COMUNICAÇÃO
PÓS-BOLSONARO: Plataformização do acesso a serviços aprofundou desigualdades
históricas
Dentre
as parcelas mais empobrecidas da população brasileira – aquelas que estão nas
chamadas classes D/E – quase 40% não têm conexão regular à internet e apenas
10% dispõem de computador nos locais em que vivem, conforme revelado na mais recente edição da TIC Domicílios, pesquisa que
mapeia o acesso às tecnologias digitais de informação e comunicação nos
domicílios urbanos e rurais do país e as suas formas de uso por indivíduos a
partir dos 10 anos de idade.
Pouco
mais de três anos após o início de uma pandemia que teve a transferência do
acesso a diversas políticas públicas para o ambiente digital dentre as suas
principais consequências, quais as implicações na obtenção de direitos, e no
exercício da cidadania, por esses grupos? Ao final de um ciclo de governo – e
início de outra gestão, que constantemente se afirma preocupada com a redução
das desigualdades – esse é um questionamento que deve ser feito.
Um
anúncio oficial, em 13 de maio de 2021, segundo ano de pandemia de Covid-19,
foi revelador de uma lógica que estruturou algumas das ações da última gestão
presidencial. Naquele dia, em discurso no estado de Alagoas, Jair Bolsonaro
publicizou a pretensão de determinar a inclusão das famílias candidatas ao
recebimento do Bolsa Família exclusivamente por meio de um
aplicativo digital. Se a mudança não foi concretizada, a emenda foi pior que o
soneto: além de acabar com um dos maiores programas de transferência de renda
do mundo (recriado pela gestão atual), a gestão Bolsonaro conseguiu concretizar
essa prática em outras áreas.
Dois
exemplos nessa direção foram a criação do aplicativo Meu INSS e a Lei
14.176/2021, que, dentre outras mudanças, estabeleceu novos critérios para
acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC). “Desde a implantação do
aplicativo Meu INSS, por meio do qual é feito o agendamento e atendimento
digital na instituição, o acesso ao BPC tem se tornado cada vez mais difícil,
em razão da desigualdade e do precário acesso à internet pela população”, foi o
alerta feito pelo Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), em nota pública divulgada em julho de
2021.
Uma
das alterações da nova lei do BPC foi a autorização, em caráter excepcional, da
teleavaliação como forma de atendimento para fins de avaliação psicossocial. Se
na aparência a medida foi apresentada como solução para agilizar a longa fila
de solicitações de benefício que aguardam decisão do INSS, na essência, para o
Conselho, há uma série de problemas, desde a eficácia em relação ao problema
das filas até a questão da proteção dos dados dos usuários.
Também em nota pública, o CFESS enfatizou
que “a teleavaliação não vai diminuir a fila de solicitações represadas, não
garante o sigilo e a privacidade no atendimento, compromete a qualidade da
avaliação social, podendo resultar na negação de um direito, e sem contar que enfraquece
o serviço social do INSS”.
A
assistente social Emilly Marques, 1ª secretária do CFESS, chama a atenção para
um duplo obstáculo na relação entre públicos potencialmente beneficiários do
Benefício de Prestação Continuada e o digital: ausência de conectividade e
dificuldades de uso. “Pessoas requerentes do BPC, cuja renda per capita é
inferior a ¼ do salário mínimo e em situação de extrema pobreza, podem não ter
recursos para possuir um celular ou computador com internet. Muitas utilizam
somente algumas redes sociais ou aplicativos de mensagens. Ademais, tem a
barreira da informação, as próprias habilidades para mexer nessas plataformas,
e até mesmo um reforço de barreiras geracionais, considerando que pessoas mais
idosas podem não ter facilidade com essas tecnologias e por vezes dependem do
apoio de alguém para garantir esse acesso. Nem todos contam com esse ‘alguém’”,
lembra.
A
preocupação expressa por Emilly tem, inclusive, um exemplo bastante recente na
história brasileira, considerando que, de acordo com um levantamento realizado pela
Universidade de São Paulo, mais de sete milhões de pessoas elegíveis para
receber o auxílio emergencial, no início da pandemia de Covid-19, não tinham
como acessar o aplicativo da Caixa Econômica Federal por viverem em domicílios
sem conectividade digital.
Se,
à época do auxílio emergencial, o resultado foi inúmeras filas nas portas de
agências bancárias da Caixa de pessoas em busca de informações sobre como
utilizar o aplicativo, no caso das mudanças no BPC, segundo Emilly, “as
dificuldades de acesso podem sobrecarregar outros serviços presenciais, como os
Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), ou ainda empurrar para
contratação de intermediários para ter orientações. Com isso, o INSS deixa de
fazer sua função de orientar sobre os direitos previdenciários e benefícios que
operacionaliza e a população fica à mercê de estratégias individualizadas para
alcançar o que seria direito garantido”.
·
Identificação
Civil Nacional: entre a visibilidade e a exclusão
Outra
iniciativa relativa à plataformização, inaugurada ainda no período Michel Temer
e aprofundada na gestão Bolsonaro, foi a Identificação Civil Nacional, estabelecida
pela Lei nº 13.444/2017, que tem a sua base de dados como principal fonte para
autenticação de usuários na plataforma gov.br, portal do Governo Federal, no
acesso a serviços públicos.
Sem
desconsiderar a importância de universalização do registro de identificação
civil, enquanto mecanismo de afirmação da cidadania, organizações da sociedade
civil atentam para os riscos à privacidade e à exacerbação de desigualdades
históricas. Em relatório divulgado no
ano passado, a Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa conclui que “diante
de um contexto brasileiro marcado por profundas desigualdades socioeconômicas e
regionais, a formulação de políticas públicas que tenham por objetivo a
universalização do registro civil e a ampliação do acesso a serviços públicos –
ou, em outras palavras, que tornem todos os cidadãos visíveis ao Estado –, é
essencial. Ao mesmo tempo, se exacerbada, tal visibilidade pode recair em
práticas vigilantistas e potencialmente discriminatórias. E não apenas:
experiências internacionais mostram que iniciativas de centralização de
sistemas de identificação civil, atreladas à plataformização de serviços
públicos, ao contrário do que se propõem, podem aprofundar a exclusão de
pessoas e grupos já vulnerabilizados”.
No
que diz respeito a abusos na utilização dos dados pessoais, a Data Privacy
identifica como possíveis riscos, dentre outros: usos secundários e
compartilhamentos das informações constantes na base de dados da Identificação
Civil Nacional com órgãos que possuem finalidades distintas; incidentes de
segurança, visto que há, atualmente, dados biométricos (sensíveis), de mais de
110 milhões de brasileiros e brasileiras; e inviabilização do exercício dos
direitos dos titulares, considerando não haver um canal direto e adequado em
que os cidadãos possam solicitar o acesso aos seus dados tratados e a
retificação de dados incorretos ou desatualizados.
Já
a exclusão de cidadãos e cidadãs do acesso a políticas e serviços públicos pode
ocorrer, de acordo com a Data Privacy, nas seguintes situações: pessoas que não
possuem qualquer documento de identidade; pessoas que possuam algum tipo de
inadequação em seus documentos de identidade; públicos de sujeitos
hipervulneráveis, como crianças, adolescentes, idosos e pessoas com
deficiência; e pessoas sem acesso à internet.
·
Saúde
como área prioritária da digitalização
Um
setor que, inegavelmente, mais tem sido transformado pela digitalização dos
serviços é a saúde. Atendimentos médicos, consultas psicológicas e prescrição
de receitas mediadas por tecnologias digitais são procedimentos cada vez mais
comuns, além da existência de uma profusão de aplicativos para controle e
monitoramento de glicemia, ciclos menstruais e até qualidade do sono. Essas e
outras mudanças, que seguem uma tendência global, exigem uma série de cuidados
com a privacidade, tanto dos usuários quanto dos profissionais envolvidos na
prestação dos serviços.
Ao
entrevistar gestores públicos, trabalhadores(as) da saúde e usuários, a pesquisa Proteção de Dados em
Serviços de Saúde Digital, coordenada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz),
Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e Instituto de Defesa do
Consumidor (Idec) forneceu importantes apontamentos sobre esse cenário.
“Muitos
serviços de saúde digital acabam sendo oferecidos através de plataformas já
utilizadas pelas pessoas, como Zoom e WhatsApp, de maneira informal. Inclusive
para os mais velhos, o uso das ligações de WhatsApp parecia ser uma opção mais
viável. Isso está mais presente no serviço privado. Os aplicativos de celular
são outras ferramentas muito utilizadas”, relata Mariana Martins,
coordenadora-geral da pesquisa.
Ainda
que esse não tenha sido o foco do estudo, Mariana frisa que não foram
negligenciadas as assimetrias de conectividade digital, já que, no entendimento
dela, “as desigualdades de acesso à internet de qualidade ainda são muito
grandes, tanto entre as áreas urbanas e as áreas rurais quanto entre as
diferentes classes sociais. E isso não pode ser ignorado quando falamos de
acesso aos serviços digitais de uma forma geral”.
Nas
entrevistas do projeto, muitos dos usuários expressaram uma preocupação com a
proteção dos seus dados, mas, ao mesmo tempo, manifestaram um sentimento de
impotência frente a uma espécie de naturalização do uso indevido dos dados, que
vai desde a pergunta “CPF na nota?”, feita em caixas de farmácias, até o
compartilhamento com grandes plataformas digitais, operadoras de planos de
saúde e redes de farmácias.
·
Geografias
(e outras dimensões) da desigualdade
Uma
questão presente nas mudanças em políticas sociais, na Identificação Civil
Nacional e na Saúde Digital, é que a plataformização das políticas públicas não
afeta de modo igual todas as brasileiras e brasileiros. Ao contrário, os locais
de moradia, o gênero, a raça e a condição de deficiência – além da classe
socioeconômica, como já apontado no início do texto – incidem diretamente sobre
o grau de dificuldades na conexão à internet e, por conseguinte, na garantia de
direitos que têm o acesso assentado em aplicativos. Números da TIC Domicílios
confirmam isso: considerando a população usuária de internet que vive em áreas
rurais, apenas 57% utilizaram o chamado “governo eletrônico” e somente 27%
compraram produtos e serviços pela internet, nos 12 meses anteriores à
pesquisa. Dentre as pessoas que vivem nas zonas urbanas e têm internet, os
índices foram de 72% e 49%, respectivamente.
Uma pesquisa realizada por três organizações da sociedade
civil –
Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, Coordenação Nacional de
Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e Movimento da
Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste (MMTR/NE) – apresenta resultados também
relevantes para a observação do cruzamento entre desigualdades e internet:
41,24% das famílias quilombolas e rurais que têm acesso à internet gastam entre
R$ 51 e R$ 200 por mês com o serviço, sendo que 56,2% possuem renda mensal
inferior a um salário mínimo e outras 16% não têm qualquer remuneração fixa.
A
professora Ivonete Lopes, do Departamento de Economia Rural da Universidade
Federal de Viçosa (UFV), que desenvolve trabalhos de pesquisa e extensão junto
a comunidades rurais e quilombolas, traduz algumas dessas problemáticas: “nos
territórios rurais a internet chega com preço mais elevado e com qualidade
inferior ao serviço prestado na área urbana. Isso foi verificado sobretudo na
comunidade quilombola [participante de um dos projetos coordenados por ela],
que fica a menos de 15 km do centro da cidade. As moradoras têm renda que as
colocam em situação de pobreza e ainda assim precisam pagar mais caro para ter
internet em casa”, diz.
Confirmando
a relação direta entre raça, gênero e outras categorias sociais com as
desigualdades de conectividade digital, Ivonete narra que “entre as assentadas
e as agricultoras de Viçosa, as mulheres negras (pretas e pardas) eram as que
tinham acesso mais precarizado às TICs. Isso mostra a relevância de pesquisas
com abordagem interseccional para captar as diferenças que podem existir dentro
do mesmo grupo social. Raça e faixa etária são duas variáveis que se destacam e
sobrepõem para aumentar a desigualdade digital”.
Ao
mencionar um outro projeto, intitulado “Dos quilombos às favelas: mulheres
negras, interseccionalidade e acesso às TICs”, com financiamento do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Ivonete qualifica
como “geografia da desigualdade” a existência de disparidades na conexão à
internet mesmo dentro de uma única cidade. “Temos como hipótese que embora
essas mulheres estejam inseridas em diferentes territórios rurais (quilombolas)
e urbanos (mulheres de favela), há uma relação entre território, renda, classe,
raça e exclusão digital que as colocam em situação de similaridade em relação à
desigualdade de acesso e apropriação das TIC. Essa hipótese é baseada em
pesquisas, como as do CGI [Comitê Gestor da Internet no Brasil], que apontam
haver uma geografia da desigualdade em relação ao acesso às tecnologias. Mesmo
morando na mesma metrópole, a exemplo de São Paulo, há significativa
desigualdade de acesso entre o centro e as áreas periféricas”, ressalta.
Da
potência e do limite do “se virar” às necessárias políticas públicas
Todo
esse contexto de dificuldades no acesso à internet e às tecnologias digitais de
informação e comunicação tem, de imediato, uma resposta rápida: a
auto-organização das comunidades, sobretudo as mais vulnerabilizadas, na busca
por alternativas. A professora Ivonete Lopes conta que, no caso do auxílio
emergencial, por exemplo, a população precisou “achar o seu jeito” para obter o
benefício e garantir a sobrevivência na pandemia.
“Quando
eu falo eu dar o ‘seu jeito’, isso mostra como as lideranças femininas
quilombolas, por exemplo, se organizaram e negociaram uma internet mais barata
para a comunidade, adotaram estratégias de compartilhamento da rede WiFi e dos
dispositivos”, diz. Porém, a própria Ivonete adverte que “não podemos
‘romantizar’ a resiliência sem problematizar a ausência de políticas públicas
para universalização da internet”.
Nesse
sentido, a professora acredita que “precisamos de políticas públicas que
universalizem o acesso à internet e que sejam capazes de contemplar as
especificidades do território brasileiro. O primeiro passo é facilitar a
entrada no mundo digital com dispositivos (celular, tablet e/ou computador) e
internet. Entretanto, uma política que possa facilitar de fato o acesso aos
direitos tem o desafio de proporcionar maior letramento digital, sobretudo às
mulheres”.
Em
perspectiva semelhante, Emilly Marques, do CFESS, acentua que “promover mais
portas de entrada para acessos a direitos e benefícios pode auxiliar, mas não
adianta a criação de ‘mais portas’ que resultam somente em filas virtuais, mais
seletivas e focalizadas e que nos retiram a possibilidade de articulação
coletiva”. Por isso, nas palavras dela, “o Serviço Social se coloca na defesa
de uma sociedade livre e radicalmente democrática e na luta pela comunicação
como um bem público e, justamente por isso, deve estar a serviço da sociedade,
não das classes dominantes, que tão somente visam ao lucro e à reprodução dos
seus interesses”.
Mariana
Martins, da pesquisa Proteção de Dados Pessoais em Serviços de Saúde Digital,
corrobora com esse pensamento, ao dizer que “a internet precisa ser
tratada como um bem público, que deve estar acessível a todos, sem que dependam
de planos específicos e da prática de zero rating, que na verdade
mais exclui e limita o acesso e ainda causa uma falsa ideia de inclusão. O
acesso deve ser uma prioridade, seguido de políticas de diversificação de
canais de atendimento que possam também considerar as dificuldades geracionais
e as desigualdades sociais de um país como o Brasil”.
As
reflexões dessas três especialistas são trilhas possíveis para uma nova relação
entre políticas de internet, tecnologias digitais e cidadania no Brasil. Ao
governo que se iniciou em 1 de janeiro de 2023, está lançado o desafio de,
enquanto exigência democrática, promover o acesso digital como um direito humano
e, ao mesmo tempo, como facilitador do acesso a outros direitos.
Fonte: Por Paulo Victor Melo, no Le Monde
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