Ser incendiário no Brasil é (mais) um crime
que compensa
Em biologia, “corrida
armamentista” é o termo usado para descrever mudanças evolutivas em uma espécie
em “resposta” a pressões de outra. O exemplo mais famoso do darwinismo de
botequim é o da gazela que desenvolve patas mais compridas para correr do leão,
que cria garras mais fortes, e assim por diante.
Na Amazônia há
indícios fortes de uma corrida armamentista em curso neste momento. Como
revelou a Agência Pública, o Ibama investiga se criminosos estão praticando uma
espécie de “desmatamento sem desmatamento”: arrancando madeira nobre de terras
invadidas e metendo fogo no resto. Dessa forma, driblam os satélites, que
detectam corte raso e alertam a fiscalização. Mas o resultado da degradação
extrema é o mesmo: uma floresta morta convertida em pasto e vendida caro para
pecuaristas.
Não seria a primeira
vez: no começo do século, quando o sistema Deter, do Inpe, entrou em ação, os
desmatadores passaram a reduzir a área total de cada derrubada, para ficar
sempre abaixo do limite de detecção do satélite, incapaz de “enxergar” cortes
menores que 60 hectares. Assim, uma derrubada de 1.000 hectares passou a se
desdobrar em 100 derrubadas de 10 hectares, por exemplo. O leão criou garras
mais fortes: a resolução do satélite aumentou. Agora a gazela criminosa parece
ter criado outra tática para escapar.
É só mais um motivo
para aumentar a pena para quem pratica queimada, que, como você lerá nesta
edição, é uma lei descumprida alegremente no país há 90 anos.
Boa leitura.
• Por que ser incendiário compensa no
Brasil?
Sem fiscalização e com
penas risíveis, lei é descumprida há 90 anos, mas novo clima impõe mudança de
estratégia.
O Brasil está em
chamas. Não é força de expressão: nas últimas 48 horas, todas as Unidades da
Federação registraram focos de calor, com Mato Grosso e Pará à frente (mais de
2.300 em cada), segundo dados do Inpe. Até 5 de setembro, o país inteiro teve
quase 148 mil queimadas, um aumento de mais de 100% em relação ao ano passado.
Na Amazônia, a quantidade de fogo é recorde desde 2010; no Cerrado, desde 2012;
no Pantanal, 2024 só perde para 2020, ano em que um quarto da maior planície
alagável dos trópicos virou cinza. A fumaça sufoca moradores de Porto Velho e
Manaus, mas não ficou confinada ao Norte: para quem chegou ontem da Patagônia,
isso que você está vendo no céu do Rio, de São Paulo e de Brasília não é
neblina.
A pior seca desde o
início do registro histórico, em 1950, é evidentemente o fator que permite o
fogo. Mas o Brasil só está queimando tanto porque há seres humanos riscando o
fósforo. Como não há chuva ou raios na maior parte do país, os incêndios são deliberados
– e frequentemente, como você lerá abaixo, criminosos.
O uso do fogo na
agropecuária é mais antigo que o Brasil; a prática milenar de povos indígenas
foi, no entanto, expandida a escalas continentais para converter ecossistemas
nativos em lavouras e pastagens. É a tecnologia agrícola mais barata do país, e
em mais de um sentido: embora desde o Código Florestal de 1934 o fogo esteja
regulado e dependa de autorização, na prática a fiscalização é muito menor do
que o número de palitos de fósforo. “A autorização prévia é solenemente
ignorada desde 1934. Deve ser a regra mais descumprida do país”, diz Suely
Araújo, coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima.
O crime compensa:
enquanto o desmatamento ilegal é punido com embargo de propriedade e corte de
crédito, a queimada ilegal, segundo a Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98),
dá no máximo quatro anos de cadeia e multa – e isso se ficar configurado dolo; para
queimada culposa a pena é de seis meses a um ano. O resultado é que pouca gente
vai presa e menos gente ainda fica presa.
Há no Congresso várias
iniciativas para aumentar a pena por incêndios, entre elas os PLs 3.304, de
2024, que prevê 6 a 10 anos de prisão, e o 4.902/2020, que propõe 4 a 8 anos, e
o PL 4902/2020, que torna incêndio em vegetação nativa crime hediondo. Existe,
ainda, uma proposta mais abrangente de revisão da Lei de Crimes Ambientais, de
autoria do então deputado e hoje presidente do Ibama Rodrigo Agostinho
(PSB-SP), que aumenta a penalidade para vários crimes (curiosamente não para
incêndios).
A mudança climática
impõe a revisão da estratégia nacional para lidar com fogo, e punições mais
severas para piromaníacos precisam ser impostas. “A gente faz papel de bombeiro
na regra, não na exceção”, diz Ane Alencar, diretora de Ciência do Ipam e uma das
maiores especialistas em incêndios florestais do país. Tradução: a lógica do
uso de brigadistas todo inverno para dar conta da situação não cabe mais no
clima atual, já que os fogos serão sempre mais disseminados, mais difíceis de
apagar e as condições climáticas favoráveis a eles durarão muito mais tempo. “A
gente cobra os estados e a União pelo combate aos incêndios, o que é correto,
mas não se trabalhou para as pessoas não usarem o fogo.”
Em tempo: derrubar o
desmatamento, como o governo fez no ano passado e neste ano, não basta, mas
ajuda a prevenir queimadas. Alencar e sua equipe estão mapeando os lugares da
Amazônia que estão em chamas e já puderam ver que houve mais queimadas onde o desmatamento
continuou.
• Grilagem repaginada
<><>
Criminosos extraem madeira e tocam fogo para enganar satélites
Um
“neoempreendedorismo” criminoso pode estar em curso na Amazônia – e ser uma das
causas ocultas da explosão de incêndios no bioma, que ocorre a despeito da
queda no desmatamento. É que revelou a jornalista Giovana Girardi, da Agência
Pública, na última quinta-feira (5), Dia da Amazônia. A hipótese, que vem sendo
trabalhada pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), é de que
os grileiros têm apostado na degradação da floresta, através da extração ilegal
de madeira seguida de queimadas, para ocupar áreas ilegalmente e escapar da
fiscalização por satélites.
A degradação – que,
como mostra o sistema de alertas Deter, do Inpe, tem aumentado nos últimos dois
anos – estaria substituindo o desmatamento como vetor de apropriação ilegal de
terras. Diferente do corte raso pelo desmatamento, a degradação perturba a
floresta e compromete suas funções originais, em um processo induzido por
retirada de madeira, pelo fogo e pelo chamado efeito de borda. Como têm
mostrado pesquisas recentes, a degradação emite tanto CO2 quanto o
desmatamento.
São processos menos
suscetíveis à fiscalização por satélites (não são pegos, por exemplo, ao
Prodes, outro sistema do Inpe). Além disso, é mais difícil provar a intenção
criminosa de incêndios e apontar responsáveis. “Essa nos parece que pode ser a
nova estratégia da grilagem de terras na Amazônia. Não desmata. Degrada e
queima”, declarou André Lima, secretário extraordinário de Controle do
Desmatamento do Ministério do Meio Ambiente, à jornalista.
• Projeto Ambição Máxima
<><> ONGs
propõem que Brasil corte 92% das emissões até 2030
Não será por falta de
aviso (e de dados) que o governo brasileiro deixará de apresentar uma meta de
redução de emissões compatível com a gravidade da emergência climática. O
Observatório do Clima publicou, no dia 26/8, a sua proposta de meta climática
para o país, mostrando que o Brasil deverá cortar suas emissões de gases de
efeito estufa em pelo menos 92% até 2035 em relação a 2005. Fruto de um
trabalho de seis meses que envolveu dezenas de organizações e se baseou na
melhor ciência disponível, a proposta de NDC (da sigla em inglês para
Contribuição Nacionalmente Determinada) indica o que o país precisa entregar em
termos de corte de emissões se quiser dar sua contribuição justa para limitar o
aquecimento da Terra a 1,5oC acima do período pré-industrial, como determina o
Acordo de Paris.
Hoje, as metas
agregadas de todos os países nos levariam a um mundo quase 3ºC mais quente,
mesmo se fossem cumpridas integralmente. O Brasil, como sexto maior emissor de
gases de efeito estufa do mundo e presidente da COP30, no ano que vem, precisa
entregar à ONU até fevereiro do próximo ano um plano climático nacional (NDC,
sigla em inglês para Contribuição Nacionalmente Determinada) ambicioso, que
inspire outros países do G20 a aumentar suas metas.
* Projeto Ambição Zero
<><> Agro
propõe que Brasil não corte mais emissões
Pra quem acha que já
viu de tudo, nesta semana um grupo de 13 representantes de alto coturno (ou
seria “alta botina”?) do dito “agronegócio moderno” nacional mandou uma
cartinha para a secretária nacional de Mudança do Clima, Ana Toni, propondo que
o Brasil simplesmente não aumente a ambição de sua meta de corte de emissões na
próxima NDC. Segundo os autores da epístola, a mitigação “penaliza” o país, já
que o Brasil nunca fez nada para esquentar o planeta (a culpa seria toda dos
combustíveis fósseis dos países ricos). “Ampliar as ambições e trazer novos
temas à mesa trará ainda mais desconfiança a este importante fórum
multilateral (…) Entendemos que o momento é de cautela na ampliação de
ambições no que tange a mitigação a nível internacional”, diz a missiva,
que entre outras coisas acusa o PPCDAm, o plano de controle do desmatamento do
governo, de “afrontar o Código Florestal”. Em entrevista ao portal AgFeed,
Pedro de Camargo Neto, um dos autores do “manifesto”, repete a ladainha de que
o agro é “vítima” da crise climática e dá uma ideia brilhante sobre como tratar
as emissões: segundo ele, as emissões das commodities que o Brasil exporta
deveriam ir para a conta dos países compradores. Alô, Xi Jinping! Olha aí como
cortar as emissões da China sem fechar nenhuma termelétrica!
• Presidente da COP29 "esquece"
fósseis em carta a delegados
O presidente da COP29,
Mukhtar Babayev, mandou uma carta a delegados de outros países e a observadores
delineando suas prioridades para a conferência do clima que começa daqui a dois
meses em Baku. No documento de nove páginas, Babayev promete que as regras para
o mercado global de carbono serão finalizadas sob seu comando (bom) e reconhece
que não há consenso político em torno da nova meta de financiamento climático
(doh!), mas que reuniões de alto nível com ministros serão feitas em setembro e
outubro para dar tratos a essa bola (bom). Nenhuma menção, porém, a
combustíveis fósseis, ou à determinação da COP28, em Dubai, de iniciar a
eliminação gradual deles ainda nesta década. Em defesa de Babayev, ele não
terminou sua missiva com os chavões preferidos de líderes em documentos do
tipo: “o tempo urge” e “o mundo está olhando”. Até porque a ditadura do
Azerbaijão não liga muito para os olhares do mundo.
Fonte: Observatório do
Clima
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