'É assim que a economia multipolar nasce':
analistas mostram como sanções se voltaram contra os EUA
Após 70 anos como
principal potência mundial, hoje os Estados Unidos se encontram em decadência
por conta de erros de sua própria autoria, como uma perspectiva egoísta nas
relações internacionais e o estabelecimento de sanções.
No episódio desta
terça-feira (24) do Mundioka, podcast da Sputnik Brasil apresentado pelos
jornalistas Melina Saad e Marcelo Castilho, especialistas em geopolítica
detalharam como os Estados Unidos usaram sua moeda, o dólar, para se manter no
poder e como essa sanha por permanecer na primeira posição indisputável se
mostrou um tiro pela culatra.
Uso do dólar como
moeda global
A ascensão dos Estados
Unidos como superpotência global ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, quando
foram a única potência a sair do conflito com o seu território íntegro, afirmou
Filipe Ribeiro, especialista em energia e administrador da página Geopolítica
em Português.
A partir dessa posição
privilegiada, os Estados Unidos começaram a desenhar o mundo à sua maneira,
ajudando a reconstruir a Europa Ocidental e criando, junto a elas, instituições
econômicas para o mundo capitalista com os Acordos de Bretton Woods, nomeadamente
o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Direcionando a
economia do bloco capitalista, os EUA atrelaram o dólar ao padrão-ouro, fazendo
com que se tornasse um novo padrão nas moedas dessa parte do mundo. Com o
tempo, os norte-americanos notaram uma nova oportunidade e acabaram com esse
lastro físico do dólar. Em seu lugar, descreve Ribeiro, surgiu o petrodólar.
"Isso deu muita
força ao dólar porque eles sabiam que o dólar teria que ser obrigatoriamente
utilizado no comércio mundial."
Hugo Dionísio,
advogado, analista geopolítico e fundador do Canal Factual e do Multipolar-TV,
explicou que, ao ganhar essa primazia no comércio global de hidrocarbonetos, o
dólar também se associa a sistemas financeiros mundiais como o SWIFT: "Uma
coisa não existe sem a outra."
É a partir desse
momento que os norte-americanos percebem o poder de usar sua moeda como arma
através de sanções. O mecanismo funciona como um ciclo vicioso. Uma vez que não
transacionam nos sistemas de transação, os países-alvo não obtêm dólares. Sem
dólares, tampouco conseguem comprar e vender de outros países que necessitam da
moeda norte-americana para efetuar trocas no SWIFT.
Na prática, os países
se tornam isolados, párias mundiais. Esse sistema do "dólar-bomba"
funcionou bem enquanto atingiu países pequenos, como Cuba, Venezuela e Coreia
do Norte, mas foi a partir da inclusão do Irã e, principalmente, das sanções contra
a Rússia, que tudo começou a desandar para os EUA.
"Quando começam a
retirar esses países do SWIFT, acabaram criando mercados paralelos porque esses
países têm commodities que valem muito dinheiro no mercado mundial."
<><> EUA:
em processo de decadência
Esses países, destaca
Dionísio, têm grande capacidade de gerar acordos bilaterais e criar mercados à
margem do dólar, que contornam o sistema Bretton Woods.
"É assim que esta
economia multipolar nasce."
O fracasso dos Estados
Unidos em controlar os fluxos de capital é reflexo da decadência que o país
enfrenta hoje, 30 anos após a queda da União Soviética. "Até aqui eles
eram o único país que aplicava sanções a todos. Hoje em dia já vemos retaliações.
A China aplica, a Rússia aplica. E existe todo um Sul Global que vê outros
países poderosos que permitem fazer alianças em um mundo de poder
disputado", disse Ribeiro.
A Rússia, como grande
nação que herdou muitas capacidades econômicas da União Soviética, surge como
um polo natural de poder alternativo aos EUA. Já a China, destacam os
analistas, representa justamente uma consequência inesperada da política
exterior norte-americana.
Dentro da arquitetura
mundial, criada pelos estadunidenses — na qual eles ficam no topo da divisão do
trabalho, os europeus no centro das cadeiras de valor e os países periféricos
relegados à produção de commodities —, a China nunca foi vista com capacidade
de produção sofisticada, apontou Dionísio.
Só que esse não foi o
plano seguido pela China, que conseguiu se desenvolver, apesar dos esforços
contrários dos EUA.
Hoje, a despeito das
sanções norte-americanas, o país liderado pelo Partido Comunista chinês avança
em passos largos para obter a primazia nas indústrias do futuro, como
eletrificação, inteligência artificial, telecomunicações e semicondutores.
"As sanções só
fizeram com que a China duplicasse os investimentos nessas áreas onde estavam a
receber sanções e ultrapassar mais rapidamente os desafios", afirmou
Ribeiro.
<><> A
alternativa multipolar
Com sua ascensão, a
China apresenta também seu modo de diplomacia para os países do mundo. São
relações "ganha-ganha, win-win, parceria de benefício mútuo", explica
Ribeiro.
"Os Estados
Unidos normalmente tentam fazer um acordo em que o benefício principal é
claramente para ele."
Isso é visto de
maneira evidente nas ações de ambos no continente africano, afirmaram os
especialistas.
Por um lado, os EUA se
utilizam de sua posição privilegiada no Banco Mundial e no FMI — instituições
criadas por eles próprios — para aprisionar os países africanos em empréstimos
e continuar o domínio do dólar e da ideologia capitalista neoliberal nesses
países.
"Todas essas
condicionalidades perpetuam a pobreza desses países. Ora, isso é uma realidade
inquestionável", cravou Dionísio.
Por outro lado, a
China vem realizando uma série de construções de infraestrutura com empréstimos
a juros zero para desenvolver o continente como parte da Iniciativa Cinturão e
Rota, como forma de encontrar mercado para suas indústrias.
"A China perdoou
completamente as dívidas em alguns países africanos e tem sido o principal país
que tem, de fato, tentado fazer com que o continente africano desenvolva
capacidades próprias", lembrou Ribeiro.
Essa distinção da
política externa dos dois países não é de agora, mas histórica. Desde o Destino
Manifesto e a Doutrina Monroe, os Estados Unidos olham para si mesmos como o
país que deve liderar o mundo, enquanto os demais são vistos "como uma fonte
de recursos".
"Os Estados
Unidos têm alguns séculos de existência, mas a China tem milhares de
anos."
Nessa história
milenar, a China sempre teve como um dos destaques de sua política externa as
relações comerciais. Quando o país chegou com navios ao Oriente Médio e à costa
africana, tinha capacidade militar para fazer "algo como uma colonização
ou uma usurpação de poderes", descreveu.
Não foi o que fez,
contudo. Pelo contrário, estabeleceu relações de troca, seja de mercadorias,
seja de conhecimento. Essa mentalidade segue na diplomacia do país até hoje. A
política atual do governo chinês é baseada numa estrutura da "prosperidade
comum", disse Ribeiro.
"E essa
prosperidade comum, eles dizem que é uma prosperidade comum para todos os
países, não só dentro da China ou só na Ásia. É para todos os países."
¨ Fala de Lula na ONU retrata 'esgotamento' e conclamação a 'uma
nova ordem internacional'
Como de praxe e função
do Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) abriu a 79ª Assembleia
Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) nesta terça-feira (24), na sede da
organização em Nova York.
À Sputnik Brasil, o
professor de relações internacionais da Universidade Federal de Pelotas
(UFPel), William Daldegan de Freitas, assimilou o discurso de abertura
proferido pelo chefe de Estado brasileiro como "um discurso
pessimista".
Segundo ele, com um
tom "cansado" e "sombrio", a fala de Lula reflete a
necessidade mundial de uma mudança da velha ordem presente nas instâncias da
ONU. O analista pontuou: "O discurso do presidente Lula me parece aqueles
discursos de balanço final, de prestação de contas."
"Esse tom que eu
identifico como negativo, como pessimista, ele também tem aí uma bandeira que é
de dizer o seguinte: 'Olha, essa ordem internacional está se esgotando, ela já
se esgotou. Nós estamos aqui fazendo um balanço e mostrando que essa ordem, se
algum dia funcionou, já não funciona. E que é necessário, portanto, criar uma
nova ordem.' Esse modelo se esgotou, e precisamos criar um novo modelo",
argumentou.
Questionado sobre os
rumos da fala do presidente, Daldegan afirmou que "a verdadeira reforma só
virá em tempos de conflito", deixando claro que, sem mudanças
significativas, a estrutura atual pode não ser capaz de prevenir novas guerras
e conflitos.
"O mundo mudou, e
a ONU, inaugurada com pouco mais de 50 Estados, não dá conta dos problemas
contemporâneos", arrematou, dando base para o discurso do chefe de Estado
brasileiro.
O professor notou que
o discurso de Lula é um lamento pelas oportunidades perdidas de incluir vozes
de países em desenvolvimento nas decisões globais.
Helena Margarido
Moreira, professora de relações internacionais na Universidade Anhembi Morumbi
e pesquisadora de política ambiental global, pontuou que "o discurso do
Lula na abertura da Assembleia Geral veio como uma tentativa mesmo de o Brasil
se colocar, de alguma forma, como porta-voz do Sul Global, considerando que o
Brasil também está na presidência do G20, que reúne ali as 20 maiores economias
do mundo".
<><> Reforma
do Conselho de Segurança da ONU, um pleito antigo
À Sputnik Brasil, Luiz
Felipe Osório, professor de relações internacionais da Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e autor do livro "Imperialismo, Estado e
relações internacionais", pontuou que o pleito pela reforma no Conselho de
Segurança das Nações Unidas (CSNU) não é novo e remonta aos tempos da Sociedade
das Nações.
"É uma bandeira
histórica que acompanha a diplomacia nacional, mesmo antes de a ONU existir,
presente já na embrionária Sociedade das Nações, nas quais o Brasil se colocava
como único representante das Américas no Conselho Executivo e demandava um assento
permanente que não veio, ocasionando a saída precoce da organização. Na ONU não
é diferente. Mesmo estando ao lado dos vitoriosos da Segunda Guerra Mundial,
com esforços importantes e ações determinantes, ficou sem a posição",
explicou o internacionalista.
Segundo Osório, Lula
está correto em pleitear uma vaga. "Inclusive é do tempo de seus primeiros
mandatos a articulação com Alemanha, Japão e Índia, chamada de G4" para
aumentar o número de assentos permanentes no órgão de cúpula da ONU.
A ausência de uma
reforma significativa na ONU, que só passou por mudanças em 1961, revela um
engessamento que Lula denuncia, ressaltou Osório. Ele reiterou que a proposta
de expansão dos assentos permanentes, articulada com países como Alemanha,
Japão e Índia, "continua a ser uma demanda relevante". Contudo,
especialistas afirmam que "a dinâmica de poder mundial e o controle
exercido pelos Estados Unidos dificultam essa mudança".
O professor Osório
observa que, embora a retórica de Lula tenha "ressoado
internacionalmente", a concretização dessas promessas depende não apenas
do Brasil, mas de "um esforço coletivo que ainda parece distante".
No entanto, essa
preocupação constante eleva a posição do Brasil no cenário internacional,
mostrando que o país está disposto a liderar debates críticos.
Por fim, a discussão
sobre inteligência artificial e governança tecnológica, proposta por Lula,
sublinha a necessidade de "uma autonomia brasileira no desenvolvimento
tecnológico". Em um cenário global marcado por invasões de privacidade e
manipulação de dados, Osório destaca que garantir a soberania tecnológica é
"crucial para promover os direitos humanos". A insistência de Lula
nesse tema indica o reconhecimento do potencial do Brasil para ser um
protagonista na discussão sobre tecnologia e direitos.
·
Discurso de Lula na ONU
Crítico conhecido do
anacronismo da ONU tanto no que diz respeito à sua representatividade em
instâncias como o Conselho de Segurança, como no âmbito geral da própria
assembleia que não consegue mais lidar com a mediação entre os Estados, o
presidente brasileiro mencionou os atuais conflitos quentes ao redor do mundo,
citando em especial a Ucrânia e Gaza — para os quais mencionou como antídotos o
Plano para Paz de seis pontos de Brasil e China, e a solução de dois Estados,
respectivamente.
Lula ainda citou os
fortes desafios climáticos que o mundo enfrenta em caráter generalizado e
justificou na bioeconomia, uma saída viável para alguns desses problemas.
"Não é mais
admissível pensar em soluções para as florestas tropicais sem ouvir os povos
indígenas, as comunidades tradicionais e todos aqueles que vivem nelas. Nossa
visão de desenvolvimento sustentável está alicerçada no potencial da
bioeconomia. O Brasil sediará a COP30 em 2025, convicto de que o
multilateralismo é o único caminho para superar a urgência climática",
afirmou o presidente.
Destacando o potencial
brasileiro na agenda ambiental, Lula ressaltou que o mundo está atrasado na
matéria e que existe muito a ser feito, mas que o ritmo ainda segue lento para
a necessidade do mundo.
O presidente abordou
também os desafios da democracia em diversas searas e territórios. Citando
casos como de países africanos e do próprio Brasil, Lula destacou que as
instituições precisam estar firmes contra tentativas de "solapar" a
democracia, que espalham ódio, preconceito e retrocesso.
"No mundo
globalizado, não faz sentido recorrer a falsos patriotas e isolacionistas.
Tampouco há esperança no recurso a experiências ultraliberais que apenas
agravam as dificuldades de um continente depauperado. O futuro de nossa região
passa, sobretudo, por construir um Estado sustentável, eficiente, inclusivo e
que enfrenta todas as formas de discriminação, que não se intimida ante vídeos,
corporação ou plataformas digitais que se julguem acima das leis. A liberdade é
a primeira vítima de um mundo sem regras", afirmou.
Fonte: Sputnik Brasil
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