Moisés Mendes: Cuca
e Bolsonaro
Cuca
foi derrubado pela torcida do Corinthians porque grupos sociais, entre os quais
os que mobilizam torcidas e paixões, se fortalecem em espaços de organização,
pressão, denúncia e deliberação que a extrema direita pode tentar, mas não
consegue ocupar.
O
desfecho do caso do treinador está muitos degraus acima das questões
identitárias, ao contrário do que alguns dão a entender, apesar da reação ter
sido liderada por mulheres.
Corintianos
e todos os que se mobilizaram contra a escolha de Cuca explicitaram o sentimento
de desconforto com a impunidade. Essa é a questão central.
Cuca
voltou para o Brasil, depois de ser preso na Suíça sob a acusação de ter
abusado de uma menina de 13 anos, foi condenado lá e não cumpriu pena alguma.
O
caso é exemplar como lição para o Brasil que não sabe até agora se os crimes do
fascismo terão alguma reparação.
O
país retomou, com o crime de Berna, o debate de uma impunidade que vem desde
1987 e estava sob as mesmas cinzas que camuflam crimes semelhantes.
Cresce
o sentimento de que grandes criminosos escapam sempre e de que os bandidos do
bolsonarismo também poderão escapar.
Os
torcedores do Corinthians, especialmente as minas corintianas, nos oferecem uma
lição para muito além do futebol.
A
direita, com o apoio de parte de esquerda, pode repetir o clichê raso de que
esporte e política não se misturam.
Misturam-se,
sim. Tanto que os grandes clubes estão tomados de reacionários, incluindo
técnicos que fazem discursos alinhados com a extrema direita. Os dirigentes do
futebol são bolsonaristas assumidos ou dissimulados.
Mas
o caso de Cuca não é sobre futebol nem sobre política. É sobre percepção de
justiça e de impunidade de uma figura pública com liderança e poder para
transmitir exemplos.
Assim
como os casos dos criminosos do fascismo não são apenas sobre política. São
sobre genocídio, golpe, corrupção, lavagem de dinheiro, afronta às
instituições, roubo de joias, formação de quadrilhas, disseminação de ódio,
violência, morte e mentira.
A
resposta à sensação de impunidade, que pode ter acabado com a carreira de Cuca,
é convocada a acionar reações com essa intensidade contra a violência cotidiana
enfrentada pelas mulheres e em muitas outras áreas.
Os
fascistas impunes, mobilizados pelo golpe de 2016 e que chegaram ao poder em
2019, que planejaram as mortes da pandemia, que roubaram, organizaram a
extinçãode de indígenas e articularam-se com grileiros, garimpeiros, militares
e milicianos, todos esses fascistas estão impunes.
O
Brasil que expeliu Cuca do futebol, talvez para sempre, é o mesmo que quase
reelegeu o sujeito do caso das meninas venezuelanas.
Cuca
ficou impune depois de condenado por violência sexual contra uma criança de 13
anos. Bolsonaro quase foi reeleito em meio a dezenas de crimes e depois de
confessar atração por uma criança de 14 anos ao andar pela rua.
Sentiu-se
tão atraído que chegou ir à casa da menina pobre para conferir a sensação de
que um clima havia sido criado entre os dois.
Daqui
a 36 anos, o mesmo tempo desde o caso de Berna, o Brasil todo, e não só uma
metade, se dará conta de quem foi Bolsonaro e da gravidade das suas atitudes e
falas e dos seus crimes?
Que
a CPMI do Golpe cumpra a missão de expor o criminoso e seus comparsas e
denunciá-los como bandidos, com o suporte de todo o sistema de Justiça, e não
só de Alexandre de Moraes.
Ø
As
histórias contadas pelo advogado que tirou Cuca da cadeia na Suíça
Com
a saída de Cuca do Corinthians, é provável
que a polêmica envolvendo a sua condenação pela Justiça da Suíça, aos poucos,
vá sumindo do noticiário. Mas uma postagem no perfil de Bianca Molina
(@bimolina), no Twitter, dá detalhes sobre a forma como o ex-jogador do Grêmio
saiu da prisão de Berna.
O
entrevistado é o advogado é o ex-presidente e dirigente histórico do Grêmio,
Luiz Carlos Silveira Martins, conhecido como Cacalo, que, na época, final da
década de 1980, era diretor jurídico do clube.
“Estourou a bomba, quatro jogadores presos, e
o presidente me chamou, numa sexta-feira de noite, e disse: ‘vai pra lá
amanhã’. Eu fui, passei 22 dias e consegui liberta-los. Eles foram condenados,
mas eu voltei com ele”, contou Cacalo.
E
depois acrescentou um encontro fortuito que teve com Cuca, meses após o
episódio:
“Cuca
foi vendido para o Valladolid, hoje time de Ronaldo. E fui para a Espanha,
resolver um problema, receber talvez uma parcelas da venda, não lembro, e
encontrei com o Cuca, com quem me dou muito bem até hoje. Ai ele disse pra mim
assim: ‘O Valladolid vai fazer uma excursão na Suiça. E eu estou com dor no
joelho desde já (risos”.
Enfim,
Cuca sabia que, se colocasse os pés em território suíço, fatalmente seria preso
novamente.
Ø
As
diferentes versões de Cuca para o crime de 1987
Entre
agosto de 1987, quando deixou a prisão na Suíça e voltou para o Brasil, e abril
de 2023, ao pedir demissão do Corinthians após sete
dias de trabalho, o técnico Cuca mudou muitas vezes de versão sobre o crime
ocorrido em Berna.
Como
o ge revelou na
sexta-feira, o processo de 1.023 páginas está guardado nos Arquivos do Estado
do Cantão de Berna. Segundo a diretora da instituição, Barbara Studer, o documento mostra que havia sêmen de
Cuca na adolescente que foi vítima de um ato sexual cometido em 1987 por quatro
homens que na época eram jogadores do Grêmio.
Sentença
que condenou Cuca por ato sexual com menor há 34 anos é confirmada
Os
advogados de Cuca responderam ao ge com
a seguinte nota:
–
A defesa de Cuca reputa ser lamentável o irresponsável linchamento por
situações ocorridas há 34 anos [o julgamento ocorreu em 1989] e contrária à
realidade dos fatos. Reafirme-se que Cuca não manteve qualquer relação ou
contato físico com a vítima, que, aliás, não o reconheceu, conforme confirmado
por diversas reportagens daquela época. Distorções e especulações serão
responsabilizadas cível e penalmente, ainda mais por se tratar de processo
sigiloso, evidenciando a precariedade e inconsistência de qualquer pretensa
informação fornecida por terceiros.
Uma
semana antes, o próprio Cuca negou que tivesse
participado do ato –
afirmou que apenas esteve no mesmo quarto, mas não viu a ação – e disse ainda
que não foi reconhecido pela vítima.
–
Esse é um tema delicado, um tema pessoal meu. Eu faço questão de falar sobre
ele, e vou tentar ser o mais aberto possível quanto a isso, quanto ao que me
cabe. É um tema que aconteceu há 30 anos, em 1987, eu fazia, não sei ao certo,
estava emprestado do Juventude ao Grêmio, fiquei uns 20 dias para tirar o
passaporte. Tenho vaga lembrança de tudo o que aconteceu porque foi há muito
tempo. Nessa vaga lembrança que tenho, eu tinha 20 e poucos anos na época. Nós
iríamos jogar uma partida, subiu uma menina ao quarto, o quarto era o que eu
estava junto com outros jogadores. Era um quarto duplo. Essa foi a minha
participação nesse caso. Eu sou totalmente inocente, eu não fiz nada – disse
Cuca.
Segundo
publicação do jornal Correio do Povo de 1987, Cuca admitiu que o abuso ao
desembarcar em Porto Alegre ao lado dos três companheiros de Grêmio depois de
passarem um mês detidos na Suíça.
–
Fiquei com a impressão de que ela [vítima] tinha 18 anos.
–
Eles [pais de Rejane, esposa de Cuca até hoje] acharam que recebemos uma
punição severa demais pela falta que cometemos – disse Cuca.
Em
31 agosto de 1987, quando ainda era jogador do Grêmio, Cuca deu versão semelhante.
De acordo com uma reportagem do jornal Zero Hora, recuperada neste sábado pelo
portal Uol, Cuca disse:
–
Estou de braços abertos para qualquer decisão. Temos que pagar, todos os
envolvidos. Não adianta separar menor ou maior participação.
Mas,
dois dias antes, na edição de 29 de agosto de 1987 do jornal Zero Hora, Cuca
havia se declarado inocente, mas admitiu que viu a cena.
–
Fui em princípio condenado por algo que não cometi. Apenas olhei uma cena e
isto me custou muito caro. Sofri muito com toda esta história.
Em
março de 2021, em entrevista para a jornalista Marília Ruiz, Cuca se declarou
inocente.
–
Não fui julgado e culpado. Fui julgado à revelia, não estava mais no Grêmio
quando houve esse julgamento com os outros rapazes. É uma coisa que eu tenho
uma lembrança muito vaga, até porque não houve nada. Não houve estupro como
falam, como dizem as coisas. Houve uma condenação por ter uma menor adentrado o
quarto. Simplesmente isso. Não houve abuso sexual, [não houve] tentativa de
abuso ou coisa assim.
Na
entrevista ao jornal gaúcho publicada em 31 de agosto de 1987, Cuca e os outros
três jogadores condenados no caso – Henrique Etges, Fernando Castoldi e Eduardo
Hamester – relatam como foi o período em que ficaram presos na Suíça.
–
Jamais pensei que uma coisa assim pudesse acontecer comigo. Não sei se foi ato
infantil, um passo em falso, mas é difícil julgar os 50 dias em poucos minutos.
Só posso garantir que isso nunca se repetirá. A tensão e a angústia quase me
mataram. Se tivesse que ficar preso, eu preferia morrer. Eu pensava na minha
mulher, quase nunca dormia. Quando conseguia, acordava, passava a mão do lado e
não encontrava a Rejane. Aí me batia o desespero. Passei 10 dias sem falar nada
e só me acalmava com injeções e sedativos. Cheguei ao desespero, cheguei a
desacreditar em Deus, mas só podia falar com ele, por isso minha fé foi
reafirmada – disse Cuca.
Os
quatro foram detidos na noite de 30 de julho de 1987, acusados de terem
trancado uma adolescente de 13 anos no quarto do hotel em que o time se
hospedava, e terem abusado sexualmente dela. Foram libertados no dia 28 de
agosto e voltaram para Porto Alegre no dia seguinte.
Dois
anos depois, o julgamento do caso condenaria Cuca, Henrique e Eduardo a 15
meses de prisão por ato sexual com menor e coação, enquanto Fernando seria
condenado a uma pena menor, de três meses, apenas por coação. Eles não estavam
presencialmente em Berna durante o julgamento.
Fonte:
Brasil 247/ge
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