Justiça negacionista!!! Denunciar a
ignorância é crime ou 'de como ser negacionista dá prêmio'
Há vários modos de
contar uma história. Ou um fenômeno. Poste mijando nos cachorros é uma boa
imagem para mostrar quando um néscio quer dizer para um cientista que a terra é
plana. O resto vocês imaginam. A propósito: chamar de burro ou imbecil quem
defende o terraplanismo é crime? Ou é um ilícito civil? É proibido xingar
terraplanistas?
Antigamente os
analfabetos e ignorantes tinham vergonha de si. Hoje viram influencers e vendem
ora-pro-nóbis (agora é moda) e
quejandices. Ou simplesmente, via autoajuda, ganham dinheiro com a miséria dos
incautos.
Quando vem alguém com
conhecimento e fulmina a estultice, corre o risco de ser processado. E
condenado. Quem duvida é louco, como se diz em Agudo.
Foi o que aconteceu
com a bióloga Ana Bonassa e a
farmacêutica Laura Marise, criadoras do canal Nunca Vi 1 Cientista, que foram
condenadas a indenizar, por danos morais (sic), o nutricionista André Luis
Lanca, após contestarem publicamente uma postagem dele que associava diabetes à
presença de vermes no corpo.
“Estamos cansadas,
porque apesar de o público estar a nosso favor, um processo é exaustivo”,
afirma Bonassa em entrevista à Folha de S.Paulo. “Não fomos as primeiras e nem
seremos as últimas a serem processadas, mas é nossa responsabilidade mostrar
que esse tipo de decisão está sendo tomada no Judiciário.” Bingo, Ana e Laura.
Estamos juntos. Enfrento esse tipo de coisa no Direito também.
A indenização de R$ 1
mil faz parte da decisão da juíza Larissa Boni Valieris, da 1ª Vara do Juizado
Especial Cível (JEC) de São Paulo. As divulgadoras científicas vão recorrer da
decisão.
Sendo bem simples: as
biólogas simplesmente postaram vídeo alertando as pessoas de que o que o
nutricionista dizia era falso. Isto é, um negacionismo. Afinal, vermes atacam o
pâncreas e isso causa o diabetes? Que coisa, não?
As biólogas, que
deveriam ser premiadas pela denúncia (fiquei fã delas), foram castigadas pelo
sistema Judiciário. Provavelmente algum estagiário dos juizados estava
treinando como fazer sentenças. Só assim podemos acreditar que o Judiciário
tenha dado guarida para a anticiência.
• Vergonha pode salvar
Ora, quantas vítimas
tivemos com o negacionismo de vacinas? E agora temos de aguentar alguém que diz
que o diabetes se origina de vermes no pâncreas? Como se diz no Rio Grande do
Sul, vão se afumentar.
O “crime” das biólogas
foi dizer que diabetes não tem relação com vermes. “Se você vir alguém
propagando isso, denuncie e bloqueie. Porque isso é desinformação e está
chegando forte para vender curso“. Elas
estavam prestando um serviço público. A favor da saúde. Mas o juizado que as
condenou não pensa assim.
Para que o famoso
(sic) nutricionista não me processe também – não duvidemos; hoje em dia tudo é
possível, porque o Judiciário é o lugar em que o sujeito corre sozinho e corre
o risco de chegar em segundo –, trago a meu favor a Sociedade Brasileira de Diabetes,
a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, a Associação Brasileira
de Estudo da Obesidade e o Conselho Federal de Nutrição, que divulgaram uma
nota de esclarecimentos e orientações sobre o diabetes.
“Trata-se de uma
condição clínica, crônica e sem cura, que pode ser acompanhada de complicações
impactantes”, dizem as entidades. “Portanto, é de suma importância que essas
pessoas estejam totalmente engajadas no tratamento adequado.” Ou seja, estou
bem calçado.
Veja-se o problema do
conceito de vergonha (a juíza que sentenciou deveria ler o best seller de Kwame
Appiah, O Código de Honra, em que mostra como algumas práticas envergonhantes
foram abandonadas a partir do constrangimento que causavam. O constrangimento é
uma arma poderosa. Foi isso que as biólogas fizeram, senhora juíza.
Explicando o Código de
Honra de Appiah: durante mais de mil anos os pés das meninas chinesas eram
atados, para que não crescessem e ficassem pequenos e delicados, em torno de
7,5 centímetros. A prática durou mais de mil anos e acabou em rápidos 20.
Appiah pesquisou e
descobriu que outros países estavam se inteirando desse hábito chinês e o
repudiavam. Isso constrangeu enormemente os chineses. E foi decisivo. Assim
também ocorreu com os duelos na Inglaterra. As práticas causavam vergonha. E
isso feria um código de honra da humanidade.
No caso, a exposição
de quem espalha fake news medicinais faz bem. O que as biólogas fizeram foi
parecido com o que se fez expondo as práticas de mutilar os pezinhos das
crianças chinesas. Ou a vergonha dos duelos.
Appiah, com seu Código
de Honra, mostra como a vergonha pode salvar. Ora, no caso a juíza entendeu o
contrário. Para ela, o nutricionista foi submetido a “vergonha e tristeza” e
teve seus dados divulgados “sem autorização” em “rede social de amplo alcance”
— o perfil Nunca Vi 1 Cientista tem 455 mil seguidores.
Incrível (no sentido
de “inacreditável). O profissional tem um blog ou site. Anuncia cursos e
produtos. Coloca sua vida na tela. Diz uma flagrante mentira sobre uma doença
que não tem cura (diabetes). É desmentido por duas profissionais com excelente
currículo.
E o Judiciário diz que
as denunciantes é que o expuseram e lhe causaram vergonha e tristeza? Seria
como processar e condenar quem criticasse a tortura nos pezinhos das chinesas,
para lembrar o best seller de Appiah.
Atenção: o TSE e o
próprio Judiciário têm incentivado o combate à desinformação. Fake news são uma
praga. Fake news matam. Ora, escrever contra vacina na pandemia não foi
desinformação? Se foi (e é), qual é a diferença com a venda de curso ou
qualquer coisa do tipo espalhando que o que causa o diabetes são vermes?
Perdemos nossa capacidade de crítica? Perdemos nossa capacidade de indignação?
Cachorro urina no
poste? A ciência não vale nada? Não, não respondam. A pergunta tem um quê de
retórica. Desse jeito, logo vai ter passeata contra antibióticos e alguém vai
dizer que chá de carqueja é que cura tuberculose. “Fora com a ciência.” “Fora
com tratamentos científicos.”
O repto
antinegacionista é: diabéticos de todo o mundo, uni-vos contra os vermes.
Como muitíssimo bem
disseram os pesquisadores Pedro Arantes , Soraya Smaili , Maria Angélica
Minhoto e Letícia Sarturi, em artigo na Folha em que passam a régua no assunto:
“O verme do
negacionismo se alastra como fogo em mato seco: mas sem deixar um rastro
visível de fumaça, serão mortes de difícil contabilização”.
E mais não precisa ser
dito.
Fonte: Por Lenio Luiz
Streck, na Conjur
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