Gastos ambientais não deveriam entrar no
arcabouço fiscal
O Brasil arde em
chamas. E não é só o fogo que consome nossas florestas. É também a omissão
estrutural e deliberada dos governantes, que, presos às regras de austeridade
fiscal, repetem que “não há recursos” para combater a destruição ambiental.
A deterioração do
orçamento federal destinado ao meio ambiente reflete essa lógica perversa, onde
a austeridade é tratada como um dogma, enquanto a realidade arde diante de
nossos olhos. O mesmo tipo de corte orçamentário foi visto na prevenção às
enchentes no Rio Grande do Sul, no início do ano.
Responsabilidade
fiscal não se faz com irresponsabilidade ambiental
O orçamento atual do
Ministério do Meio Ambiente ainda é inferior ao observado durante a gestão
Temer e até mesmo no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, que foi marcado
por uma agenda de absoluto e agressivo negacionismo climático.
Os dados das últimas
duas décadas deixam claro que, conforme a destruição ambiental aumenta, os
recursos destinados a combatê-la sofrem uma queda estrutural alarmante,
agravando ainda mais a situação.
Apesar disso, o
discurso do mercado financeiro e de seus representantes, tanto na grande
imprensa quanto nos últimos governos, continua o mesmo roteiro previsível: “não
podemos gastar mais, há um risco fiscal a ser considerado”.
Risco fiscal? O que
realmente enfrentamos é uma tragédia ambiental já em andamento, com a
degradação visível dos ecossistemas e o abandono de qualquer responsabilidade
socioambiental nas políticas fiscais.
Diante das queimadas
atuais, a resposta tem sido mínima: o ministro do Supremo Tribunal Federal
Flávio Dino fez o que pôde: liberou crédito extraordinário. Um gesto
importante, mas insuficiente diante da gravidade da crise. E o mais
preocupante: não há qualquer sinal de que haverá uma mudança estrutural.
As atuais queimadas
são apenas o sintoma visível de uma crise mais profunda: a crise estrutural do
capitalismo neoliberal, cujo projeto passa por desmontar o estado,
especialmente em seu papel de proteção social e ambiental. Para consolidar esse
desmonte, as políticas de austeridade fiscal são a ferramenta central.
Nos países
periféricos, como o Brasil, essa realidade é ainda mais drástica. O país está
preso a uma lógica extrativista e destrutiva, liderada por um agronegócio que
se autoproclama “motor da economia”, mas que na verdade age como o maior
destruidor do nosso futuro.
E, associado ao
agronegócio, está o setor rentista, que, diante da crise climática, prioriza a
austeridade fiscal e seus ganhos financeiros espoliativos acima de qualquer
ação ambiental.
A pergunta que
precisamos nos fazer é: vamos seguir com essa política de austeridade fiscal,
destruindo a capacidade do estado de agir preventivamente e aguardando a
próxima crise para improvisar mais uma resposta? Vamos continuar aceitando esse
ciclo vicioso de desastres mal administrados, como ocorreu nas enchentes no Rio
Grande do Sul e agora se repete com as queimadas?
Como apontou a
socióloga Sabrina Fernandes em coluna para o Intercept Brasil, também é
negacionismo climático apresentar respostas inadequadas ou ineficientes. No fim
das contas, o verdadeiro negacionismo não se trata apenas de ignorar a ciência,
mas de negar ao planeta a possibilidade de um futuro sustentável.
As soluções mais
urgentes e básicas, como a exclusão dos gastos ambientais do Novo Arcabouço
Fiscal, estão ausentes da agenda política. Sequer são debatidas, infelizmente.
Mas não podemos esquecer: não é fiscalmente responsável economizar dinheiro
para prevenção de desastres ambientais e ter que gastar muito mais para
reconstruir depois.
A regra de ouro verde
O arcabouço perpetua a
verdadeira irresponsabilidade fiscal ao não garantir as funções mínimas do
estado diante das crises ambientais. Retirar os gastos ambientais das
restrições fiscais é o mínimo, mas ainda está longe do ideal — que seria o
abandono completo de regras fiscais negacionistas e pró-cíclicas, que
inviabilizam o cumprimento dos direitos fundamentais garantidos pela
Constituição.
Entretanto, mesmo esse
mínimo parece revolucionário em tempos de negacionismo e brutalização do
neoliberalismo.
O caminho inicial
deveria ser a aprovação imediata de uma regra de ouro verde, conforme defendida
por economistas como o prêmio Nobel Joseph Stiglitz. Essa regra permitiria ao
estado investir em políticas ambientais de maneira planejada e contínua, sem as
restrições impostas por uma ficção fiscal que sufoca a capacidade de ação
pública.
A regra de ouro em
finanças públicas tradicionalmente se refere ao tratamento privilegiado das
despesas de capital, permitindo o endividamento para aumentar a capacidade
produtiva da economia.
No contexto ambiental,
a regra de ouro verde segue a mesma lógica, mas focada em excluir os
investimentos verdes dos cálculos fiscais que medem o cumprimento das regras de
austeridade. Este conceito está em discussão em diversos países, especialmente
na União Europeia, mas segue praticamente ignorado no debate fiscal brasileiro.
Alguém poderia
argumentar que uma regra fiscal desse tipo tornaria os gastos públicos
irresponsáveis e fora de controle. No entanto, essa é uma das falácias mais
comuns no debate orçamentário. Não é o esmagamento dos gastos públicos que os
torna mais responsáveis, transparentes e eficientes.
No Brasil, a
deterioração da qualidade orçamentária nos últimos anos, especialmente devido
ao “orçamento secreto”, ocorreu justamente em um período de austeridade fiscal
extremista. Isso demonstra que cortar despesas não garante eficiência — muito
pelo contrário.
Responsabilidade é
gastar com planejamento, não cortar todos os gastos
A verdadeira
responsabilidade com os gastos públicos, especialmente os ambientais, deve
estar atrelada a um planejamento sólido de curto, médio e longo prazo, focado
em preparar e adaptar o país para eventos climáticos extremos, como secas e
enchentes, ao invés de esperar pela tragédia para, então, buscar crédito
extraordinário.
O caso do Rio Grande
do Sul é um exemplo do impacto devastador do negacionismo fiscal. A região
sofreu perdas e danos muito maiores do que deveria, simplesmente porque a
prevenção foi deixada de lado em nome da austeridade fiscal.
Ao ignorar os alertas
e negligenciar os investimentos necessários para evitar catástrofes, o governo
foi forçado a gastar muito mais em reconstrução do que teria gasto se houvesse
investido previamente na prevenção e adaptação.
Dados do governo
federal mostram que, entre 2018 e 2024, os recursos destinados à reconstrução
de desastres no estado foram sete vezes maiores que os recursos alocados para
prevenção. Isso reflete uma escolha política desastrosa, onde o foco reativo
gera um custo financeiro e social muito mais elevado, além de perdas
irreversíveis ao meio ambiente e à vida das pessoas.
Sem planejamento
adequado e recursos garantidos, o Brasil está vulnerável diante de eventos
climáticos extremos, como queimadas e enchentes. Em vez de agir
preventivamente, os gastos ambientais aumentam drasticamente apenas após as
tragédias, seguidos de cortes severos.
Esse ciclo de
austeridade fiscal, que catalisa desastres e depois responde com créditos
extraordinários, compromete gravemente a fiscalização, criando brechas para
desvios e falta de transparência.
Ironicamente, a
própria austeridade, que segundo seus defensores deveria garantir eficiência,
tem se mostrado uma das principais causas da desorganização orçamentária e da
falta de controle sobre os recursos destinados à proteção ambiental.
Quando o estado só age
após a catástrofe, sem planejamento, fica ainda mais difícil garantir a
transparência nos gastos, e a resposta emergencial acaba se tornando mais uma
ferramenta de improviso e desperdício.
Ou, pior, como nos
relatou Antony Loewenstein em entrevista ao Intercept Brasil, a resposta
emergencial pode ser usada como oportunidade de lucro, retirada de direitos e
gentrificação, numa espécie segunda tragédia, política, após a tragédia
ambiental.
Apesar dos inúmeros
argumentos e dados científicos que mostram os impactos das mudanças climáticas,
as elites provavelmente continuarão a defender o mito do “desequilíbrio
fiscal”.
Se for esse o caso, é
hora de levantar um ponto igualmente urgente: a implementação de uma tributação
verde sobre o agronegócio, a mineração e outros setores predatórios. Por que
não reverter o crédito do Plano Safra para financiar a transição energética?
Isso exigirá uma
mobilização popular forte — e é exatamente disso que precisamos. Esta crise é
uma oportunidade de organizar o povo em torno de suas demandas imediatas e
pressionar por mudanças reais.
Sabemos que a regra de
ouro verde não será suficiente para salvar-nos da tragédia ambiental causada
por um capitalismo predatório, mas é um ponto de partida para confrontar
diretamente as elites e forçar transformações concretas. O processo será árduo,
e os interesses dominantes resistirão.
No entanto, é no calor
dessas lutas que preparamos o terreno para uma verdadeira transformação, que é
a única saída viável para reverter a destruição ambiental e garantir um futuro
sustentável.
Fonte: Por David
Deccache, em The Intercept
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