domingo, 30 de abril de 2023

Moisés Mendes: Cuca e Bolsonaro

Cuca foi derrubado pela torcida do Corinthians porque grupos sociais, entre os quais os que mobilizam torcidas e paixões, se fortalecem em espaços de organização, pressão, denúncia e deliberação que a extrema direita pode tentar, mas não consegue ocupar.

O desfecho do caso do treinador está muitos degraus acima das questões identitárias, ao contrário do que alguns dão a entender, apesar da reação ter sido liderada por mulheres.

Corintianos e todos os que se mobilizaram contra a escolha de Cuca explicitaram o sentimento de desconforto com a impunidade. Essa é a questão central.

Cuca voltou para o Brasil, depois de ser preso na Suíça sob a acusação de ter abusado de uma menina de 13 anos, foi condenado lá e não cumpriu pena alguma.

O caso é exemplar como lição para o Brasil que não sabe até agora se os crimes do fascismo terão alguma reparação.

O país retomou, com o crime de Berna, o debate de uma impunidade que vem desde 1987 e estava sob as mesmas cinzas que camuflam crimes semelhantes.

Cresce o sentimento de que grandes criminosos escapam sempre e de que os bandidos do bolsonarismo também poderão escapar.

Os torcedores do Corinthians, especialmente as minas corintianas, nos oferecem uma lição para muito além do futebol.

A direita, com o apoio de parte de esquerda, pode repetir o clichê raso de que esporte e política não se misturam.  

Misturam-se, sim. Tanto que os grandes clubes estão tomados de reacionários, incluindo técnicos que fazem discursos alinhados com a extrema direita. Os dirigentes do futebol são bolsonaristas assumidos ou dissimulados.

Mas o caso de Cuca não é sobre futebol nem sobre política. É sobre percepção de justiça e de impunidade de uma figura pública com liderança e poder para transmitir exemplos.

Assim como os casos dos criminosos do fascismo não são apenas sobre política. São sobre genocídio, golpe, corrupção, lavagem de dinheiro, afronta às instituições, roubo de joias, formação de quadrilhas, disseminação de ódio, violência, morte e mentira.

A resposta à sensação de impunidade, que pode ter acabado com a carreira de Cuca, é convocada a acionar reações com essa intensidade contra a violência cotidiana enfrentada pelas mulheres e em muitas outras áreas.

Os fascistas impunes, mobilizados pelo golpe de 2016 e que chegaram ao poder em 2019, que planejaram as mortes da pandemia, que roubaram, organizaram a extinçãode de indígenas e articularam-se com grileiros, garimpeiros, militares e milicianos, todos esses fascistas estão impunes.

O Brasil que expeliu Cuca do futebol, talvez para sempre, é o mesmo que quase reelegeu o sujeito do caso das meninas venezuelanas.

Cuca ficou impune depois de condenado por violência sexual contra uma criança de 13 anos. Bolsonaro quase foi reeleito em meio a dezenas de crimes e depois de confessar atração por uma criança de 14 anos ao andar pela rua.

Sentiu-se tão atraído que chegou ir à casa da menina pobre para conferir a sensação de que um clima havia sido criado entre os dois.

Daqui a 36 anos, o mesmo tempo desde o caso de Berna, o Brasil todo, e não só uma metade, se dará conta de quem foi Bolsonaro e da gravidade das suas atitudes e falas e dos seus crimes?

Que a CPMI do Golpe cumpra a missão de expor o criminoso e seus comparsas e denunciá-los como bandidos, com o suporte de todo o sistema de Justiça, e não só de Alexandre de Moraes.

 

Ø  As histórias contadas pelo advogado que tirou Cuca da cadeia na Suíça

 

Com a saída de Cuca do Corinthians, é provável que a polêmica envolvendo a sua condenação pela Justiça da Suíça, aos poucos, vá sumindo do noticiário. Mas uma postagem no perfil de Bianca Molina (@bimolina), no Twitter, dá detalhes sobre a forma como o ex-jogador do Grêmio saiu da prisão de Berna.

O entrevistado é o advogado é o ex-presidente e dirigente histórico do Grêmio, Luiz Carlos Silveira Martins, conhecido como Cacalo, que, na época, final da década de 1980, era diretor jurídico do clube.

 “Estourou a bomba, quatro jogadores presos, e o presidente me chamou, numa sexta-feira de noite, e disse: ‘vai pra lá amanhã’. Eu fui, passei 22 dias e consegui liberta-los. Eles foram condenados, mas eu voltei com ele”, contou Cacalo.

E depois acrescentou um encontro fortuito que teve com Cuca, meses após o episódio:

“Cuca foi vendido para o Valladolid, hoje time de Ronaldo. E fui para a Espanha, resolver um problema, receber talvez uma parcelas da venda, não lembro, e encontrei com o Cuca, com quem me dou muito bem até hoje. Ai ele disse pra mim assim: ‘O Valladolid vai fazer uma excursão na Suiça. E eu estou com dor no joelho desde já (risos”.

Enfim, Cuca sabia que, se colocasse os pés em território suíço, fatalmente seria preso novamente.

 

Ø  As diferentes versões de Cuca para o crime de 1987

 

Entre agosto de 1987, quando deixou a prisão na Suíça e voltou para o Brasil, e abril de 2023, ao pedir demissão do Corinthians após sete dias de trabalho, o técnico Cuca mudou muitas vezes de versão sobre o crime ocorrido em Berna.

Como o ge revelou na sexta-feira, o processo de 1.023 páginas está guardado nos Arquivos do Estado do Cantão de Berna. Segundo a diretora da instituição, Barbara Studer, o documento mostra que havia sêmen de Cuca na adolescente que foi vítima de um ato sexual cometido em 1987 por quatro homens que na época eram jogadores do Grêmio.

Sentença que condenou Cuca por ato sexual com menor há 34 anos é confirmada

Os advogados de Cuca responderam ao ge com a seguinte nota:

– A defesa de Cuca reputa ser lamentável o irresponsável linchamento por situações ocorridas há 34 anos [o julgamento ocorreu em 1989] e contrária à realidade dos fatos. Reafirme-se que Cuca não manteve qualquer relação ou contato físico com a vítima, que, aliás, não o reconheceu, conforme confirmado por diversas reportagens daquela época. Distorções e especulações serão responsabilizadas cível e penalmente, ainda mais por se tratar de processo sigiloso, evidenciando a precariedade e inconsistência de qualquer pretensa informação fornecida por terceiros.

Uma semana antes, o próprio Cuca negou que tivesse participado do ato – afirmou que apenas esteve no mesmo quarto, mas não viu a ação – e disse ainda que não foi reconhecido pela vítima.

– Esse é um tema delicado, um tema pessoal meu. Eu faço questão de falar sobre ele, e vou tentar ser o mais aberto possível quanto a isso, quanto ao que me cabe. É um tema que aconteceu há 30 anos, em 1987, eu fazia, não sei ao certo, estava emprestado do Juventude ao Grêmio, fiquei uns 20 dias para tirar o passaporte. Tenho vaga lembrança de tudo o que aconteceu porque foi há muito tempo. Nessa vaga lembrança que tenho, eu tinha 20 e poucos anos na época. Nós iríamos jogar uma partida, subiu uma menina ao quarto, o quarto era o que eu estava junto com outros jogadores. Era um quarto duplo. Essa foi a minha participação nesse caso. Eu sou totalmente inocente, eu não fiz nada – disse Cuca.

Segundo publicação do jornal Correio do Povo de 1987, Cuca admitiu que o abuso ao desembarcar em Porto Alegre ao lado dos três companheiros de Grêmio depois de passarem um mês detidos na Suíça.

– Fiquei com a impressão de que ela [vítima] tinha 18 anos.

– Eles [pais de Rejane, esposa de Cuca até hoje] acharam que recebemos uma punição severa demais pela falta que cometemos – disse Cuca.

Em 31 agosto de 1987, quando ainda era jogador do Grêmio, Cuca deu versão semelhante. De acordo com uma reportagem do jornal Zero Hora, recuperada neste sábado pelo portal Uol, Cuca disse:

– Estou de braços abertos para qualquer decisão. Temos que pagar, todos os envolvidos. Não adianta separar menor ou maior participação.

Mas, dois dias antes, na edição de 29 de agosto de 1987 do jornal Zero Hora, Cuca havia se declarado inocente, mas admitiu que viu a cena.

– Fui em princípio condenado por algo que não cometi. Apenas olhei uma cena e isto me custou muito caro. Sofri muito com toda esta história.

Em março de 2021, em entrevista para a jornalista Marília Ruiz, Cuca se declarou inocente.

– Não fui julgado e culpado. Fui julgado à revelia, não estava mais no Grêmio quando houve esse julgamento com os outros rapazes. É uma coisa que eu tenho uma lembrança muito vaga, até porque não houve nada. Não houve estupro como falam, como dizem as coisas. Houve uma condenação por ter uma menor adentrado o quarto. Simplesmente isso. Não houve abuso sexual, [não houve] tentativa de abuso ou coisa assim.

Na entrevista ao jornal gaúcho publicada em 31 de agosto de 1987, Cuca e os outros três jogadores condenados no caso – Henrique Etges, Fernando Castoldi e Eduardo Hamester – relatam como foi o período em que ficaram presos na Suíça.

– Jamais pensei que uma coisa assim pudesse acontecer comigo. Não sei se foi ato infantil, um passo em falso, mas é difícil julgar os 50 dias em poucos minutos. Só posso garantir que isso nunca se repetirá. A tensão e a angústia quase me mataram. Se tivesse que ficar preso, eu preferia morrer. Eu pensava na minha mulher, quase nunca dormia. Quando conseguia, acordava, passava a mão do lado e não encontrava a Rejane. Aí me batia o desespero. Passei 10 dias sem falar nada e só me acalmava com injeções e sedativos. Cheguei ao desespero, cheguei a desacreditar em Deus, mas só podia falar com ele, por isso minha fé foi reafirmada – disse Cuca.

Os quatro foram detidos na noite de 30 de julho de 1987, acusados de terem trancado uma adolescente de 13 anos no quarto do hotel em que o time se hospedava, e terem abusado sexualmente dela. Foram libertados no dia 28 de agosto e voltaram para Porto Alegre no dia seguinte.

Dois anos depois, o julgamento do caso condenaria Cuca, Henrique e Eduardo a 15 meses de prisão por ato sexual com menor e coação, enquanto Fernando seria condenado a uma pena menor, de três meses, apenas por coação. Eles não estavam presencialmente em Berna durante o julgamento.

 

Fonte: Brasil 247/ge

 

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