BRICS: da ambição desenvolvimentista ao
desafio geopolítico
A cúpula do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China, África
do Sul) que aconteceu na África do Sul, no verão de 2023, poderá ficar como uma data memorável para a
política internacional. Em meio a uma campanha em massa dos países
do G-7 para isolar a Rússia em
reação ao seu ataque à Ucrânia,
algumas importantes potências regionais do mundo não ocidental decidiram
candidatar-se para aderir ao BRICS, entre cujos membros destacados está
a Rússia.
Com Egito, Etiópia, Irã, Arábia
Saudita e Emirados Árabes Unidos, este grupo passaria a ter dez
membros, em janeiro de 2024 (a Argentina seria um dos novos membros,
mas o recém-governo de Javier Milei decidiu não aderir por razões ideológicas). O sinal dado
ao Ocidente não poderia ser mais claro: estes países não estão mais
dispostos a permitir que alguém dite como agir ou com quem cooperar no plano
internacional.
<><>
Reivindicação por um lugar adequado na ordem global
Dado o legado da
organização desde o seu início, era difícil prever este processo.
O BRICS foi lançado no verão de 2009, durante a crise financeira internacional. A adoção da sigla idealizada pelo Goldman Sachs, um dos
principais bancos de investimento estadunidenses e principal culpado da crise,
aparentemente não foi considerada um problema. O banco havia lançado um novo
fundo para canalizar o volumoso capital de seus investidores para os mercados
emergentes extremamente dinâmicos do Brasil, Rússia, Índia e China.
A África do Sul se somou, em 2011, a pedido da China:
o BRIC se transformou em BRICS.
Após quase três
décadas de expansão dinâmica e de taxas de crescimento por vezes espetaculares,
especialmente na China,
tinha ficado claro que a globalização de bens e mercados
financeiros se baseava em um capitalismo desregulamentado, cuja
ganância o levou a se expandir muito, o que empurrou toda a ordem
econômica internacional à beira do colapso e à sua maior crise desde
a Grande Depressão, do final dos anos 1920.
As economias
emergentes e, de fato, o Sul global como um todo, viram confirmada a sua
convicção de que a ordem internacional, no final da primeira década do século
XXI, representava o mundo do passado. Do Banco Mundial ao Fundo
Monetário Internacional (FMI), do Conselho de Segurança da
Organização das Nações Unidas (ONU) ao poder global do dólar estadunidense, as instituições da ordem mundial refletiam o equilíbrio de
poder de 1945, não o de 2009.
Os países
emergentes e em desenvolvimento sentiram mais do que nunca que não
estavam adequadamente representados neste sistema multilateral que
não refletia a porcentagem da população mundial que representavam, nem a sua
crescente importância política e econômica. No momento de sua criação, o grupo
dos BRICS representava aproximadamente 40% da população mundial.
A participação desses
países no PIB mundial aumentou de 8%, em 2001, para 26% (em dólares
estadunidenses), em 2023, enquanto a participação dos países do G-7 caiu de 65%
para 43%, no mesmo período. Entre 1990 e 2022, os países membros
do BRICS alcançaram uma taxa de crescimento de 4,5%, ao passo que os
do G-7 alcançaram
um magro 1,5%, nesse período, com a China (12,3%) e
a Índia (6,4%) como as forças com maior tração.
Desde o seu
lançamento, o BRICS tem sido uma associação frouxa de Estados muito
diferentes e com divergências muito mais acentuadas do que o G-7, por
exemplo. A institucionalidade do grupo é pouca, carece tanto de estatutos como
de órgãos executivos e legislativos. Nem sequer possui uma secretaria
permanente. Não há critérios formais de adesão.
Este grupo de países
também apresenta uma grande diversidade em termos políticos, militares e
econômicos: governos democráticos e autoritários possuem colaboração mútua, e
três dos membros são potências nucleares (Rússia, China e Índia). O peso econômico
dentro do grupo está distribuído de forma muito desigual. O produto bruto
da China excede ao de todos os outros membros juntos e chega a
aproximadamente 70% do total.
Existem também
conflitos abertos, incluindo confrontos militares, entre determinados países,
como a China e a Índia. No entanto, os Estados-membros
compartilham interesses comuns acerca da reforma do sistema multilateral
da ONU, o sistema financeiro internacional, o comércio e o
desenvolvimento.
Legitimação política e
prioridades dos países fundadores
Os comunicados finais
das últimas 15 cúpulas do BRICS são muito claros neste aspecto. Três
prioridades surgiram desde que o grupo existe:
a) O sistema
financeiro
O primeiro comunicado
final, de 2009, expressava o seguinte: Nosso compromisso é avançar
na reforma das instituições financeiras internacionais, de forma que
reflitam as mudanças na economia mundial. As economias emergentes e em
desenvolvimento devem ter mais voz e representação nas instituições financeiras
internacionais, e seus altos diretores devem ser nomeados por meio de um
processo de seleção aberto, transparente e baseado no mérito. Também
acreditamos que é muito necessário um sistema monetário internacional estável,
previsível e mais diversificado.
b) Desenvolvimento e
comércio
No início,
o BRICS promoveu vigorosamente os Objetivos de Desenvolvimento
do Milênio (ODM) e, desde 2015, os Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS). Assim, escolheu uma posição que refletia a de muitas
conferências importantes e bem-sucedidas da ONU, que tiveram um impacto
duradouro na agenda de desenvolvimento e resultaram na Conferência do Clima de Paris e na adoção dos ODS.
Esta fase
da política multilateral se caracterizou pela socialização das
relações internacionais. O Fórum Social Mundial, por exemplo, declarou ser uma “cúpula de baixo”. Os resultados
inovadores destas conferências para a comunidade internacional não teriam sido
possíveis sem a participação de organizações não governamentais de todos os
tipos.
c) Uma ampla reforma
do sistema da ONU e seu enfoque no multilateralismo
Nesse contexto, fica
claro que o surgimento do BRICS no cenário internacional esteve
associado ao elevado grau de legitimidade do Sul global. Emergia um ator
comprometido com uma ordem multipolar mais justa, algo interpretado como um
passo a mais em direção à emancipação dos países em desenvolvimento.
O fim do colonialismo europeu parecia ser um passo determinante, mas incompleto,
no caminho para a libertação. Foi rapidamente substituído pela dependência e a
exploração neocoloniais, que se baseiam em um sistema financeiro dominado
pelo dólar estadunidense. Isto ficou especialmente evidente durante a crise da
dívida sofrida pelos países em desenvolvimento, nos anos 1980.
Os programas de
ajuste estrutural traçados pelo FMI forçaram os países em
desenvolvimento a liberalizar o comércio, privatizar empresas públicas e a
colocar em prática diversas medidas de austeridade como condição para os
empréstimos de que necessitavam. Estas políticas obrigaram os países a cortar
benefícios sociais e provocaram um aumento da pobreza e da desigualdade,
impossibilitando o desenvolvimento nacional autônomo para muitos países em
desenvolvimento.
Dadas estas condições
iniciais para o BRICS, a partir de 2009, muitos analistas começaram a ver
este grupo de Estados como um potencial desafio para os países ocidentais que
colaboravam no G-7. No entanto, não foi assim. A previsão de crescimento
para as economias emergentes não se concretizou. Pelo contrário,
o BRICS perdeu impulso.
O Brasil e
a África do Sul se viram afundados em problemas políticos internos e
a Rússia não ultrapassou os limites de uma economia rentista baseada
em energia e matérias-primas. “As economias dos membros do BRICS não
asiáticos estagnaram nos anos 2010. Nas cúpulas, o bloco emitia comunicados
confusos sobre o pérfido Ocidente,
que rapidamente eram ignorados pelo pérfido Ocidente.
“O BRICS parecia morto”, escreveu a revista The Economist.
<><> Uma
introspecção à luz de ambições frustradas e da perda de relevância global
Com a consolidação da
economia global, após a crise financeira, a pressão reformista que havia
caracterizado as primeiras reuniões do G-20 começou a diminuir do
lado ocidental. As esperanças de que o Sul global pudesse finalmente desempenhar
um papel mais importante na configuração da ordem internacional baseada em
regras se viram frustradas. Desde então, a reforma do sistema multilateral
da ONU tem sido objeto de um debate interminável, com o Conselho de
Segurança da ONU paralisado, o FMI e o Banco Mundial nas
mãos de europeus e estadunidenses, respectivamente, e a Organização
Mundial do Comércio (OMC) bloqueada. Nesse sentido, os anos 2010 foram
perdidos para o Sul global.
Tendo em vista tais
acontecimentos, surge a questão de saber o que manteve o BRICS unido
durante esta fase. Apesar da sua perda de importância mundial, o grupo cumpriu
uma série de funções importantes para os seus membros: forneceu uma plataforma
para criticar o sistema existente, contribuiu indiretamente para a estabilidade
de seus regimes internos e, portanto, ofereceu proteção contra interferências
externas indesejadas (princípios de soberania e de não ingerência), ao mesmo
tempo em que possibilitou criar alianças flexíveis na política externa. Além
disso, a natureza do grupo serviu como fonte de prestígio e representou para
o Brasil e a África do Sul, como únicos membros em seus
respectivos continentes, um veículo para projetar a sua influência regional.
No entanto, foi
inclusive mais importante o fato de o BRICS começar a construir
instituições multilaterais, a intensificar suas relações internas e a se
adaptar ao retorno à geopolítica nas relações internacionais. Em 2015, foi
criado o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), com sede em Xangai,
como plataforma de empréstimos para financiar os países em desenvolvimento.
Também se chegou a um acordo para gerar reservas para contingências que
funcionariam como um amortecedor, em caso de pressão financeira global.
O processo de criação
do Banco foi prolongado e repleto de conflitos entre os membros do grupo.
Surgiram divergências sobre um eventual predomínio da China no
capital do banco, o que foi rejeitado pelos outros membros. Finalmente, o
capital subscrito foi de 50 bilhões de dólares e cada membro contribuirá com um
quinto. No entanto, a China contribui com 41% para o fundo de
reservas de emergência. Além do volume do balanço do Banco ser várias vezes
inferior ao do Banco Mundial e do FMI, muitos negócios ainda são
feitos em dólares.
As críticas ao fraco
desempenho da instituição até agora (falta de transparência, muitos empréstimos
em dólares, predomínio dos membros fundadores nos órgãos de supervisão etc.)
não vêm apenas dos observadores ocidentais. “Isto não leva a pensar em um banco
do Sul global verdadeiramente progressista”, diz o professor Daniel
Bradlow, da Universidade de Pretória, na África do Sul. Algumas das
avaliações das práticas empresariais do NBD são muito críticas: “Por
que é que os países BRICS não conseguiram refazer a ordem
financeira global?”, perguntava-se o canal de televisão France24.
Independentemente
dessas avaliações, na perspectiva de seus acionistas, o BRICS havia
dado um primeiro passo. Ao mesmo tempo, a China continuou
vigorosamente a sua própria estratégia global sob a forma da Iniciativa
Faixa e Rota e participou de forma proeminente no lançamento de outro
banco de desenvolvimento, o Banco Asiático de Investimento em
Infraestrutura (AIIB, na sigla em inglês), o que de certo modo ofuscou o
lançamento do banco do BRICS.
Provavelmente, o
aspecto mais crucial nos anos 2010 foi o fortalecimento das relações internas
entre os Estados-membros nas áreas de investimento e comércio mútuo. Os
intercâmbios e a comunicação entre os governos nacionais e as organizações
governamentais também se intensificaram e, além das cúpulas anuais, foram
criados inúmeros grupos de trabalho e fóruns. Até meados dos anos 2010, as ONGs
brasileiras e internacionais, como a Oxfam,
tinham a ilusão de poder assessor o BRICS sobre como lidar com a
sociedade civil.
No entanto, não são os
ativistas de ONG que se reúnem no âmbito do BRICS, mas, sim,
representantes de ministérios, partidos no poder, empresas, mundo acadêmico
etc. Isto cria redes de elites funcionais, estreitamente associadas aos
governos. Esta prática mostra que o grupo BRICS não está muito
disposto a permitir a participação da sociedade civil. Pelo contrário, resultou
um retrocesso no que diz respeito à participação social na política
internacional, alcançada nas últimas décadas. O BRICS é um projeto puramente
intergovernamental.
<><> A
pandemia e a guerra da Rússia como catalisadores
Tudo isso aconteceu,
em grande medida, fora do radar do Ocidente, que desde a crise financeira
tem estado preocupado em gerir múltiplas crises e o “retorno da geopolítica”.
Só com a pandemia e
a invasão russa da Ucrânia é que o Ocidente percebeu que
não podia mais dar como certo que os países do Sul global continuariam
automaticamente a sua linha. Ficou claro que a ignorância ocidental teve um
alto preço. Ambos os acontecimentos reforçaram a tendência à reorganização
e desglobalização.
No que diz respeito
à pandemia, os países em desenvolvimento tiveram de enfrentar a amarga
verdade de que os países ricos do Ocidente não estavam dispostos a
reconhecer as vacinas contra a Covid-19 como um “bem comum global”, como exigiam
a Índia e a África do Sul. Pelo contrário, protegeram as
patentes de suas companhias farmacêuticas multinacionais, apesar dos
efeitos graves e incertos de uma pandemia global. A eclosão da guerra
na Ucrânia também demonstrou rapidamente que as guerras empreendidas pelas
principais potências têm consequências globais de longo alcance e que, com
sorte, podem ficar confinadas ao campo militar.
A própria guerra e o
apoio decisivo do Ocidente à Ucrânia geraram interrupções
na cadeia de abastecimento e escassez em vários mercados globais (alimentos, matérias-primas, energia etc.), provocando
aumentos de preços e taxa de juros e inflação mais elevadas, e trouxe novamente
a questão da dívida para a agenda de um grande número de países em
desenvolvimento.
O objetivo da aliança
ocidental era transformar a Rússia em um pária internacional e
deixá-la economicamente de joelhos, por meio de sanções duras e de longo
alcance, como nunca antes tinham sido aplicadas. No entanto, uma consequência
não desejada destas sanções foi uma grave perturbação do comércio internacional
e repercussões generalizadas nas próprias sociedades ocidentais. Neste
contexto, muitos países do Sul global votaram a favor da resolução da ONU,
de março de 2022, que condenou a guerra de agressão da Rússia.
No entanto, dos cinco
países BRICS, só o Brasil votou a favor. A Rússia, é claro,
votou contra. China, Índia e África do Sul se
abstiveram. Mesmo assim, apenas alguns países do Sul global aderiram às sanções
impostas pelo Ocidente, pois viram em perigo os seus interesses e relações
com a Rússia e consideraram que a guerra era um assunto ocidental ou,
mais precisamente, europeu.
Nesse conflito,
o Ocidente enfrentou repetidamente a sua própria dupla vara, que
prejudicou de modo permanente a sua credibilidade no Sul global. Não foi ele
próprio que violou o direito internacional e ignorou as normas
internacionais, em muitas ocasiões?
Certamente, o ministro
das Relações Exteriores da Índia, Subrahmanyam Jaishankar, descreveu
corretamente a visão do Sul global sobre a guerra na Ucrânia, quando
disse: “Em algum momento, a Europa terá de superar a mentalidade de que
os seus problemas são problemas do mundo, mas que os problemas do mundo não são
problemas seus. Se é com você, é seu, e se é comigo, é nosso”. E qualquer que
seja o impacto que a guerra na Ucrânia tenha na relação entre
o Ocidente e o Sul global, ela enfrenta uma nova prova de fogo no que
diz respeito à guerra entre Israel e o Hamas, em Gaza.
Muitos países em
desenvolvimento não veem razão para tomar partido a respeito da guerra na
Ucrânia. Em uma era em que mundo desenvolvido está reduzindo riscos e desarmando
dependências unilaterais de países (China e Rússia, em particular),
pela primeira vez, os países em desenvolvimento têm influência. De fato, de
repente estão sendo cortejados, seja pelas matérias-primas, porque são
necessários para resolver os fluxos migratórios globais ou simplesmente porque a crescente polarização entre
a China e os Estados Unidos está abrindo um espaço de negociação para os
“ninguéns” da comunidade internacional.
<><> A
ampliação do BRICS como um desafio para o Ocidente
Este ambiente tenso e
dinâmico foi o pano de fundo da XV Cúpula do BRICS, na África do Sul,
em agosto de 2023. Dois temas importantes estavam na agenda: ampliar o grupo
para incluir novos membros e um maior desacoplamento do dólar, por meio do aumento
do comércio em moedas nacionais.
Houve grande interesse
público na reunião, um sinal de que o BRICS se tornou o símbolo de
uma mudança no cenário global, embora o grupo pouco tenha alcançado em
termos de seus objetivos gerais de política de desenvolvimento. No entanto, em Joanesburgo,
havia uma fila de candidatos à adesão.
Segundo a África
do Sul, foram recebidas cerca de 20 solicitações formais e houve outros 20
países interessados. A questão da ampliação provocou discussões entre os
membros fundadores. A China e a Rússia se mostraram a
favor, ao passo que a Índia e o Brasil se opuseram. Sem
critérios formais de adesão, a admissão de novos membros era exclusivamente uma
questão de influência entre os membros fundadores. A seleção de novos membros,
que transformou o grupo de cinco países em outro de dez, não deixa dúvidas de que
a Rússia e a China se impuseram.
Entre os novos países
que se somaram, em janeiro de 2024 (Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados
Árabes Unidos), dois são monarquias, um teocracia, um ditadura militar de facto
e outro, hoje, atravessa uma guerra civil. O único caso
de democracia indiscutível era a Argentina, mas após a eleição
de Javier Milei, o novo governo de direita radical decidiu não entrar.
Por que não foram
levados em consideração países
como Indonésia, Tailândia, Nigéria, Vietnã, Malásia, Filipinas, Bangladesh, México e Colômbia?
A resposta é que os novos membros escolhidos cumprem uma tarefa muito
específica.
A ampliação
do BRICS com a incorporação de grandes exportadores de energia,
como a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e o Irã, melhora a
importância nominal do BRICS como associação energética e financeira.
Países como Irã, Rússia e China possuem grandes
incentivos para desenvolver sistemas monetários alternativos, pois temem
ser punidos e excluídos do sistema baseado no dólar. Esta ampliação também
aumenta o potencial para a promoção do uso de moedas diferentes do dólar na
fixação de preços, comércio e pagamento de energia.
A ampliação
do BRICS com a incorporação de novas potências
energéticas pode contribuir para o desenvolvimento de mercados comerciais
alternativos para a energia, tanto do petróleo quanto
do gás natural. Por exemplo, o comércio futuro de petróleo em renminbi
chinês, lançado em 2018, rapidamente avançou. O governo chinês também está
muito interessado em promover a utilização do renminbi no comércio de gás
natural.
Desse modo,
a Rússia e a China transformaram o BRICS em
um projeto antiocidental com o objetivo de quebrar a hegemonia
das potências ocidentais na atual ordem global e o domínio do
dólar estadunidense na economia global. Os elementos emancipatórios da fase
fundacional, vinculados a uma ambição de desenvolvimento integral, dão lugar a
um projeto geopolítico caracterizado por uma política de poder
tradicional, força econômica e militar e influência na política externa.
Se a ampliação
ocorrida se converter em norma, há grandes probabilidades de que
o BRICS+ degenere em um grupo de regimes predominantemente
autocráticos. Esta transformação não oferece nada em termos de progresso para
os povos do mundo em desenvolvimento e é mais provável que desencadeie em um
retorno ao tipo de política de grandes potências que caracterizou o século XIX.
O mundo
multipolar de Vladimir Putin e Xi Jinping formula reivindicações neoimperialistas sobre esferas de
interesse autodefinidas. Não está sujeito a qualquer norma e é exatamente o
oposto a um mundo multilateral em que todos agem de acordo com as
mesmas regras. Esta noção de multipolaridade destrói a ordem baseada
em regras e substitui a força da lei pela lei do mais forte. A cada líder
autocrático é garantida a liberdade de ação em seu próprio país.
<><>
Futuro aberto
Ao mesmo tempo, o
grupo está se tornando ainda mais heterogéneo do que já era, com desequilíbrios
crescentes entre os países membros e conflitos abertos entre os novos filiados.
Resta saber como as três democracias restantes (Brasil, Índia e África
do Sul) abordarão o novo enfoque, mais limitado e ao mesmo tempo mais
agressivo. O presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, que defendeu firmemente a adesão argentina, enfatizou
em Joanesburgo que o grupo BRICS não se dirige contra
outros, mas, ao contrário, busca melhorar a posição do Sul global na ordem
internacional.
E alguns analistas
argumentam que, para a Índia, “o país mais populoso do mundo, a cúpula é
apenas um espetáculo secundário, porque a Índia tem ambições maiores,
o que torna a cúpula do BRICS apenas uma entre muitas”. Em tal contexto,
é duvidoso que a nova direção e a ampliação para o BRICS+ tornem o
grupo mais funcional. De qualquer forma, é um desafio direto para
o Ocidente.
Por mais cético que se
possa ser sobre o futuro do BRICS+, o interesse demonstrado na cúpula
de Joanesburgo e o número de países candidatos demonstram que a
multipolaridade está solidamente estabelecida na atual ordem global.
O BRICS, ou o futuro BRICS+, geralmente é tratado como um ator a mais
neste contexto. No entanto, quando se observa mais de perto,
o BRICS parece mais um sintoma das mudanças na arena internacional do
que uma causa. O equilíbrio entre Estados e “civilizações” está mudando com a
modernização econômica e tecnológica do antigo “Terceiro Mundo”.
E
o BRICS está dando a estas mudanças uma cara institucional. Para que
isto tenha êxito, muitas vezes, basta promover a política simbólica. Quando se
observa o legado da “associação frouxa”, é evidente que as conquistas
econômicas e de desenvolvimento substanciais são limitadas, ao passo que o
impacto geopolítico em um mundo de discursos que rivalizam pode ser
considerável.
No entanto, a história
nos ensina que em um mundo com múltiplos centros de poder, o risco de conflitos
e guerras tende a aumentar. Um mundo multipolar só pode garantir estabilidade, se as grandes potências
colaborarem. Quando a multipolaridade não está integrada
ao multilateralismo, o resultado é a fragmentação e a guerra.
O Ocidente, e
a União Europeia em particular, deveriam ver este processo como uma
chamada de atenção tardia. Se a União Europeia deseja continuar sendo
um ator global, deve ter clareza de que a multipolaridade veio para ficar e que
o panorama estratégico provavelmente se tornará ainda mais complicado.
Para avançar em um
ambiente assim, será necessário que a União Europeia vá além do marco
transatlântico centrado no Ocidente e se comprometa verdadeiramente
com os países em desenvolvimento. Isto significa compartilhar o conhecimento, a
experiência e a sabedoria da Europa com os seus parceiros, mas sem
sermões e intimidações.
A União
Europeia terá de aprender a tomar decisões autônomas em um mundo
multipolar cada vez mais imprevisível e muitas vezes fragmentado. Contudo,
talvez esteja mais bem equipada para fazer isso do que a maioria dos outros
atores. Como aliança de Estados-membros muito diferentes, díspares e muitas
vezes em conflito, está acostumada a situações complexas e com a arte de
pactuar em negociações árduas.
Fonte: Por Uwe
Optenhögel, para Nueva Sociedad
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