Lenacapavir: quanto custa defender a saúde
pública?
O lenacapavir, um
medicamento antirretroviral injetável desenvolvido pela farmacêutica Gilead
Sciences, recentemente fez manchetes após um teste de fase III na África do Sul
e em Uganda demonstrar sua eficácia de 100% em prevenir o HIV entre mulheres
cis e meninas adolescentes. Mesmo comemorado como um grande passo adiante na
prevenção do HIV, o lenacapavir também serve como um duro lembrete do problema
dos altos preços de remédios que podem salvar vidas.
Ainda que mais dados
desse estudo e novas pesquisas com outras populações ainda sejam necessários, o
lenacapavir já pode ser considerado o método de prevenção do HIV mais durável a
demonstrar eficácia entre mulheres – são muito limitadas as evidências da
prevenção biomédica do vírus entre este grupo. Apesar disso, o caso põe em
discussão um problema mais amplo e sistêmico na indústria farmacêutica,
dominada por grandes corporações transnacionais corriqueiramente conhecidas
como Big Pharma.
O setor farmacêutico
privado é marcado por disfuncionalidades graves. Nenhum observador honesto pode
negar que o atual sistema tem como características a falta de inovação, a
privatização dos recursos públicos (também chamado de “taxação dupla”), uma desconexão
entre as iniciativas de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) e as necessidades
da saúde pública, a escassez de tecnologias de essenciais de saúde, testes
clínicos enviesados, distorções sérias na prescrição de medicamentos e mercados
clandestinos. No entanto, um dos indicadores explícitos da falência desse
modelo são os preços exorbitantes cobrados por medicamentos, vacinas e outras
tecnologias.
• O mais próximo que já tivemos de uma
vacina do HIV, mas não é para todos
Mesmo que o
lenacapavir possa não vir a ser a melhor opção para todas as pessoas em todos
os contextos, junto de outras formulações farmacêuticas de profilaxia
pré-exposição (PrEP, na sigla em inglês) de ação duradoura, ele tem o potencial
de ser crucial para pacientes que enfrentam dificuldades para tomar uma pílula
diária. Tomado na forma de uma injeção por semestre, esse medicamento pode
melhorar a adesão ao PrEP para muitos, que seriam beneficiados por esse novo
regime terapêutico. Por esse motivo, ele tem sido descrito como “o mais próximo
que já tivemos de uma vacina do HIV”. Contudo, como a história já mostrou
diversas vezes, os avanços científicos não bastam por si mesmos – as inovações
médicas costumam ser inacessíveis para os que mais precisam delas.
A Gilead diz que está
muito cedo para pôr um preço no lenacapavir para a prevenção. Apesar disso,
dada a história da empresa e suas práticas correntes, podemos esperar o pior.
Enquanto o custo de produção desse remédio é estimado em 40 dólares anuais por
paciente – incluída uma margem de lucro de 30% –, o lenacapavir está sendo
vendido a 42.250 dólares anuais por paciente para o tratamento de HIV. Isso
significa que a Gilead está cobrando mais de mil vezes o custo de produção, um
exemplo claro de preço abusivo completamente desconectado das verdadeiras
despesas.
<>< >
Soluções falsas
Quando buscamos
confrontar esse problema concreto, diversas falsas soluções costumam surgir. Os
burocratas dos mais variados setores da sociedade – organizações multilaterais,
governos, setor privado, academia e ONGs – têm a tendência de recair nas mesmas
fórmulas ineficazes e perigosamente irresponsáveis.
Os mais extremistas
sugerem que devemos simplesmente esperar e confiar na promessa da Gilead de
formular “uma estratégia que permita o acesso amplo e sustentável a nível
global”. Outros, um pouco mais firmados na realidade, propõem que os governos
nacionais “negociem” descontos com a fabricante ou, se necessário, paguem os
exorbitantes preços impostos. Nesse cenário, os pacientes teriam acesso
gratuito aos remédios e os governantes poderiam cumprir com seus deveres.
Porém, se um governo não tiver condições de pagar nem o preço com desconto, a
única opção que restaria seria aguardar doações de caridade, seja da própria
empresa ou de bilionários benevolentes.
Outros ainda defendem
esperar, “implorar” ou, no melhor dos casos, pressionar por licenças
voluntárias das patentes do lenacapavir. Isso significa depender da esperança
de que a empresa permitirá que fabricantes de genéricos produzam e vendam o
medicamento a um preço mais baixo para os países de renda média e baixa,
incluindo os chamados “países de renda média-alta”, como o Brasil.
Essa abordagem costuma
ser retratada como uma solução mais realista e refinada para os desafios que o
setor farmacêutico privado impõe, mas ela também é um caminho falso e perigoso.
Coberta de propaganda enganosa e de uma visão sem imaginação para o futuro,
essa narrativa ignora estrategicamente as consequências negativas das licenças
voluntárias: entre elas, a segmentação geográfica (são excluídos da licença
nações com alta incidência da doença), o controle sobre a concorrência, a
imposição de condições abusivas sobre as empresas de genéricos e a população
(exigências anti-desvio antiéticas) e atrasos regulatórios ou bloqueios
orquestrados pelas próprias empresas desenvolvedoras dos fármacos.
Essa narrativa também
ignora outros problemas das licenças voluntárias, como os monopólios de fato
(que se impõem a despeito das proteções patentárias), o desestímulo à oposição
a patentes por parte de empresas de genéricos e laboratórios públicos, os obstáculos
às licenças compulsórias, a legimitação dos altos preços nos países excluídos e
o reforço do sistema patentário e da imagem pública das corporações. Acima de
tudo, ignora-se a hierarquização imoral da vida humana.
Essas soluções falsas
têm uma lógica em comum: todas oferecem propostas superficiais e específicas
para enfrentar problemas sistêmicos e estruturais, faltando a urgência, a
coragem e a imaginação necessárias para conquistar transformações reais. Essas
visões convenientemente ignoram as dinâmicas do poder e da política,
favorecendo uma abordagem “técnica” que evita a todo custo o conflito com a Big
Pharma, o que leva a uma desvinculação com o sofrimento dos povos e a uma
dependência excessiva das vontades da indústria farmacêutica.
Seguir trilhando esse
velho caminho só poderá nos levar aos mesmos velhos resultados. Já esquecemos o
que aconteceu com o sofosbuvir, o dolutegravir, o cabotegravir, o remdesivir e
muitos outros medicamentos que salvam vidas e continuam arbitrariamente inacessíveis
para milhões? Esquecemos que todas essas estratégias falharam, mesmo quando
foram vendidas como grandiosas vitórias? Poderemos arcar com esses resultados
mais uma vez, no caso do lenacapavir? Como diz o ditado, “a loucura é continuar
fazendo a mesma coisa e esperar resultados diferentes”.
Tendo isso em mente, o
primeiro passo é reconhecer a necessidade urgente de abandonar as fórmulas
simplistas e começar a discutir soluções reais para as distorções causadas
pelas corporações transnacionais. Nesse contexto, sem simplificar demais o
problema ou agir de forma enviesada por conflitos de interesse, muitos atores –
como redes, movimentos sociais, organizações da sociedade civil, pacientes,
cientistas, ativistas e acadêmicos – indicam que a criação, a proteção e a
expansão das farmacêuticas públicas (ou, em inglês, Public Pharma) é, no
mínimo, um componente crucial de uma solução real.
<><> Por uma Farmacêutica Pública
Em oposição à Big
Pharma, a Public Pharma pode ser entendida como uma infraestrutura estatal
dedicada à pesquisa, desenvolvimento, fabricação e/ou distribuição de produtos
farmacêuticos e outras tecnologias de saúde. Ela abarca todos os arranjos
institucionais em que o Estado tem poder decisório real e pode estabelecer uma
governança orientada pelas necessidades da saúde pública. Isso não inclui, por
exemplo, Parcerias Público-Privadas (PPPs) ou outros arranjos em que os Estados
meramente utilizam os recursos públicos para tirar o risco de empreitadas
comerciais.
Um excelente exemplo
de criação de novas infraestruturas farmacêuticas públicas é o Instituto Salk
da Europa, proposto pela organização belga Médicos para o Povo. A proteção da
Public Pharma já existente pode tomar muitas formas, como, por exemplo, a defesa
dos laboratórios públicos da austeridade, como foi feito com a Fiocruz e outros
entes públicos no Brasil. No mesmo sentido, as oportunidades de expansão da
Public Pharma podem envolver uma variedade de instituições públicas ao redor do
mundo concentradas em determinadas tecnologias de saúde, estágios de produção
ou doenças específicas.
Na prática, a Public
Pharma tem o potencial de viabilizar a fabricação pública de medicamentos
específicos – como o lenacapavir – ao mesmo tempo que impulsiona a capacidade
estatal de produzir uma ampla gama de tecnologias essenciais em saúde. As
farmacêuticas públicas podem facilitar a pesquisa, o desenvolvimento, a
fabricação e a distribuição de insumos em saúde orientadas exclusivamente pelas
necessidades da saúde pública, assegurando alta qualidade, sustentabilidade,
transparência e acessibilidade. A Public Pharma também pode promover a
cooperação internacional e reforçar a soberania sanitária ao reduzir a
dependência das corporações transnacionais. Por fim, ela pode dar aos Estados o
poder de se envolver em negociações reais de preço de medicamentos com o setor
privado, aplicar as salvaguardas do Acordo TRIPS (em especial, as licenças
compulsórias) e honrar, em termos éticos, as contribuições das pessoas que
participam de pesquisas clínicas.
As farmacêuticas
públicas, é claro, não são uma panaceia. Mas são um passo ousado em direção à
retomada de nossos sistemas de saúde das garras da ganância corporativa. Para
enfrentar de verdade essa crise, precisamos fazer mais do que meramente
“balancear” um sistema falido – devemos desafiar a ortodoxia neoliberal que
torna as patentes sacrossantas, desmantelar a hegemonia neocolonial da Big
Pharma e retomar o poder de determinar nossos próprios futuros. É o início de
uma transformação necessária e urgente. Para defender as gerações atuais e
futuras, precisamos ter a coragem de forjar um novo caminho, que põe a vida
sobre os lucros. A hora de agir é agora, e não podemos correr o risco de
fracassar.
Fonte: Por Alan Rossi
| Tradução: Guilherme Arruda, em Outra Saúde
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