sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Lenacapavir: quanto custa defender a saúde pública?

O lenacapavir, um medicamento antirretroviral injetável desenvolvido pela farmacêutica Gilead Sciences, recentemente fez manchetes após um teste de fase III na África do Sul e em Uganda demonstrar sua eficácia de 100% em prevenir o HIV entre mulheres cis e meninas adolescentes. Mesmo comemorado como um grande passo adiante na prevenção do HIV, o lenacapavir também serve como um duro lembrete do problema dos altos preços de remédios que podem salvar vidas.

Ainda que mais dados desse estudo e novas pesquisas com outras populações ainda sejam necessários, o lenacapavir já pode ser considerado o método de prevenção do HIV mais durável a demonstrar eficácia entre mulheres – são muito limitadas as evidências da prevenção biomédica do vírus entre este grupo. Apesar disso, o caso põe em discussão um problema mais amplo e sistêmico na indústria farmacêutica, dominada por grandes corporações transnacionais corriqueiramente conhecidas como Big Pharma.

O setor farmacêutico privado é marcado por disfuncionalidades graves. Nenhum observador honesto pode negar que o atual sistema tem como características a falta de inovação, a privatização dos recursos públicos (também chamado de “taxação dupla”), uma desconexão entre as iniciativas de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) e as necessidades da saúde pública, a escassez de tecnologias de essenciais de saúde, testes clínicos enviesados, distorções sérias na prescrição de medicamentos e mercados clandestinos. No entanto, um dos indicadores explícitos da falência desse modelo são os preços exorbitantes cobrados por medicamentos, vacinas e outras tecnologias.

•        O mais próximo que já tivemos de uma vacina do HIV, mas não é para todos

Mesmo que o lenacapavir possa não vir a ser a melhor opção para todas as pessoas em todos os contextos, junto de outras formulações farmacêuticas de profilaxia pré-exposição (PrEP, na sigla em inglês) de ação duradoura, ele tem o potencial de ser crucial para pacientes que enfrentam dificuldades para tomar uma pílula diária. Tomado na forma de uma injeção por semestre, esse medicamento pode melhorar a adesão ao PrEP para muitos, que seriam beneficiados por esse novo regime terapêutico. Por esse motivo, ele tem sido descrito como “o mais próximo que já tivemos de uma vacina do HIV”. Contudo, como a história já mostrou diversas vezes, os avanços científicos não bastam por si mesmos – as inovações médicas costumam ser inacessíveis para os que mais precisam delas.

A Gilead diz que está muito cedo para pôr um preço no lenacapavir para a prevenção. Apesar disso, dada a história da empresa e suas práticas correntes, podemos esperar o pior. Enquanto o custo de produção desse remédio é estimado em 40 dólares anuais por paciente – incluída uma margem de lucro de 30% –, o lenacapavir está sendo vendido a 42.250 dólares anuais por paciente para o tratamento de HIV. Isso significa que a Gilead está cobrando mais de mil vezes o custo de produção, um exemplo claro de preço abusivo completamente desconectado das verdadeiras despesas.

<>< > Soluções falsas

Quando buscamos confrontar esse problema concreto, diversas falsas soluções costumam surgir. Os burocratas dos mais variados setores da sociedade – organizações multilaterais, governos, setor privado, academia e ONGs – têm a tendência de recair nas mesmas fórmulas ineficazes e perigosamente irresponsáveis.

Os mais extremistas sugerem que devemos simplesmente esperar e confiar na promessa da Gilead de formular “uma estratégia que permita o acesso amplo e sustentável a nível global”. Outros, um pouco mais firmados na realidade, propõem que os governos nacionais “negociem” descontos com a fabricante ou, se necessário, paguem os exorbitantes preços impostos. Nesse cenário, os pacientes teriam acesso gratuito aos remédios e os governantes poderiam cumprir com seus deveres. Porém, se um governo não tiver condições de pagar nem o preço com desconto, a única opção que restaria seria aguardar doações de caridade, seja da própria empresa ou de bilionários benevolentes.

Outros ainda defendem esperar, “implorar” ou, no melhor dos casos, pressionar por licenças voluntárias das patentes do lenacapavir. Isso significa depender da esperança de que a empresa permitirá que fabricantes de genéricos produzam e vendam o medicamento a um preço mais baixo para os países de renda média e baixa, incluindo os chamados “países de renda média-alta”, como o Brasil.

Essa abordagem costuma ser retratada como uma solução mais realista e refinada para os desafios que o setor farmacêutico privado impõe, mas ela também é um caminho falso e perigoso. Coberta de propaganda enganosa e de uma visão sem imaginação para o futuro, essa narrativa ignora estrategicamente as consequências negativas das licenças voluntárias: entre elas, a segmentação geográfica (são excluídos da licença nações com alta incidência da doença), o controle sobre a concorrência, a imposição de condições abusivas sobre as empresas de genéricos e a população (exigências anti-desvio antiéticas) e atrasos regulatórios ou bloqueios orquestrados pelas próprias empresas desenvolvedoras dos fármacos.

Essa narrativa também ignora outros problemas das licenças voluntárias, como os monopólios de fato (que se impõem a despeito das proteções patentárias), o desestímulo à oposição a patentes por parte de empresas de genéricos e laboratórios públicos, os obstáculos às licenças compulsórias, a legimitação dos altos preços nos países excluídos e o reforço do sistema patentário e da imagem pública das corporações. Acima de tudo, ignora-se a hierarquização imoral da vida humana.

Essas soluções falsas têm uma lógica em comum: todas oferecem propostas superficiais e específicas para enfrentar problemas sistêmicos e estruturais, faltando a urgência, a coragem e a imaginação necessárias para conquistar transformações reais. Essas visões convenientemente ignoram as dinâmicas do poder e da política, favorecendo uma abordagem “técnica” que evita a todo custo o conflito com a Big Pharma, o que leva a uma desvinculação com o sofrimento dos povos e a uma dependência excessiva das vontades da indústria farmacêutica.

Seguir trilhando esse velho caminho só poderá nos levar aos mesmos velhos resultados. Já esquecemos o que aconteceu com o sofosbuvir, o dolutegravir, o cabotegravir, o remdesivir e muitos outros medicamentos que salvam vidas e continuam arbitrariamente inacessíveis para milhões? Esquecemos que todas essas estratégias falharam, mesmo quando foram vendidas como grandiosas vitórias? Poderemos arcar com esses resultados mais uma vez, no caso do lenacapavir? Como diz o ditado, “a loucura é continuar fazendo a mesma coisa e esperar resultados diferentes”.

Tendo isso em mente, o primeiro passo é reconhecer a necessidade urgente de abandonar as fórmulas simplistas e começar a discutir soluções reais para as distorções causadas pelas corporações transnacionais. Nesse contexto, sem simplificar demais o problema ou agir de forma enviesada por conflitos de interesse, muitos atores – como redes, movimentos sociais, organizações da sociedade civil, pacientes, cientistas, ativistas e acadêmicos – indicam que a criação, a proteção e a expansão das farmacêuticas públicas (ou, em inglês, Public Pharma) é, no mínimo, um componente crucial de uma solução real.

<><>  Por uma Farmacêutica Pública

Em oposição à Big Pharma, a Public Pharma pode ser entendida como uma infraestrutura estatal dedicada à pesquisa, desenvolvimento, fabricação e/ou distribuição de produtos farmacêuticos e outras tecnologias de saúde. Ela abarca todos os arranjos institucionais em que o Estado tem poder decisório real e pode estabelecer uma governança orientada pelas necessidades da saúde pública. Isso não inclui, por exemplo, Parcerias Público-Privadas (PPPs) ou outros arranjos em que os Estados meramente utilizam os recursos públicos para tirar o risco de empreitadas comerciais.

Um excelente exemplo de criação de novas infraestruturas farmacêuticas públicas é o Instituto Salk da Europa, proposto pela organização belga Médicos para o Povo. A proteção da Public Pharma já existente pode tomar muitas formas, como, por exemplo, a defesa dos laboratórios públicos da austeridade, como foi feito com a Fiocruz e outros entes públicos no Brasil. No mesmo sentido, as oportunidades de expansão da Public Pharma podem envolver uma variedade de instituições públicas ao redor do mundo concentradas em determinadas tecnologias de saúde, estágios de produção ou doenças específicas.

Na prática, a Public Pharma tem o potencial de viabilizar a fabricação pública de medicamentos específicos – como o lenacapavir – ao mesmo tempo que impulsiona a capacidade estatal de produzir uma ampla gama de tecnologias essenciais em saúde. As farmacêuticas públicas podem facilitar a pesquisa, o desenvolvimento, a fabricação e a distribuição de insumos em saúde orientadas exclusivamente pelas necessidades da saúde pública, assegurando alta qualidade, sustentabilidade, transparência e acessibilidade. A Public Pharma também pode promover a cooperação internacional e reforçar a soberania sanitária ao reduzir a dependência das corporações transnacionais. Por fim, ela pode dar aos Estados o poder de se envolver em negociações reais de preço de medicamentos com o setor privado, aplicar as salvaguardas do Acordo TRIPS (em especial, as licenças compulsórias) e honrar, em termos éticos, as contribuições das pessoas que participam de pesquisas clínicas.

As farmacêuticas públicas, é claro, não são uma panaceia. Mas são um passo ousado em direção à retomada de nossos sistemas de saúde das garras da ganância corporativa. Para enfrentar de verdade essa crise, precisamos fazer mais do que meramente “balancear” um sistema falido – devemos desafiar a ortodoxia neoliberal que torna as patentes sacrossantas, desmantelar a hegemonia neocolonial da Big Pharma e retomar o poder de determinar nossos próprios futuros. É o início de uma transformação necessária e urgente. Para defender as gerações atuais e futuras, precisamos ter a coragem de forjar um novo caminho, que põe a vida sobre os lucros. A hora de agir é agora, e não podemos correr o risco de fracassar.

 

Fonte: Por Alan Rossi | Tradução: Guilherme Arruda, em Outra Saúde

 

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