sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Escassez de geriatras desafia sistemas de saúde em um mundo que envelhece

A tendência global de envelhecimento populacional é uma realidade também no Brasil, que já conta com mais pessoas acima de 60 anos do que crianças e adolescentes: são mais de 32,1 milhões de pessoas nessa faixa etária no país, segundo o último Censo do IBGE. A mudança demográfica acontece de forma acelerada e acende o alerta para que sistemas de saúde se preparem adequadamente para acolher as demandas desse novo perfil populacional. Dentre os diversos desafios que esse cenário impõe, está a escassez de médicos geriatras.

De acordo com a Demografia Médica no Brasil 2023, existem apenas 2.670 especialistas registrados no país, o que significa cerca de um médico para cada 12 mil idosos – sendo que a recomendação da Organização Mundial da Saúde é de que a relação seja de um para cada mil idosos.

Outro ponto importante é que, embora as pessoas estejam vivendo mais, elas não necessariamente vivem melhor, já que chegam à fase idosa com maior incidência de doenças crônicas como obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares, entre outras comorbidades. Assim, esses indivíduos necessitam de cuidados de profissionais que saibam lidar com as questões relativas à longevidade e as características específicas do envelhecimento do organismo.

•        Preconceito e formação adequada

O desafio da escassez de geriatras começa antes mesmo da formação dos profissionais, ainda no imaginário na cultura da sociedade. “O brasileiro acredita que o país é feito de pessoas jovens, mas isso não é verdade”, explica Maisa Kairalla, médica geriátrica no Hospital Israelita Albert Einstein e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG). Para ela, essa imagem é fruto de um preconceito contra pessoas velhas – o chamado idadismo ou etarismo (do inglês “ageism”).

De acordo com o Relatório Global de Idadismo, publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o idadismo foi associado a piores resultados em todas as áreas de saúde avaliadas. “Não temos uma cultura de valorização da pessoa velha e isso acaba impactando também na maneira com que a própria especialidade do geriatra é vista”, completa ela. “Hoje, a geriatria não é compreendida como uma área vistosa e não apresenta uma grande procura”, lamenta.

Para Alexandre Kalache, médico epidemiologista e presidente do Centro Internacional de Longevidade Brasil (ILC-Brasil), a falta de interesse no processo de envelhecimento por parte dos profissionais de saúde em formação também é reflexo da ausência de disciplinas que abordem a velhice ao longo dos cursos de saúde. “Não vamos atrair para a geriatria médicos jovens que não estão aprendendo sobre envelhecimento. É impossível gostar daquilo que não se conhece”, acredita.

Ainda de acordo com dados da Demografia Médica 2023, os médicos residentes em geriatria representavam, em todo o Brasil, apenas 0,7% em 2021. A preocupação é de que, se nada for feito, não haverá profissionais suficientes para atender à crescente demanda. “A revolução da longevidade é muito rápida no Brasil e não está sendo acompanhada por uma revolução na educação. O exemplo disso é que boa parte das escolas médicas ainda não tem a disciplina de geriatria ao longo do curso”, afirma Kalache. Atento a isso, o curso de Medicina na Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein já possui a disciplina de Geriatria e seu curso e durante o internato – momento do ensino em que os alunos partem para a prática da profissão.

Além do furo na formação médica, há também as características da própria especialidade, que pode ser desafiadora em muitos momentos. “Para gostar é preciso ter contato com a área e com pessoas idosas, mas isso nem sempre acontece pela própria tendência social que temos de isolar essas pessoas. É preciso uma parcela de propósito no cuidado.”

•        Escassez de geriatras pode sobrecarregar sistema de saúde

Além de chamar a atenção para a falta de especialistas no cuidado com idosos, outro grande ponto que o envelhecimento populacional nos traz é a de sobrecarga nos sistemas de saúde nos próximos anos.

Para se ter ideia, uma pesquisa da União Nacional das Instituições de Autogestão em Saúde (UNIDAS) mostrou que o custo assistencial anual per capita em 2022 para beneficiários com 59 anos ou mais foi de R$ 19.461,20, enquanto na faixa de 24 a 28 anos e de 29 a 33 anos girou em torno de R$ 5,4 mil. Ainda segundo a instituição, o custo médio com hospitalização dos idosos é mais que o dobro do que entre pessoas de 24 a 28 anos.

Na visão de Kalache, a falta de desconhecimento e experiência no cuidado com idosos por parte dos profissionais da saúde apresenta um fardo custoso para os sistemas de saúde público e privado, tanto em desfechos quanto em desperdício de recursos. “Tudo muda à medida em que se envelhece: anatomia, fisiologia, fisiopatologia, farmacologia, interação e dosagem dos medicamentos, a própria doença. Se os profissionais não receberem essas informações ao longo da formação, será mais difícil tratar esses pacientes e otimizar recursos”, constata.

E, neste caso, a preocupação não é apenas com a formação de geriatras, mas também de equipes multidisciplinares que saibam identificar desde sintomas – sem atribuí-los automaticamente ao processo de velhice – até especificidades dessa população ao planejar um tratamento. Por envolver uma série de fatores, segundo Kairalla, “talvez a solução não seja necessariamente um serviço dirigido para o paciente velho, mas a formação de todos aqueles que têm contato com esse paciente”.

•        Solução envolve diálogo multidisciplinar

De acordo com os especialistas, para estimular o interesse pela área da geriatria e intensificar o tema na grade curricular dos cursos de saúde como um todo, é preciso estimular o diálogo multidisciplinar, envolvendo áreas de educação e saúde. Kairalla lembra que a curva de envelhecimento populacional já é conhecida há décadas, até mesmo pela experiência de outros países, mas que o movimento para preparar a sociedade para essa realidade tem se intensificado só agora.

“Tivemos momentos de aumento no número de residências em geriatria, assim como tivemos períodos de queda novamente. É importante um movimento proativo da sociedade e um envolvimento maior entre pastas como saúde e educação. Estamos evoluindo, mas ainda estamos muito aquém do que deveríamos estar”, opina.

Para Kalache, além de estabelecer o diálogo entre disciplinas e diferentes players do setor, é preciso estabelecer ações estratégicas que visem atrair os jovens profissionais para esta área de conhecimento.

“Temos tentado estabelecer um diálogo com entidades médicas e outras organizações que agregam gerontólogos, fisioterapeutas, nutricionistas e enfermeiros”, afirma a especialista. No entanto embora a receptividade seja boa, ela acredita que o governo precisa ter mais iniciativas para estimular essa mudança. “É preciso uma atuação maior dos ministérios da Saúde e Educação e pensar em projetos de bolsas de estudo e doutorado para acelerar essa transformação”, finaliza.

 

Fonte: Futuro da Saúde

 

Nenhum comentário: