quinta-feira, 26 de setembro de 2024

'É assim que a economia multipolar nasce': analistas mostram como sanções se voltaram contra os EUA

Após 70 anos como principal potência mundial, hoje os Estados Unidos se encontram em decadência por conta de erros de sua própria autoria, como uma perspectiva egoísta nas relações internacionais e o estabelecimento de sanções.

No episódio desta terça-feira (24) do Mundioka, podcast da Sputnik Brasil apresentado pelos jornalistas Melina Saad e Marcelo Castilho, especialistas em geopolítica detalharam como os Estados Unidos usaram sua moeda, o dólar, para se manter no poder e como essa sanha por permanecer na primeira posição indisputável se mostrou um tiro pela culatra.

Uso do dólar como moeda global

A ascensão dos Estados Unidos como superpotência global ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, quando foram a única potência a sair do conflito com o seu território íntegro, afirmou Filipe Ribeiro, especialista em energia e administrador da página Geopolítica em Português.

A partir dessa posição privilegiada, os Estados Unidos começaram a desenhar o mundo à sua maneira, ajudando a reconstruir a Europa Ocidental e criando, junto a elas, instituições econômicas para o mundo capitalista com os Acordos de Bretton Woods, nomeadamente o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Direcionando a economia do bloco capitalista, os EUA atrelaram o dólar ao padrão-ouro, fazendo com que se tornasse um novo padrão nas moedas dessa parte do mundo. Com o tempo, os norte-americanos notaram uma nova oportunidade e acabaram com esse lastro físico do dólar. Em seu lugar, descreve Ribeiro, surgiu o petrodólar.

"Isso deu muita força ao dólar porque eles sabiam que o dólar teria que ser obrigatoriamente utilizado no comércio mundial."

Hugo Dionísio, advogado, analista geopolítico e fundador do Canal Factual e do Multipolar-TV, explicou que, ao ganhar essa primazia no comércio global de hidrocarbonetos, o dólar também se associa a sistemas financeiros mundiais como o SWIFT: "Uma coisa não existe sem a outra."

É a partir desse momento que os norte-americanos percebem o poder de usar sua moeda como arma através de sanções. O mecanismo funciona como um ciclo vicioso. Uma vez que não transacionam nos sistemas de transação, os países-alvo não obtêm dólares. Sem dólares, tampouco conseguem comprar e vender de outros países que necessitam da moeda norte-americana para efetuar trocas no SWIFT.

Na prática, os países se tornam isolados, párias mundiais. Esse sistema do "dólar-bomba" funcionou bem enquanto atingiu países pequenos, como Cuba, Venezuela e Coreia do Norte, mas foi a partir da inclusão do Irã e, principalmente, das sanções contra a Rússia, que tudo começou a desandar para os EUA.

"Quando começam a retirar esses países do SWIFT, acabaram criando mercados paralelos porque esses países têm commodities que valem muito dinheiro no mercado mundial."

<><> EUA: em processo de decadência

Esses países, destaca Dionísio, têm grande capacidade de gerar acordos bilaterais e criar mercados à margem do dólar, que contornam o sistema Bretton Woods.

"É assim que esta economia multipolar nasce."

O fracasso dos Estados Unidos em controlar os fluxos de capital é reflexo da decadência que o país enfrenta hoje, 30 anos após a queda da União Soviética. "Até aqui eles eram o único país que aplicava sanções a todos. Hoje em dia já vemos retaliações. A China aplica, a Rússia aplica. E existe todo um Sul Global que vê outros países poderosos que permitem fazer alianças em um mundo de poder disputado", disse Ribeiro.

A Rússia, como grande nação que herdou muitas capacidades econômicas da União Soviética, surge como um polo natural de poder alternativo aos EUA. Já a China, destacam os analistas, representa justamente uma consequência inesperada da política exterior norte-americana.

Dentro da arquitetura mundial, criada pelos estadunidenses — na qual eles ficam no topo da divisão do trabalho, os europeus no centro das cadeiras de valor e os países periféricos relegados à produção de commodities —, a China nunca foi vista com capacidade de produção sofisticada, apontou Dionísio.

Só que esse não foi o plano seguido pela China, que conseguiu se desenvolver, apesar dos esforços contrários dos EUA.

Hoje, a despeito das sanções norte-americanas, o país liderado pelo Partido Comunista chinês avança em passos largos para obter a primazia nas indústrias do futuro, como eletrificação, inteligência artificial, telecomunicações e semicondutores.

"As sanções só fizeram com que a China duplicasse os investimentos nessas áreas onde estavam a receber sanções e ultrapassar mais rapidamente os desafios", afirmou Ribeiro.

<><> A alternativa multipolar

Com sua ascensão, a China apresenta também seu modo de diplomacia para os países do mundo. São relações "ganha-ganha, win-win, parceria de benefício mútuo", explica Ribeiro.

"Os Estados Unidos normalmente tentam fazer um acordo em que o benefício principal é claramente para ele."

Isso é visto de maneira evidente nas ações de ambos no continente africano, afirmaram os especialistas.

Por um lado, os EUA se utilizam de sua posição privilegiada no Banco Mundial e no FMI — instituições criadas por eles próprios — para aprisionar os países africanos em empréstimos e continuar o domínio do dólar e da ideologia capitalista neoliberal nesses países.

"Todas essas condicionalidades perpetuam a pobreza desses países. Ora, isso é uma realidade inquestionável", cravou Dionísio.

Por outro lado, a China vem realizando uma série de construções de infraestrutura com empréstimos a juros zero para desenvolver o continente como parte da Iniciativa Cinturão e Rota, como forma de encontrar mercado para suas indústrias.

"A China perdoou completamente as dívidas em alguns países africanos e tem sido o principal país que tem, de fato, tentado fazer com que o continente africano desenvolva capacidades próprias", lembrou Ribeiro.

Essa distinção da política externa dos dois países não é de agora, mas histórica. Desde o Destino Manifesto e a Doutrina Monroe, os Estados Unidos olham para si mesmos como o país que deve liderar o mundo, enquanto os demais são vistos "como uma fonte de recursos".

"Os Estados Unidos têm alguns séculos de existência, mas a China tem milhares de anos."

Nessa história milenar, a China sempre teve como um dos destaques de sua política externa as relações comerciais. Quando o país chegou com navios ao Oriente Médio e à costa africana, tinha capacidade militar para fazer "algo como uma colonização ou uma usurpação de poderes", descreveu.

Não foi o que fez, contudo. Pelo contrário, estabeleceu relações de troca, seja de mercadorias, seja de conhecimento. Essa mentalidade segue na diplomacia do país até hoje. A política atual do governo chinês é baseada numa estrutura da "prosperidade comum", disse Ribeiro.

"E essa prosperidade comum, eles dizem que é uma prosperidade comum para todos os países, não só dentro da China ou só na Ásia. É para todos os países."

¨      Fala de Lula na ONU retrata 'esgotamento' e conclamação a 'uma nova ordem internacional'

Como de praxe e função do Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) abriu a 79ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) nesta terça-feira (24), na sede da organização em Nova York.

À Sputnik Brasil, o professor de relações internacionais da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), William Daldegan de Freitas, assimilou o discurso de abertura proferido pelo chefe de Estado brasileiro como "um discurso pessimista".

Segundo ele, com um tom "cansado" e "sombrio", a fala de Lula reflete a necessidade mundial de uma mudança da velha ordem presente nas instâncias da ONU. O analista pontuou: "O discurso do presidente Lula me parece aqueles discursos de balanço final, de prestação de contas."

"Esse tom que eu identifico como negativo, como pessimista, ele também tem aí uma bandeira que é de dizer o seguinte: 'Olha, essa ordem internacional está se esgotando, ela já se esgotou. Nós estamos aqui fazendo um balanço e mostrando que essa ordem, se algum dia funcionou, já não funciona. E que é necessário, portanto, criar uma nova ordem.' Esse modelo se esgotou, e precisamos criar um novo modelo", argumentou.

Questionado sobre os rumos da fala do presidente, Daldegan afirmou que "a verdadeira reforma só virá em tempos de conflito", deixando claro que, sem mudanças significativas, a estrutura atual pode não ser capaz de prevenir novas guerras e conflitos.

"O mundo mudou, e a ONU, inaugurada com pouco mais de 50 Estados, não dá conta dos problemas contemporâneos", arrematou, dando base para o discurso do chefe de Estado brasileiro.

O professor notou que o discurso de Lula é um lamento pelas oportunidades perdidas de incluir vozes de países em desenvolvimento nas decisões globais.

Helena Margarido Moreira, professora de relações internacionais na Universidade Anhembi Morumbi e pesquisadora de política ambiental global, pontuou que "o discurso do Lula na abertura da Assembleia Geral veio como uma tentativa mesmo de o Brasil se colocar, de alguma forma, como porta-voz do Sul Global, considerando que o Brasil também está na presidência do G20, que reúne ali as 20 maiores economias do mundo".

<><> Reforma do Conselho de Segurança da ONU, um pleito antigo

À Sputnik Brasil, Luiz Felipe Osório, professor de relações internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e autor do livro "Imperialismo, Estado e relações internacionais", pontuou que o pleito pela reforma no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) não é novo e remonta aos tempos da Sociedade das Nações.

"É uma bandeira histórica que acompanha a diplomacia nacional, mesmo antes de a ONU existir, presente já na embrionária Sociedade das Nações, nas quais o Brasil se colocava como único representante das Américas no Conselho Executivo e demandava um assento permanente que não veio, ocasionando a saída precoce da organização. Na ONU não é diferente. Mesmo estando ao lado dos vitoriosos da Segunda Guerra Mundial, com esforços importantes e ações determinantes, ficou sem a posição", explicou o internacionalista.

Segundo Osório, Lula está correto em pleitear uma vaga. "Inclusive é do tempo de seus primeiros mandatos a articulação com Alemanha, Japão e Índia, chamada de G4" para aumentar o número de assentos permanentes no órgão de cúpula da ONU.

A ausência de uma reforma significativa na ONU, que só passou por mudanças em 1961, revela um engessamento que Lula denuncia, ressaltou Osório. Ele reiterou que a proposta de expansão dos assentos permanentes, articulada com países como Alemanha, Japão e Índia, "continua a ser uma demanda relevante". Contudo, especialistas afirmam que "a dinâmica de poder mundial e o controle exercido pelos Estados Unidos dificultam essa mudança".

O professor Osório observa que, embora a retórica de Lula tenha "ressoado internacionalmente", a concretização dessas promessas depende não apenas do Brasil, mas de "um esforço coletivo que ainda parece distante".

No entanto, essa preocupação constante eleva a posição do Brasil no cenário internacional, mostrando que o país está disposto a liderar debates críticos.

Por fim, a discussão sobre inteligência artificial e governança tecnológica, proposta por Lula, sublinha a necessidade de "uma autonomia brasileira no desenvolvimento tecnológico". Em um cenário global marcado por invasões de privacidade e manipulação de dados, Osório destaca que garantir a soberania tecnológica é "crucial para promover os direitos humanos". A insistência de Lula nesse tema indica o reconhecimento do potencial do Brasil para ser um protagonista na discussão sobre tecnologia e direitos.

·        Discurso de Lula na ONU

Crítico conhecido do anacronismo da ONU tanto no que diz respeito à sua representatividade em instâncias como o Conselho de Segurança, como no âmbito geral da própria assembleia que não consegue mais lidar com a mediação entre os Estados, o presidente brasileiro mencionou os atuais conflitos quentes ao redor do mundo, citando em especial a Ucrânia e Gaza — para os quais mencionou como antídotos o Plano para Paz de seis pontos de Brasil e China, e a solução de dois Estados, respectivamente.

Lula ainda citou os fortes desafios climáticos que o mundo enfrenta em caráter generalizado e justificou na bioeconomia, uma saída viável para alguns desses problemas.

"Não é mais admissível pensar em soluções para as florestas tropicais sem ouvir os povos indígenas, as comunidades tradicionais e todos aqueles que vivem nelas. Nossa visão de desenvolvimento sustentável está alicerçada no potencial da bioeconomia. O Brasil sediará a COP30 em 2025, convicto de que o multilateralismo é o único caminho para superar a urgência climática", afirmou o presidente.

Destacando o potencial brasileiro na agenda ambiental, Lula ressaltou que o mundo está atrasado na matéria e que existe muito a ser feito, mas que o ritmo ainda segue lento para a necessidade do mundo.

O presidente abordou também os desafios da democracia em diversas searas e territórios. Citando casos como de países africanos e do próprio Brasil, Lula destacou que as instituições precisam estar firmes contra tentativas de "solapar" a democracia, que espalham ódio, preconceito e retrocesso.

"No mundo globalizado, não faz sentido recorrer a falsos patriotas e isolacionistas. Tampouco há esperança no recurso a experiências ultraliberais que apenas agravam as dificuldades de um continente depauperado. O futuro de nossa região passa, sobretudo, por construir um Estado sustentável, eficiente, inclusivo e que enfrenta todas as formas de discriminação, que não se intimida ante vídeos, corporação ou plataformas digitais que se julguem acima das leis. A liberdade é a primeira vítima de um mundo sem regras", afirmou.

 

Fonte: Sputnik Brasil

 

Nenhum comentário: