Governo da Bahia usou tropa e até balaclava
em ação contra os Pataxó
Eram 5h
da manhã quando o silêncio da aldeia Vale da Palmeira, uma retomada na Terra
Indígena Barra Velha do Monte Pascoal, no extremo sul da Bahia, foi quebrado
por sons de tiros e um helicóptero. Maria de Fátima, 31 anos, estava com três
crianças em casa, quando acordou assustada ao ouvir golpes na porta. Depois viu
policiais arrombarem a entrada armados de fuzis. “Cadê o Binho? Tem armas
aqui?”, gritavam, enquanto reviravam a casa.
Outras
famílias de indígenas Pataxó viveram o mesmo no último 20 de março, quando 150
policiais civis e militares da Bahia iniciaram a Operação Pacificar, na zona
rural de Prado, para cumprir 12 mandados de prisão e sete de busca e
apreensão.
Segundo
as autoridades, a ação buscava desarticular
grupos armados de “supostos indígenas” que, “a pretexto de estarem atuando em
‘retomadas’ de territórios de seus ancestrais, agem com violência e grave
ameaça contra trabalhadores e proprietários rurais”.
Relatos
de indígenas e registros da operação, no entanto, apontam excessos das forças
da Bahia, como a intimidação de crianças, a retenção de celulares e documentos
de identidade, a destruição de bens pessoais e até o possível uso irregular de
balaclava por um “agente”, a fim de esconder sua identificação.
A Repórter
Brasil questionou a Secretaria Estadual de Segurança Pública sobre as
denúncias, mas o órgão dirigiu as perguntas à Polícia Civil da Bahia.
Procurada, a corporação não retornou até a publicação da reportagem. O texto
será atualizado se um posicionamento for recebido.
Combatidas
pelo governo de Jerônimo Rodrigues (PT), as “retomadas” são o processo de
ocupação e “autodemarcação” de terras tradicionais indígenas, que ocorrem há
quase 30 anos no sul do estado. Foi uma saída encontrada pelos Pataxó para
pressionar os governos federal e estadual pela demarcação, numa região onde as
terras são cobiçadas para atividades de agropecuária e turismo.
Muitas
vezes, as retomadas ocorrem em áreas já identificadas como indígenas, mas cuja
demarcação não foi concluída. É o caso da Barra Velha do Monte Pascoal, um
território de 44 mil hectares espalhados pelos municípios de Itabela,
Itamaraju, Prado e Porto Seguro. Parte do local é ocupado hoje por fazendeiros,
que alegam ser os proprietários. Com as retomadas, porém, as lideranças
indígenas afirmam ter recuperado mais de 70% do território, instalando 19
aldeias nelas.
Binho,
o homem que os policiais procuravam, é Nilson Berg Fonseca, o cacique da aldeia
Vale da Palmeira. Ele é conhecido também como Bacurau, nome inspirado na ave de
hábitos noturnos. O apelido não é por acaso. Ameaçado de morte por ser um dos
líderes das retomadas, ele evita sair durante o dia por já ter sido baleado
três vezes em ataques anteriores.
Enquanto
os policiais vasculhavam a aldeia, separando homens de mulheres e crianças,
aumentava o clima de terror. A mãe de Binho, Remungania Pataxó, ouviu um dos
policiais gritar: “viemos para matar o Binho. Vamos achar ele por céu ou por
terra”, relata.
No
momento em que o avistaram, o relato de Binho é de que começaram a atirar em
sua direção. O cacique diz que foi perseguido por homens “encapuzados” e “sem
uniforme da polícia”. “Estavam com roupa normal. Só gritaram: ‘Para, para,
para!’, e começaram a atirar. A minha reação foi correr mata adentro e me
esconder”, diz ele, que não foi encontrado pelos policiais.
Já quem
ficou na aldeia relata momentos de pânico. “A gente foi rendido, feito de refém
o tempo todo, com arma na cara”, conta Maria de Fátima, que estava em casa com
as três crianças, de 5, 8 e 12 anos. “Elas ficaram aterrorizadas. Não conseguem
dormir, acordam gritando de medo. Qualquer barulho que escutam, já acham que é
a polícia invadindo outra vez”, descreve.
A
operação atingiu também outras aldeias em áreas de retomada. Ao todo 20
indígenas foram presos, incluindo dois filhos do cacique Binho, Tauã Braz
Fonseca, 22, e Nauã Braz Fonseca, 23. “Meus filhos foram criminalizados por
serem filhos do cacique Bacural”, reflete Binho. Segundo os familiares, 11
jovens continuavam presos até a publicação desta reportagem.
- Policiais acusam indígenas de saquear
produtores
Os
mandados da operação foram autorizados pelo juiz Gustavo Vargas Quinamo, da
Vara Criminal de Itamaraju, atendendo a pedido da Delegacia de Polícia de Prado
e do Ministério Público Estadual da Bahia.
A
promotoria afirma na representação, obtida pela Repórter Brasil, que as
retomadas foram perpetradas por crimes como roubo, cárcere privado, esbulho
possessório, incêndio criminoso, formação de milícia privada e até tortura. O
MP afirma ainda que as ações ocorreram em grupo, com uso de armas de fogo e
táticas de intimidação, e atribui aos Pataxó o objetivo de expulsar fazendeiros
da região por meio do terror. As fazendas São Jorge, São José, Caprichosa,
Nedila e Santa Clara são algumas citadas como epicentro das tensões.
Já a
Polícia Civil da Bahia acusa os grupos
envolvidos nas retomadas de saquear produções agrícolas, roubar móveis e
veículos, e até restringir a liberdade de proprietários e trabalhadores das
fazendas ocupadas. O relatório de investigação criminal aponta também que o
armamento utilizado seria fornecido por integrantes de facções criminosas,
sendo pago “pelo volume de bens subtraídos durante as invasões”.
No
entanto, as lideranças indígenas negam as acusações e sustentam que se trata de
retomadas pacíficas de terras tradicionalmente ocupadas, e que as retomadas
ocorrem devido omissão do Estado.
“Se nos
acusam de querer o que não é nosso, que arranquem as plantações, passem o
trator sobre as casas, que tirem tudo. Queremos apenas a nossa terra, nosso
direito sagrado”, diz Naiá Pataxó.
Na
retomada Aldeia Nova, também na Barra Velha do Monte Pascoal, onde Naiá mora,
indígenas também afirmam que os agentes teriam agido com truculência. “Eles
mandaram colocar as mãos na cabeça e ajoelhar. Apontaram as armas para as
crianças, separaram os homens das mulheres. Jogaram nossas coisas no chão,
quebraram tudo e tomaram nossos celulares”, relatou a liderança.
O filho
dela, Juatã Pataxó, 18, foi um dos indígenas levados à delegacia. Embora não
tenha permanecido preso, ele conta que episódios racistas eram constantes. “Os
policiais questionaram a nossa identidade. Diziam: ‘onde já se viu índios de
cabelo enrolado’, ‘nunca vi índio preto’”, lembra. Seu irmão, Inarran Pataxó,
22, continua preso. Ele é acusado pelo MP pelos ataques à Fazenda Nedila, local
retomado pelos Pataxó há cerca de três anos.
Para o
cacique Binho, o foco da operação seria a prisão das lideranças Pataxó, e não a
desarticulação de um grupo criminoso. Ele questiona, por exemplo, a apreensão
de armas e munições pela polícia – um fuzil, uma submetralhadora, um revólver,
espingardas e diversas munições teriam sido encontrados.
“Se
realmente tivessem encontrado armas, todos estariam presos, inclusive as
mulheres, por cumplicidade. Mas não foi o que aconteceu. Eles separaram os
homens e os levaram para um galpão. Furaram os pneus dos carros, sem motivo
algum, enquanto alegavam estar procurando armas”, afirma o cacique.
O MPI
(Ministério dos Povos Indígenas) condenou em nota os atos de
violência. A pasta disse que a região vive um conflito “com múltiplas camadas”,
com “envolvimento de organizações criminosas ligadas ao tráfico de drogas e
movimentos ruralistas”, o que exige medidas urgentes para proteger os Pataxó,
“vítimas históricas de violências”.
A
Defensoria Pública Estadual afirmou que está acompanhando o caso e que
requisitou informações à corregedoria da polícia e à Secretaria de Segurança
Pública sobre a operação. “As ações da polícia não devem desrespeitar o direito
das comunidades”, diz a defensora pública estadual Aléssia Tuxá.
Para
ela, a postura do estado da Bahia no caso revela um padrão preocupante: “O
mesmo governo, que não dá respostas sobre os inúmeros indígenas assassinados no
extremo sul da Bahia no contexto da luta pelo território, reprime com dureza as
retomadas de terra em áreas em processo de demarcação”, afirma.
- Uso de balaclava pela polícia da Bahia é
alvo de críticas
Uma
estratégia da Polícia Civil da Bahia que chamou atenção dos indígenas e das
autoridades foi a presença de um homem sem fardamento e usando balaclava em
meio aos policiais, durante a operação de 20 de março.
Quando
os policiais estavam a caminho da aldeia Pé do Monte, no entorno do Monte
Pascoal, os indígenas bloquearam a estrada com árvores. Em um vídeo gravado
pela comunidade, eles questionam um policial militar sobre a presença do homem
não identificado, que vestia camiseta azul, portava um fuzil e com o rosto
coberto por uma balaclava preta. Aos Pataxó, um policial apenas diz na
gravação: “ele tá com a gente. Quem tem que saber [quem ele é] somos
nós”.
À Repórter
Brasil, lideranças indígenas alegam que o homem seria um pistoleiro que atua na
região a mando de fazendeiros. A Secretaria Segurança Pública e a Polícia Civil
da Bahia foram questionadas sobre o assunto, mas não responderam.
O
coronel reformado José Vicente da Silva Filho, da Polícia Militar de São Paulo,
ressalta que toda operação policial deve ser pública e transparente e, por
isso, a identificação dos agentes é obrigatória. “Por uma questão de
legalidade, os policiais precisam ser identificados durante suas ações. Se
houver erro ou excesso no uso da força, é fundamental que possam ser
reconhecidos e responsabilizados”, afirma.
Ele
enfatiza que, embora existam operações de inteligência em que agentes atuam sem
identificação para coletar informações, o mesmo não se aplica a ações como
essa, onde há contato direto com a população.
Sem
comentar o caso em específico, mas tratando de operações policiais de modo
geral, Mateus Moro — defensor público de São Paulo –, ressaltou que “num país
democrático, não faz sentido o policial estar com balaclava”.
Naiá
Pataxó questionou os policiais sobre o motivo da truculência, e ouviu deles que
estavam apenas cumprindo ordens a mando do Estado. “Nós temos medo da polícia!
Uma afirmação dessa é grave. Além de pistoleiros [nos atacarem], o Estado
também está atacando a gente”, observa Naiá.
Para
ela, a repressão policial busca intimidar os indígenas e enfraquecer a
resistência. “Nós não somos essas pessoas más, como dizem. Somos pessoas de
bem”, ela diz. “Meu filho está preso, meus parentes estão presos, mas eles vão
sair. E nós não vamos desistir da nossa luta”, declarou.
Para a
defensora Aléssia Tuxá, o caso expõe a crescente criminalização de lideranças
indígenas na Bahia, “infelizmente com o respaldo de autoridades públicas”.
“Estamos diante de um cenário de graves violações de direitos dos povos
indígenas no Estado brasileiro que abriga a segunda maior população indígena do
país”, finaliza.
Fonte: Repórter Brasil
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