sexta-feira, 28 de abril de 2023

Lula e o significado do retorno do Brasil ao mundo

O Brasil perdeu, nos últimos anos, o “norte” de suas ambições externas, regionais, sul-americanas e globais. Michel Temer, o contestado presidente interino (2016-2018), foi ausente internacionalmente. Jair Bolsonaro, Chefe de Estado brasileiro de 2019 a 2022, desmantelou as principais realizações de seus antecessores Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, e até mesmo, considerando um período mais distante, de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002).

“O Brasil está de volta à sociedade internacional”, afirmou em alto e bom som Luís Inácio Lula da Silva, no dia seguinte à sua vitória presidencial, em 30 de outubro de 2022, e durante viagens como Chefe de Estado eleito, primeiro no Egito, onde participou da COP27, e depois em Portugal. Essa declaração, reiterada desde sua posse, era esperada. A diplomacia brasileira nos mandatos de Lula (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016) foi, regional e internacionalmente, ativa e imaginativa. Com base nesse passado, muitas nações vieram assistir à posse de Lula como presidente do Brasil no dia 01 de janeiro de 2023. Sessenta e cinco delegações participaram do evento, incluindo 18 chefes de estado – quatro africanos, um centro-americano, nove sul-americanos, um asiático, três europeus –, 10 primeiros-ministros e vice-presidente, e oito presidentes parlamentares. Ou seja, no total, 19 delegações a mais do que em 2019, embora 45 a menos do que em 2003.

O contexto atual, em 2023, não é (mais) o dos anos 2003-2016. Compreendemos a intenção política e percebemos a força de vontade diplomática. Lula recuperou sua marca nos palácios do Planalto e da Alvorada. Seus colaboradores diretos já foram e são muito próximos dele. O novo ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, ocupou o cargo no governo Dilma Rousseff. Seu assessor diplomático, Celso Amorim, foi ministro das Relações Exteriores e depois ocupou a pasta da Defesa. Mas sejam quais forem as qualidades, experiências e habilidades de cada um, o “sedan” Brasil sofreu muito de 2016 a 2022.

O retorno à “velocidade de cruzeiro” diplomática dos anos 2003-2016 parece, à primeira vista, no mínimo problemático. Não se trataria menos de uma questão de força de vontade, e mais das reais possibilidades do Brasil hoje? Uma revisão severa do motor institucional parece um pré-requisito incontornável para qualquer tentativa de retorno aos circuitos exigentes da “comunidade internacional”.

·         A força de vontade diplomática preservada

Celso Amorim, assessor diplomático do candidato e depois do presidente Lula, foi seu Ministro das Relações Exteriores de 2003 a 2010 e depois Ministro da Defesa sob a direção de Dilma Rousseff, de 2010 a 2014. Retorna ao governo em 2023 com as ambições e realizações de um passado muito próximo em mente. Amorim resumiu os contornos dos objetivos diplomáticos do atual governo numa fórmula precisa, a de a política externa do país deve voltar a ser “uma política ativa e altiva”, tal como lembrada ao longo de toda a campanha eleitoral.

De fato, durante o período de 2003-2016, entre a posse presidencial de Lula e o impeachment inconstitucional de Dilma Rousseff, o Brasil tinha, pela primeira vez em sua história, dado substância a seu potencial como potência emergente. É suficiente recordar aqui alguns acontecimentos e iniciativas que marcaram a época: a participação decisiva na criação de instituições multilaterais – o grupo IBAS (Índia-Brasil-África do Sul), o G20 da OMC, a UNASUL (União das Nações Sul-Americanas) –, a associação ao BRICS, ao G4 (Alemanha-Brasil-Índia-Japão), ao CELAC (Comunidade dos Países da América Latina e Caribenhos) e ao G20, a invenção dos fóruns UNASUL/Liga Árabe e UNASUL/África Subsaariana, e ainda a proposta em parceria com a Turquia para a mediação da crise nuclear iraniana. O Brasil foi a força motriz subjacente na promoção do reconhecimento do Estado palestino junto a quase todos os países sul-americanos. Foi o precursor, após as intervenções do “Ocidente” na Líbia, de uma interpretação mais sensata do direito de interferir e da responsabilidade de proteger. Esse ativismo, efetivamente de alto nível, foi recompensado pela “comunidade internacional”: dois diplomatas brasileiros foram nomeados para chefiar a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura) e a OMC (Organização Mundial do Comércio). A liderança de uma operação de manutenção da paz da ONU (MINUSTAH, Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti) foi pela primeira vez confiada a um latino-americano, neste caso um brasileiro.

Tivemos a oportunidade de medir essa força de vontade diplomática reafirmada por Lula em novembro de 2022. Lula, eleito presidente, mas ainda não no comando do país, manifestou em alto e bom som a reatualização de seu modelo de relações exteriores em Sharm el-Sheikh e em Lisboa. Desde o primeiro momento de seu mandato, em 1º de janeiro de 2023, ele renovou suas intenções em várias ocasiões e as declarações feitas em Buenos Aires, na cúpula da CELAC, em 24 de janeiro de 2023, foram muito claras a esse respeito. No jogo de dados das nações, o retorno do Brasil foi feito com dados muito bem lançados. A política externa do Brasil, declarada em 2 de janeiro de 2023 por Mauro Vieira, novo ministro das Relações Exteriores, será “vigorosa”, para, acrescentou, “reintegrar o Brasil à sua região e ao mundo”.

·         Uma presença diplomática degradada pelos governos de Temer e de Bolsonaro

Resta verificar, no entanto, a viabilidade de uma diplomacia afirmativa internacionalmente, ao se retomar aquela dos anos 2003-2016. O contexto brasileiro, regional, hemisférico e global, de fato mudou significativamente, enquanto o legado dos anos 2016-2022 deixado por Michel Temer e Jair Bolsonaro reduziu a capacidade de irradiação e de influência do Brasil. O Brasil renunciou a assumir um papel de protagonismo na América do Sul e abandonou toda ambição de ser um ator independente no cenário internacional em favor de uma parceria subserviente com os Estados Unidos. Assim, o país seguiu o movimento sugerido pela Casa Branca, com vistas a fragmentar as cooperações entre latinos e sul-americanos. Com isso, o Brasil participou do isolamento da Venezuela ao entrar no chamado Grupo de Lima, em 2017, se candidatou a OCDE e saiu da CELAC e da UNASUL. Os fóruns que articulam o diálogo com os países africanos e árabes perderam sua necessidade. Embaixadas foram fechadas. As contribuições com as Nações Unidas não foram mais honradas. A participação no G20 e no grupo dos BRICS sobreviveu por razões econômicas e comerciais, uma vez que os principais parceiros comerciais do Brasil participam dessas entidades.

Como resultado, o “computador de bordo” à disposição do governo foi significativamente enfraquecido. Em primeiro lugar, na economia: várias empresas estatais foram privatizadas. O capital da Petrobras, um instrumento das ambições de Lula durante seu segundo mandato, foi aberto aos estrangeiros. A influência do setor agroexportador de base, que já era importante, assumiu uma dimensão decisiva.

Institucionalmente, as legitimidades coletivas e democráticas foram gravemente corroídas. O impeachment inconstitucional da presidente Dilma Rousseff, em 2016, abriu uma caixa de Pandora. As eleições presidenciais de 2018 foram marcadas pelo afastamento da candidatura de Lula da disputa eleitoral, em função de ter sido preso antes do pleito e ter sido libertado somente depois das eleições, o que foi em julgamentos comprometidos por juízes politicamente engajados. Desde então, os procedimentos eleitorais, em especial as urnas eletrônicas, foram contestados pelo presidente em exercício, Jair Bolsonaro, mais de um ano antes da votação. As forças armadas adquiriram, ou recuperaram, um espaço institucional e político de poder que lhes havia sido subtraído com o fim da ditadura militar. Em 2018, por exemplo, representantes das forças armadas influenciaram os magistrados da Suprema Corte a manterem o presidente Lula na prisão. No governo Bolsonaro assumiram e exerceram postos políticos e administrativos em diversos ministérios civis. O apoio material e midiático de grupos financeiros, agrícolas e religiosos ao discurso do presidente Bolsonaro, demonizando a oposição, também contribuiu para reduzir a confiança nas instituições democráticas.

A vitória de Lula em 2022 foi difícil. Sua abrangência institucional e política mínima o obrigou a reativar um presidencialismo de coalizão, cujos riscos e perigos ele foi capaz de avaliar de 2003 a 2010. De fato, venceu com 50,9% dos votos. Seus apoiadores no parlamento estão em minoria, forçados a negociar com um pântano partidário majoritário. Seu adversário no segundo turno, Jair Bolsonaro, dispõe, com os 99 deputados do Partido Liberal, da maior bancada parlamentar. Apenas 4 dos 27 governadores eleitos são membros do PT (Partido dos Trabalhadores). As forças armadas estão relutantes em perder o seu auto alegado papel de moderador político que haviam recuperado sob o comando de Jair Bolsonaro. As igrejas pentecostais, cheias de reservas e em sua maioria muito hostis em relação a Lula, mantêm um domínio popular de grande monta. O “bolsonarismo”, por convicção ou por interesse, está muito presente nos altos postos de administração do poder no Brasil. Alguns dos principais atores na economia, nas finanças e no agronegócio no Brasil têm dificuldades em aceitar a mudança. O braço de ferro do novo governo com alguns deles tem sido um exercício permanente. Isso pode ser ilustrado pelas relações conflituosas com o diretor do Banco Central que, se recusando a baixar a taxa de juros sobre o dinheiro, favorece os rendimentos dos rentistas. A brutal ocupação do governo federal em 8 de janeiro de 2023 por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, com a cumplicidade do governador do distrito federal e de elementos policiais e militares, revelou o jogo de forças políticas no país.

Antes de exibir uma política externa ambiciosa, “ativa e altiva”, o presidente Lula deve recolocar o país na rota internacional e democrática e restaurar a capacidade de intervenção do Estado na economia.

O golpe fracassado de 8 de janeiro de 2023 consolidou, paradoxalmente, a influência interna do Presidente Lula. Ele conseguiu reafirmar a primazia da democracia no que diz respeito à manutenção das autoridades eleitas por sufrágio universal. Os perpetradores físicos da agitação dessa tentativa de golpe foram presos, seus discursos deslegitimados e seus instigadores civis e militares e seus cúmplices foram afastados do cargo e alguns presos. O presidente redefiniu o papel das Forças Armadas numa democracia: um órgão subordinado à autoridade eleita, responsável pela defesa das fronteiras e da soberania nacional. As forças armadas foram mobilizadas na Amazônia para perseguir os garimpeiros, responsáveis pela poluição dos rios e pela grave crise sanitária que afetava os indígenas Yanomami.

Lula conseguiu obter os meios financeiros para aprimorar o programa social “Bolsa Família”, e para recriar a organização responsável pelas pessoas malnutridas ou subnutridas, o CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), que foi abolido em 2019 por Jair Bolsonaro. As privatizações foram suspensas, em particular a da Eletrobras. A Petrobras foi retomada. Na sequência dos acontecimentos de janeiro, foi exercida uma forte pressão sobre o Banco Central para baixar a taxa de juros, que é uma das mais altas do mundo.

O estado degradado do instrumento diplomático herdado do governo Bolsonaro não permitia sua utilização eficiente e otimizada. Era necessária uma atualização. O Brasil do presidente Lula, portanto, antes de qualquer grande iniciativa, realizou uma dupla retificação. O país pagou as dívidas do Brasil com as Nações Unidas. Em 26 de dezembro de 2022, o gabinete de transição deliberou que o Ministério da Economia reservasse R$ 4,6 bilhões de reais para permitir ao Ministério das Relações Exteriores saldar as dívidas com a ONU. Ele, então, restaurou sua presença na sociedade internacional. O Brasil voltou à CELAC, abandonada em janeiro de 2019. Retomou um papel ativo na OPAS (Organização Pan-Americana da Saúde) e atualizou seus compromissos internacionais. Ele está novamente comprometido com o acordo de Marrakesh, o “Global Compact for Safe, Orderly and Regular Migration”, abandonado pela gestão anterior. Por outro lado, decidiu sair do consenso de Genebra de 2020, limitando o direito à interrupção da gravidez. Ele se associou ao Compromisso de Santiago de 2020 e à Declaração do Panamá de 2022, instrumentos regionais que fortalecem a igualdade de gênero.

Há um último ponto a ser esclarecido. A chegada ao poder de presidentes de esquerda ou progressistas no México, Chile, Argentina, Bolívia e Colômbia oferece a oportunidade de inventar uma diplomacia de convergências coletivas e regionais, ou será que, pelo contrário, irá pôr em evidência a dificuldade de reunir projetos que permanecem essencialmente nacionais e, em última análise, concorrentes? Por exemplo, quase todos os latino-americanos condenaram a invasão russa da Ucrânia, e quase todos se recusaram a sancionar Moscou. No entanto, não houve qualquer decisão conjunta entre eles. Nem mesmo entre Argentina, Brasil e México, os três membros do G20. O desejo comum de uma iniciativa a favor de um diálogo entre os beligerantes, revelando um paralelismo diplomático, materializou-se em três projetos levados a cabo independentemente pelo Brasil, Colômbia e México.

·         Rumo a uma diplomacia do possível

Colocar o Brasil de volta no centro do concerto regional e internacional é, de fato, o objetivo declarado e almejado. A realização dessa ambição implica, como anteriormente mencionado, a superação de vários obstáculos, tanto internos como regionais.

Com base na experiência adquirida nos anos de 2003 a 2016 e consciente das limitações do cenário atual, a diplomacia da terceira presidência de Lula combina ambição e realismo.

A visita surpresa de Lula ao Egito na COP27, mesmo antes da sua posse, lhe permitiu restaurar a imagem internacional do Brasil, que tinha sido prejudicada pela cobertura midiática do desmatamento acelerado da Amazônia e pela apatia e descaso do governo Bolsonaro durante a pandemia. Lula propôs acolher a COP30 em 2025 em Belém do Pará. Um embaixador para as alterações climáticas foi nomeado em 17 de fevereiro de 2023. Esses gestos foram de fato bem recebidos pelo “Ocidente” – os governos do Norte da Europa e dos EUA. A Alemanha e a Noruega anunciaram sua participação financeira no Fundo Amazônia em janeiro de 2023, o Presidente Biden enviou seu embaixador responsável por assuntos ambientais a Brasília, e a França apoiará a COP30 em Belém.

As medidas enérgicas tomadas para expulsar os garimpeiros do norte da Amazônia e a mobilização do Estado em favor das populações indígenas Yanomami deram credibilidade ao gesto diplomático de Sharm el-Sheikh. Esses elementos permitiram ao Chefe de Estado brasileiro debater o modo como ele concebe a cooperação internacional sobre essa questão. Não se trata, como sugerido em 2019 pelo presidente francês, de delegar a gestão da Amazónia ao G7. A boa vontade externa é bem-vinda, disse Lula em 16 de novembro de 2022 em Sharm el-Sheikh, “mas sempre sob a liderança brasileira, sem nunca abdicar da nossa soberania”. A Amazônia está sob a jurisdição do Brasil e dos Estados que fazem parte do tratado da OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica).

Lula, se apoiando nessa conquista, marcou seu território externo em várias direções, visando combinar a defesa da soberania brasileira com o fortalecimento dos equilíbrios internacionais e do multilateralismo. A União Europeia havia estabelecido um pré-requisito ambiental para a ratificação do acordo firmado com o Mercosul em 2019. As iniciativas anunciadas e tomadas sobre o tema colocam o Brasil em posição favorável. Mas muito rapidamente, o presidente francês, na feira agrícola de 25 de fevereiro de 2023, mencionou novos pré-requisitos ambientais, que segundo ele proíbem a ratificação do tratado tal como está. O Brasil não questionou efetivamente a posição comercial, econômica e política central ocupada pelos setores agroexportadores, principais responsáveis ​​pela degradação ambiental e pelo desmatamento. Atacar garimpeiros de modo espetacular era mais fácil. Mesmo assim, a Alemanha aproveitou imediatamente a oportunidade ambiental para se aproximar do Brasil. Seus fabricantes buscam mercados que possam substituir aqueles que foram perdidos na Rússia. A Alemanha, assim como o Brasil, aspira a uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU. O presidente alemão Frank-Walter Steinmeier esteve presente quando Lula assumiu o cargo em 1º de janeiro de 2023. O chanceler Olaf Scholz visitou o Brasil em 30 de janeiro. A Alemanha anunciou que apoiará em Bruxelas, na terceira cúpula UE/CELAC, nos dias 17 e 18 de julho, a necessidade de uma rápida ratificação do tratado com o Mercosul. Esta mensagem foi renovada pelo vice-chanceler Robert Habeck em Belo Horizonte, no dia 11 de março de 2023.

A paz no mundo, e, portanto, na Ucrânia e no Médio Oriente, tem mobilizado a diplomacia brasileira desde janeiro de 2023. Esse já era o caso da questão nuclear iraniana em 2011, mas a parceria com a Turquia, um Estado emergente, como o Brasil, não permitiu a proposta de forçar a porta do Conselho de Segurança da ONU, bem trancada pelos seus membros permanentes. Desta vez, a estrutura dos BRICS foi introduzida no martingale brasileiro. O Brasil apoia as propostas chinesas. Lula esteve na China em 28 de março de 2023. A candidatura de Dilma Rousseff à presidência do Banco do BRICS formalizou o simbolismo desta parceria. Por outro lado, condenando a invasão russa, o Brasil mantém uma janela aberta para os Estados Unidos e o espaço mais amplo da OTAN. Lula defendeu essa opção perante Olaf Scholz e, através dele, perante os europeus. Foi a Washington em 10 de fevereiro de 2023 para avaliar sua aceitabilidade, ao mesmo tempo que recordava a Joe Biden que o Brasil queria “relações iguais” nestas questões, tal como nas relações bilaterais. O conflito israelo-palestino também constituiu uma oportunidade para o Brasil mostrar uma resposta comum com a Argentina, o Chile e o México.

O multilateralismo praticado pelo Brasil nos anos de Lula-Rousseff foi restaurado. O Brasil restabeleceu uma série de instituições intergovernamentais abandonadas e atualizou seus compromissos contratuais internacionais, como já foi referido. Indicou sua intenção de exercer uma presidência construtiva do grupo IBAS (Índia-Brasil-África do Sul), que coinventou em 2003 para assegurar a participação dos países do Sul nas decisões da OMC. O Brasil anunciou que fará propostas ao G20, grupo que presidirá em 2024, e que apoiará a candidatura da Argentina a membro do BRICS, que liderará em 2025. O Brasil participou com uma grande delegação da conferência organizada pela UNESCO em 22 e 23 de fevereiro de 2023 sobre a regulamentação das redes sociais. Tudo isso foi acompanhado por um pedido de reforma e expansão do Conselho de Segurança da ONU, explicitamente mencionado em janeiro de 2023 durante a visita do Chanceler alemão à capital do Brasil e reiterado em 2 de março na reunião dos Ministros dos Negócios Estrangeiros do G20.

A diplomacia horizontal, isto é, em pé de igualdade, com a África foi repetidamente apontada como uma das prioridades. Ela permite romper com a diplomacia de Bolsonaro e reutilizar para fins diplomáticos canais, como os laços estabelecidos entre segmentos de populações migrantes ou deportadas, com seus países de origem, como foi o caso de 2003 a 2016. Sem que a situação permitisse grandes iniciativas, o Brasil de Lula III visou principalmente a África lusófona. A começar por Angola, historicamente ligada ao Brasil, um país petrolífero. Em 3 de janeiro de 2023, os chanceleres dos dois países concordaram em realizar a sétima comissão bilateral conjunta no primeiro semestre do ano. Esse primeiro passo é também concebido como uma via cultural que permite, com o conjunto dos países membros da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), incluindo, portanto, também o Timor-Leste, na Ásia, e Portugal, na Europa, construir uma rede intercontinental de países amigos. Angola preside a CPLP em 2023 e Portugal, membro histórico do órgão, recebeu Lula, ainda como presidente eleito, em 18 de novembro de 2022, e será o primeiro país europeu visitado por Lula como presidente em exercício, em 25 de abril de 2023.

Esses posicionamentos disruptivos pressupunham uma democratização do corpo diplomático, a principal vitrine externa do país. Um esforço para abrir as portas do Itamaraty às mulheres, povos indígenas e descendentes de escravizados africanos, que são a maioria da população, mas notoriamente sub-representados, foi anunciado pelo ministro das Relações Exteriores em 2 de janeiro de 2023. Essa intenção de diversificar o corpo diplomático foi reafirmada em 4 de janeiro durante a cerimônia de tomada de posse da Embaixadora Maria Laura da Rocha, a primeira mulher a ocupar o cargo de Secretária-Geral do Ministério.

Paradoxalmente, a América Latina não permite a restauração da liderança ocupada pelo Brasil nos mandatos anteriores de Lula. As convergências ideológicas não são um fator determinante, tendo em conta as declarações da nova equipe. O ministro das Relações Exteriores declarou pública e explicitamente que o Brasil dialogaria com todas as famílias políticas, tendo como único ideário a “integração”. Lula reintegrou o Brasil ao sistema diplomático regional: reencontrou a CELAC; expressou seu desejo de renovação da UNASUL; enviou um embaixador de volta a Caracas; e o Brasil recuperou seu lugar no grupo de países que garantem o diálogo entre o ELN (Exército de Libertação Nacional) e o governo colombiano. Esse retorno teve repercussão interamericana, tendo um médico brasileiro sido eleito diretor da OPAS em 31 de janeiro de 2023.

Mas os discursos panlatinos do Brasil e dos hispano-americanos não mascaram diferenças e interesses geopolíticos, ambições pessoais e nacionais incompatíveis. O México, integrado ao espaço econômico norte-americano, desenvolve uma diplomacia voltada para a atração de latino-americanos a esse espaço, a fim de fortalecer sua presença no conjunto desequilibrado do T-MEC. Sua diplomacia, voltada para o fortalecimento da Aliança do Pacífico, instrumento de regionalismo comercial aberto, foi recebida positivamente no Chile e na Colômbia, enquanto o Brasil de hoje prioriza a integração econômica sul-americana, como nos anos 2003-2016. Na Colômbia, Gustavo Petro, voluntarista por temperamento, também multiplicou iniciativas e propostas diplomáticas, sem afinamento com o Brasil. Isso reduziu, portanto, suas asas econômicas e seus esforços no Mercosul. O Uruguai, tentado por um acordo especial com a China, recebeu a visita de Lula em 22 de janeiro de 2023. A Argentina recebeu atenção prioritária. Lula, antes de realizar uma visita de Estado a Buenos Aires em 23 de janeiro de 2023, assinou de forma conjunta um artigo de imprensa com seu homólogo argentino registrando o relançamento de uma aliança estratégica entre os dois países. Os dois presidentes anunciaram um projeto de moeda comum e a construção de um gasoduto. Também assinaram uma declaração conjunta de 82 pontos, uma carta de intenções sobre indústrias de defesa, um protocolo de cooperação em saúde, um programa de cooperação entre os ministérios de ciência e tecnologia, um memorando entre os ministérios da economia e um acordo de cooperação bilateral na Antártica. Mas será que esses anúncios conseguirão se materializar? A eleição presidencial argentina de 22 de outubro de 2023 promete ser difícil para o presidente e sua maioria parlamentar. O partido “oficial” está dividido entre os partidários da vice-presidente Cristina Kirchner, com quem Lula não se encontrou, e do presidente Alberto Fernandez, com quem ele mantém uma relação regular. A difícil situação econômica e social argentina favorece o surgimento da oposição. Além disso, o anúncio da criação de uma moeda comum entre Argentina e Brasil, cujo uso seria estendido ao Mercosul e depois à CELAC, tem sido alvo de críticas, principalmente no México, Peru e Uruguai.

Desde 1 de janeiro de 2023, o Brasil recuperou presença internacional. As posições expostas, as iniciativas tomadas e anunciadas, e a agenda ambiciosa do presidente Lula visam recompor a diplomacia “ativa e altiva” dos anos Lula e Dilma, reivindicada por Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores e agora conselheiro internacional do Presidente.

No entanto, as ambições relatadas enfrentam obstáculos internos, que criam incertezas institucionais e de tomada de decisões. O golpe fracassado de 8 de janeiro de 2023 deu paradoxalmente ao presidente a capacidade de consolidar os alicerces da sua autoridade. Contudo, ele ainda precisa reduzir as resistências internas, que são numerosas, e convencer os investidores estrangeiros que continuam a expressar dúvidas e preocupações.

Embora não ideologizada, essa diplomacia contém eixos que anunciam uma política externa em oximoro que apresentam uma combinação de diálogos em pé de igualdade com os gigantes desse universo, sem exceção, e que valorizam alianças com parceiros sul-americanos compartilhando com o Brasil um nacionalismo soberano concebido como um portador de equilíbrio a nível internacional.

 

Fonte: Por Jean-Jacques Kourliandsky, no Observatório da Imprensa

 

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