Cacau, manga,
banana e maçã: frutas produzidas em terras indígenas abastecem União Europeia
Do
Mato Grosso do Sul até o Vale do Rio São Francisco, entre Bahia e Pernambuco,
são vários os casos que demonstram a participação da fruticultura nas
sobreposições em Terras Indígenas (TIs). Boa parte dessas empresas abastecem
tanto o mercado interno quanto internacional, exportando principalmente para
países europeus.
As
informações fazem parte do relatório “Os Invasores: quem são os empresários
brasileiros e estrangeiros com mais sobreposições em terras indígenas”, publicado no dia
19 pelo De Olho nos Ruralistas. Entre os principais casos está uma incidência
de 1.145,77 hectares da Ducoco Agrícola, exportadora de água, leite e derivados
de coco. Com base nos dados fundiários do Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (Incra), foram identificadas 1.692 sobreposições de imóveis
privados em áreas demarcadas pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
Além
do caso Ducoco, que será detalhado em reportagem específica, o observatório
identificou outras dez sobreposições de empresários do setor de fruticultura,
englobando os segmentos de cacau, café, banana, maçã e manga. Os casos envolvem
de pequenas distribuidoras de frutas a multinacionais, como fabricante de fertilizantes
luso-espanhola Tradecorp.
A
empresa é dona da Agrícola Camburi Ltda, titular de um conjunto de
sobreposições à TI Kanela Memortumré, no Maranhão. Ali, fazendas de caju
totalizam uma sobreposição de 3.748 hectares. Por meio da Camburi II Participação
Ltda, a empresa possui quatro sócios em comum com a gigante dos fertilizantes
Tradecorp. São eles: Roberto Berwanger Batista, Jorge Luis de Almeida, Jorge
Ricci Junior e Rafael Leiria Nunes. Desde o ano 2000, a Tradecorp faz parte do
Grupo Rovensa, líder mundial em soluções biológicas fundado há quase cem anos
em Portugal.
Confira
abaixo as fazendas de fruticultores detectadas pelo Incra em incidência em
terras indígenas:
PRODUTORES
DE CACAU E MANGA DISPUTAM TERRAS COM INDÍGENAS NA BAHIA
No
sul da Bahia, em Porto Seguro, o Grupo Lembrance, fundado por uma família
homônima e natural do Espírito Santo, se destaca como um dos maiores produtores
de cacau do país. Com a técnica de irrigação por gotejamento, presente nas
plantações da família por meio de uma parceria com a Netafim, do grupo mexicano
Orbia, as fazendas Lembrance vêm batendo recordes de produção do fruto.
Ao
lado do Pará, a Bahia possui a maior produção de cacau no país, fazendo do
Brasil o quinto maior produtor mundial da fruta. Particularmente no sul do
estado, a atividade é de grande relevância para a economia baiana, a ponto da
região ser batizada de Costa do Cacau.
Referência
no setor, o Grupo Lembrance protagoniza conflitos territoriais em terras
indígenas. Em Porto Seguro, a família é proprietária da Fazenda Lembrança II,
de 422 hectares, dos quais 236,67 ha estão sobrepostos à TI Barra Velha do
Monte Pascoal. Em constante conflito com o povo Pataxó, que habita o
território, os irmãos Lembrance são autores de um dos mandados de segurança
responsáveis pela suspensão da ampliação do território Pataxó no sul da Bahia.
No
extremo norte do estado, em Abaré, divisa com Pernambuco, há mais um caso onde
a fruticultura é o pretexto econômico para propriedades rurais estabelecidas em
territórios indígenas. Dos 715 hectares da Fazenda Bom Jesus, apenas 5 não
incidem sobre a TI Tumbalalá. O imóvel está registrado em nome da Agropecuária
Roriz Dantas, a Agrodan. Voltada para a exportação de mangas para o continente
europeu e certificada pela Rainforest
Alliance, a empresa faturou R$ 150 milhões em 2021, consolidando-se
como maior exportadora do gênero no país.
Enquanto
isso, o povo Tumbalalá aguarda há catorze anos pelo andamento de seu processo
demarcatório, paralisado desde 2009, quando a Funai publicou o relatório de
identificação da área. Em março deste ano, os indígenas se juntaram aos
Tupinambá e foram a Brasília cobrar o novo
governo para que agilize as demarcações na Bahia.
EXPORTADORA
DE CAFÉ TENTA IMPEDIR DEMARCAÇÃO DE TERRITÓRIO PATAXÓ
Nos
meses subsequentes à edição, pelo governo Bolsonaro, da Instrução Normativa
nº 9/2020 da Funai, uma
das TIs que mais sofreu com certificações de imóveis rurais foi a de Barra
Velha do Monte Pascoal, localizada entre os municípios de Prado e Porto Seguro,
no extremo sul da Bahia, em uma região conhecida como Costa do Descobrimento —
ou, para os indígenas, da primeira invasão.
Entre
as propriedades certificadas em sobreposição irregular à TI Barra Velha do
Monte Pascoal está o Conjunto Bom Jardim. Após a instrução ser publicada pela
Funai, em abril de 2020, os proprietários da fazenda conseguiram registrar 257
hectares incidentes no território do povo Pataxó. Anteriormente, os
proprietários do Conjunto Bom Jardim contestaram a demarcação na Justiça, mas
foram derrotados.
No
Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR), quem aparece como proprietário da
Fazenda Conjunto Bom Jardim é Adhemar Tadeu Nicchio, presidente da Nicchio
Café. Outro membro da diretoria da empresa, Claudio Nicchio, consta como um dos
autores da ação judicial dos
proprietários da fazenda contra a demarcação da TI Barra Velha do Monte
Pascoal, ao lado de Claudia Nicchio e Jaqueline Kelly Nicchio Von Gleihn.
Liderado
pela holding Nicchio Sobrinho Café S/A, o grupo exporta grãos de café arábica
para a Europa, EUA, Oriente Médio e Ásia. A família possui forte atuação
política por meio do Conselho dos Exportadores de Café do Brasil (Cecafé), onde
ocupa o Conselho de Administração. O Cecafé é uma das 48 organizações
associadas do Instituto Pensar Agro (IPA), braço logístico da Frente
Parlamentar da Agropecuária, e “patrono” da Frente Parlamentar do Café.
A
Nicchio tem sede no número 675 da avenida Nossa Senhora dos Navegantes, em
Vitória, Espírito Santo. Trata-se do edifício Palácio do Café, em 2010 alvo da
Operação Broca da Polícia Federal, contra um esquema
de sonegação fiscal montado por empresas de exportação e torrefação de café.
FRUTICULTORES
AMEAÇAM DIREITOS DOS POVOS GUARANI
Em
Japorã (MS), a Fazenda São Jorge, da Agropecuária Pedra Branca Ltda, empresa de
cultivo de frutas e criação de gado, possui 1.624 hectares, dos quais 1.623,93
sobrepostos à TI Yvy-Katu, lar do povo Guarani Nhandeva. A empresa está
registrada em nome de Pedro Macedo Fernandes e Patricia Fernandes Krasiltchik.
Os sócios são proprietários da Frutabras – Comércio e Transporte Internacional,
por onde realizam a exportação de maçãs e outras frutas. A empresa está no ramo
de distribuição desde 1986, quando se tornou permissionária da Ceagesp em São
Paulo. Possui filiais em Campinas, Ribeirão Preto e Rio de Janeiro.
Realizada
quase 100% de forma manual, a colheita de maçãs tornou-se uma das principais
atividades econômicas para os Guarani, aliciados em seus territórios para
trabalhar nos pomares da região e do Rio Grande do Sul. Estima-se que 13 mil trabalhadores indígenas
atuem na colheita do fruto, submetidos a jornadas de trabalho exaustivas em troca
de uma remuneração baixa.
A
banana é mais um gênero com destaque no que se refere à sobreposição em
territórios indígenas. Em Grajaú (MA), Márcio Sonomura, conhecido fruticultor
radicado em Minas Gerais, é titular da Fazenda Cabeceiras, de 3.627 hectares,
com 1.989 hectares reivindicados pelo povo Guajá, da TI Bacurizinho. Em 2010,
Sonomura era considerado o maior exportador de bananas orgânicas do país,
grande parte delas vendidas para a Alemanha.
Em
São João das Missões (MG), a Icil Indústria e Comércio Itacarambi, dos sócios
Milton Dias Filho e Juventino Dias Neto, consta nos dados do Sigef como dona da
Fazenda Sumaré Gerais, com 4.384 hectares, quase completamente sobrepostos à TI
Xakriabá. Apenas 2 hectares não incidem sobre a área reivindicada pelos
indígenas para ampliação. Em vídeo institucional de 2021, a empresa afirmou produzir
50 toneladas de banana por hectare na mesma área, com financiamento do Banco do
Nordeste. O banco é dono de outra área incidente na TI Xakriabá, a Fazenda
Dizimeiro, com 2.347,69 ha de sobreposição detectados pelo Incra.
O
território de Minas Gerais foi tema de reportagem específica, oriunda do dossiê
“Os Invasores”: “Dono do site O Antagonista tem área
sobreposta em terra do povo Xakriabá“.
Ø
Multinacionais
da cana avançam sobre território Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul
Três
grandes empresas do setor sucroenergético no Brasil — financiadas com
expressivos aportes internacionais — têm conexões com propriedades rurais
sobrepostas a uma mesma terra indígena brasileira, a TI Dourados-Amambaipeguá
I, do povo Guarani Kaiowá, que abrande os municípios de Amambai, Caarapó e
Laguna Carapã, no Mato Grosso do Sul. São elas o Grupo Cosan, a Usina Santa
Adélia e a Usina Três Barras.
Os
dados fazem parte do relatório “Os Invasores: quem são os empresários
brasileiros e estrangeiros com mais sobreposições em terras indígenas”, publicado na
última quarta-feira (19) pelo De Olho nos Ruralistas. Com base nos dados
fundiários do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o
estudo identificou 1.692 sobreposições de imóveis privados em áreas demarcadas
pela Funai em todo país. Destas, 630 estão em terras sul-mato-grossenses.
No
município de Laguna Carapã, a Fazenda Campanário tem 238,5 hectares sobrepostos
à TI Dourados-Amambaipeguá I. O imóvel está registrado em nome da Campanário
S/A, empresa pertencente à Renato Eugênio de Rezende Barbosa. Junto aos irmãos
Roberto e José Eugênio, Renato era dono da Nova América, cujas usinas de cana
foram incorporadas em 2009 pela Cosan, dando à família Rezende Barbosa uma
participação de 11,9% no capital do
grupo — atrás apenas de Rubens Ometto Silveira Mello, o sócio-controlador.
Com
a internacionalização da Cosan — que, junto à petroleira anglo-holandesa Shell,
controla a maior produtora de açúcar e etanol do mundo, a Raízen —, a família
foi gradualmente vendendo suas ações. Roberto de Rezende Barbosa foi o último
dos grandes acionistas individuais que não pertenciam à família Ometto,
deixando o conselho de sócios em 2019.
A
relação não se restringe à conexão corporativa. A Campanário é uma das
principais fornecedoras da Raízen no Mato Grosso do Sul. Em agosto de 2022, a
empresa foi homenageada pela multinacional com o título de “Produtor de Excelência” e foi reconhecida
como “modelo de gestão de sustentabilidade” pelo programa Elo Raízen.
No
mês passado, em março de 2023, o grupo recebeu um novo aporte financeiro. Desta
vez, do fundo soberano de Singapura, o GIC, que se tornou um dos maiores
acionistas da Raízen, adquirindo 5,09% das ações.
Confira
abaixo outras sobreposições de usineiros e canavieiros em TIs, segundo dados do
Incra:
FAMÍLIA
PLANTOU CANA EM TERRA INDÍGENA COM DINHEIRO DO BNDES
O
conflito da família Rezende Barbosa com os Guarani Kaiowá vem de longa data. Em
1972, Roberto — então diretor da Companhia Agrícola e Pastoril Campanário —
enviou à Funai um pedido para que a instituição retirasse “cerca de 76 índios
Kaiwá” que viviam dentro da fazenda de 19,7 mil hectares, comprada um ano
antes. Poucos meses depois, em plena ditadura militar, a Funai enviou uma missão antropológica que constatou
a presença dos indígenas desde 1927 — muito antes, portanto, da chegada dos
usineiros paulistas.
Em
2012, um relatório da Rede Social de Justiça e Direitos
Humanos denunciou
o grupo Nova América, dos Rezende Barbosa, por realizar o plantio de cana
dentro de uma terra indígena vizinha, a TI Guyraroká, em Caarapó, utilizando
financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Também
pertencente ao povo Guarani Kaiowá, o território possui um papel central na
discussão sobre o Marco Temporal. Em 2014, o procedimento administrativo de
demarcação da TI Guyraroká foi anulado pelo Supremo Tribunal Federal (STF),
acolhendo a tese de produtores rurais da região de que os indígenas só teriam
direito ao território se pudessem comprovar sua ocupação ininterrupta desde 5
de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal. Essa tese não
considera que milhares de indígenas foram continuamente expulsos de suas terras
antes, durante e depois da aprovação da lei maior, só conseguindo retomá-los em
anos recentes.
O
processo da TI Guyraroká foi reaberto em 2021, tornando-se um caso de
repercussão geral. Isto é, caso seja validada pelo STF, a tese do Marco Temporal poderá
ser aplicada para todas as terras indígenas do Brasil, o que, na prática,
colocará um fim à demarcação de novos territórios.
Os
Rezende Barbosa também violam os direitos dos Guarani Kaiowá do outro lado da
fronteira. No Paraguai, onde a etnia se assume como Pãi Tavyterã, a família foi
proprietária da Estância Lagunita, no Distrito de Ypejhú, no departamento de
Canindeyú, em conurbação com Paranhos (MS). O email de contato, nos registros
oficiais da empresa, era o do administrador da Nova América Agrícola Caarapó
Ltda, empresa sócia da Cosan – do lado brasileiro da fronteira, portanto.
Em
agosto de 2015, a Estância Lagunita foi o cenário do sequestro e morte de um
dos funcionários da fazenda, o administrador Silvio Deip Barboza, em um ataque
atribuído ao grupo guerrilheiro Exército do Povo Paraguaio (EPP). A história
foi contada por este observatório no especial De Olho no Paraguai.
USINAS
QUE INVADEM TERRITÓRIO KAIOWÁ SE DECLARAM “SUSTENTÁVEIS”
Em
fevereiro de 2022, a International Finance Corporation (IFC), fundo de investimentos em
desenvolvimento vinculado ao Banco Mundial, anunciou um aporte de US$ 30
milhões na Usina Santa Adélia, destinado à renovação das áreas de cana e à
efetivação de um projeto de irrigação, com o propósito de “mitigar mudanças
climáticas”. Outros US$ 20 milhões foram levantados junto ao banco holandês
Rabobank.
Parte
do sistema Coopersucar, a Usina Santa Adélia pertence à família Bellodi, de
Jaboticabal (SP). Segundo o Incra, o clã possui seis sobreposições na TI
Dourados-Amambaipeguá I, todas no município de Amambai, somando 2.943,47
hectares, divididos entre quatro familiares e duas empresas. Isso significa 5%
da área pretendida pelos Guarani Kaiowá no processo de demarcação.
Esse
não foi o único aporte do IFC a grupos vinculados à sobreposição em áreas
indígenas. Entre 2021 e 2022, o banco liberou à gigante Amaggi dois
empréstimos, de US$ 180 milhões e US$ 30 milhões, para ampliar a
rastreabilidade nas cadeias de algodão e soja. A trader foi tema de reportagem
específica sobre o setor de grãos: ““Os Invasores” mostra participação de
gigantes da soja em sobreposições de terras indígenas“.
Também
em Amambaí, a Fazenda Três Barras avança 130 hectares dentro da mesma Terra
Indígena. A fazenda pertence à Usina Três Barras, que desde 2018 passou a ser
controlada pela Vita Bioenergia, após um investimento de R$ 461 milhões.
Com
sede no Rio de Janeiro, a Vita Bioenergia tem capital estadunidense: possui
como sócia a Cousley Wood LLC, empresa de Brookline, no estado de
Massachusetts. A Vita é administrada pelo escocês Patrick Mailer-Howat,
ex-executivo do HSBC, Banco de Boston e Citibank. Segundo Mailer-Howat, as unidades do
grupo, incluindo a Usina Três Barras, são “à prova de futuro, pois atenderão a
todos os critérios legislativos e ambientais atuais e esperados”.
Fonte:
De Olho nos Ruralistas
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