno infantil Folhinha e da Folha Feminina.
Foi detida na véspera do Natal de 1972 e ficou encarcerada até fevereiro do ano
seguinte. A jornalista relata que foi torturada durante quase todo o período:
Fiquei três meses apanhando de manhã, de tarde e de noite. Me quebraram sete
costelas a murro. Vinham dois pela frente e dois por trás e batiam. Aí
arrebentava tudo por dentro. Me fizeram engolir literalmente as páginas da
Folhinha. Foi horrível (…). Eles faziam uma bolinha e mandavam eu engolir. A
primeira você engole, a segunda vai, a terceira… Sangra a garganta, acho que
por isso tive esse câncer na laringe. Como no seio também. De tanto choque que
eu levei, eu perdi um seio. Isso arruinou a minha vida.
De
acordo com seu relato, as torturas na prisão só cessaram após intervenção
direta de Octavio Frias com o delegado Edward Quass: O Frias mandou o Quass,
que era segurança da Folha e investigador do DOPS. O irmão dele, o Roberto
Quass, também era do serviço de inteligência. Falou para o Quass quando ficou
sabendo: “Vá lá, e não toque mais nessa moça” (…). E acabaram as sessões de
tortura. Acho que depois fiquei mais um mês, um mês e meio. Mas nunca mais me
tocaram. Um informe do Serviço Nacional de Informações sobre Samuel Wainer, à
época diretor de redação da Ultima Hora, traz outras informações sobre a
atuação dos irmãos Quass no Grupo Folha. Em uma passagem do relatório sobre o
repórter José Maria Afonso de Souza, o SNI suspeita que ele tenha recomendado o
jornalista Humberto Kaoru Kinjô, membro da organização Polop, para um trabalho
em um jornal colombiano. Segue-se, então, o seguinte trecho: Sucedeu que
elementos de segurança do grupo FOLHAS (são do DEOPS liderados pelo Delegado
Edward Quass) descobriram sobre a mensagem enviada e o detiveram. Ele foi
levado àquela repartição policial, prestou declarações e foi liberado em
seguida. O presidente do Grupo FOLHAS, Sr Octavio Frias de Oliveira, determinou
sua demissão do cargo (grifos nossos).
Trata-se
de um trecho revelador. Indica que funcionários liderados por Edward Quass
vigiavam os jornalistas do Grupo Folha e os denunciavam, caso achassem
necessário. Aponta, ainda, que o jornalista Humberto Kinjô teria sido demitido
por Octavio Frias por motivação exclusivamente política. Outro documento
significativo é uma comunicação interna emitida pelo Departamento de
Transportes da Folha para a “Auditoria do Dr. Quass”, que informava sobre um
furto do “veículo de prefixo nº 76”, ocorrido em 8 de junho de 1972. O fato de
a empresa despachar um documento interno, direcionado a um funcionário que era
também um agente da repressão, um delegado do DEOPS, é mais uma prova material
da cumplicidade e da proximidade da empresa com o aparato repressivo da ditadura.
Para
justificar a presença de policiais e agentes da repressão em seus quadros
funcionais, o Grupo Folha costuma lembrar, em seus textos institucionais, que a
empresa também contratou profissionais de esquerda, como Cláudio Abramo, e
ligados à luta armada, como era o caso de alguns jornalistas que trabalharam na
Folha da Tarde antes de o jornal passar para o comando de Antonio Aggio. Em
texto recente, publicado após a divulgação de alguns resultados da nossa
pesquisa, o Grupo Folha buscou se desresponsabilizar por sua atuação alinhada à
repressão por meio desse mesmo argumento. O jornal reproduziu um trecho do
memorial de Oscar Pilagallo, escrito em 2005, em que ele afirma que Frei Betto
teria extrapolado o papel de jornalista: “Ele próprio declarou em Batismo
de Sangue, livro de 1982: ‘Promovido a chefe de reportagem, mantive um
setorista no DOPS que me passava informações sobre operações repressivas, de
modo a prevenir os alvos visados’”.
O fato
de o então chefe de reportagem integrar os quadros da ALN e se valer da sua
posição no jornal para lutar pelo fim da ditadura não o coloca em posição de
equivalência aos agentes de repressão e aos apoiadores do regime. Enquanto Frei
Betto buscava formas para garantir o retorno da democracia no país, figuras
como Aggio ou os irmãos Quass favoreceram, com a conivência de empresários como
Frias e Caldeira, ações que culminaram em perseguição, tortura, morte e
desaparecimento de jovens que se engajaram na luta contra a ditadura. Tal
perspectiva reducionista ficou conhecida na Argentina como “teoria dos dois
demônios” (Crenzel, 2020; Franco, 2014), e nada mais é do que a interpretação
de que os atos de violência perpetrados pela ditadura seriam, em alguma medida,
equiparáveis às ações promovidas pelas organizações guerrilheiras que lutavam
contra a repressão. Sugerir que o papel de Frei Betto, em defesa da democracia,
tem alguma similaridade com o que foi desempenhado por pessoas que colaboraram
com violações de direitos humanos revela, senão má-fé, um desconhecimento sobre
o contexto político em questão.
Fonte:
Por Autores de "A Serviço da
Repressão"/Outras
Palavras
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