Em seis anos, dez
filhotes da 'tese do século' geraram incerteza e judicialização
Seis
anos depois do julgamento da "tese do século" pelo
Supremo Tribunal Federal, a discussão sobre se o conceito de renda pode abarcar
os tributos que compõem os preços das operações praticadas pelos contribuintes
se desdobrou em ao menos outras dez questões, gerando incerteza e
judicialização sobre o tema.
O
levantamento foi feito pela revista eletrônica Consultor Jurídico e o balanço, por tributaristas que
acompanharam os desdobramentos da decisão de considerar que o ICMS não compõe o
faturamento ou a receita bruta das empresas, sendo inviável incluí-lo na base
de cálculo de PIS e Cofins (veja a tabela ao final do texto).
O
resultado vinculante, sob a sistemática da repercussão geral, foi chamado de
"tese do século" por seu vastíssimo impacto. À época, a
Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional estimou o prejuízo em R$ 250 bilhões —
conta que foi afetada pela modulação dos
efeitos,
feita pelo STF em 2021.
No
ano passado, o cálculo incluído no Anexo de Riscos Fiscais da Lei de Diretrizes
Orçamentárias de 2023 estimava esses
valores em até R$ 533 bilhões. Esse montante se refere a perda de
arrecadação anual e estimativa de devoluções, considerados os cinco anos
anteriores. Trata-se, porém, do impacto máximo, que pode não se concretizar em
sua totalidade.
A
vitória no Tema 69 da Repercussão Geral no STF deu aos contribuintes
brasileiros motivos para litigar contra a inclusão de outros tributos em
diferentes bases de cálculo. As chamadas "teses
filhotes" abriram novas frentes de judicialização. Hoje, é discutido
se outros cinco tributos devem integrar a base de cálculo de PIS e Cofins. Há
também demandas sobre as bases de cálculo de CPRB, ISS, Funrural, IRPJ e
CSLL.
Como
a maioria dessas demandas ainda não recebeu uma resposta definitiva das cortes
superiores, a estratégia das empresas tem sido ajuizar ações com pedidos
liminares e, na hipótese de decisões favoráveis, tratar a melhora do fluxo de
caixa de maneira conservadora. Isso porque o cenário atual é de bastante
incerteza tributária.
·
Incertezas
Em
janeiro de 2022, Fernando Facury
Scaff publicou em sua
coluna na ConJur que todos os problemas se
resolveriam se o STF alterasse a "tese do século" para explicar
que nenhum tributo compõe a base de cálculo para a incidência de outro tributo.
Ele previu que decidir o tema de forma fracionada criaria o risco de não haver
nem coerência, nem consistência, nem integridade jurisprudencial em matéria
tributária.
Esses
problemas se apresentaram nas duas únicas teses filhotes já apreciadas pelas
cortes superiores até o momento. Em 2021, o STF entendeu que é constitucional
incluir ICMS e ISS na base de
cálculo da Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta (CPRB). Isso
poderia sinalizar que o Supremo não pretende estender a "tese do
século" a toda e qualquer inclusão de um tributo na base de cálculo
de outro.
O
caso da CPRB tem uma peculiaridade: ela foi concebida para desonerar a folha de
salários e reduzir a carga tributária, e seu recolhimento passou a ser
facultativo a partir da Lei 12.546/2011. Assim, foi tratada pelo STF como
benefício fiscal. Logo, retirar ICMS e ISS de sua base implicaria novo
benefício não previsto pelo legislador.
"Isso
gera sinais contraditórios", afirmou Scaff. Para ele, desdobramentos da
"tese do século" são naturais, mas devem ser tratados de maneira
coerente com o que foi decidido. "Eu não chamaria de insegurança. É uma
incerteza, uma imprevisibilidade. Não se tem a segurança de que a
jurisprudência será mantida", acrescentou ele.
Na
opinião de Scaff, essa sensação foi reforçada pela decisão do Superior
Tribunal de Justiça em
outro tema tributário relevante: na última quarta-feira (26/4), a corte entendeu
que é possível incluir valores referentes a benefícios fiscais do ICMS na base
de cálculo de IRPJ e CSLL. O Tribunal da Cidadania é o outro palco relevante
para decisões sobre desdobramentos da "tese do século".
Um
deles já está sendo apreciado. O STF não reconheceu a repercussão geral e
delegou ao STJ decidir se o ICMS por substituição tributária (ICMS-ST) também
fica fora da base de cálculo de PIS e Cofins. O relator na 1ª Seção, ministro
Gurgel de Faria, votou por replicar a
solução dada pela "tese do século". Um pedido de vista interrompeu o
julgamento.
·
Modulação e judicialização
Os
tributaristas consultados pela ConJur apontam
que o raciocínio da "tese do século" vem sendo replicado por juízes e
tribunais de todo o país. Leonardo
Freitas de Moraes e Castro, do escritório VBD Advogados, afirma que o
maior cuidado a ser tomado pelo contribuinte é não deixar de ingressar com ação
em todas as teses filhotes cabíveis. O risco é deixa-las chegar às cortes
superiores e haver a modulação dos efeitos.
O STF fez isso com a
"tese do século", quatro anos depois de fixá-la, ao julgar embargos de
declaração: a corte decidiu que ela só seria aplicável a partir de 15 de março
de 2017. Para os períodos anteriores, só pôde gozar de seus efeitos quem já
tinha ações e procedimentos judiciais e administrativos protocolados.
"Enquanto
as teses não tiverem o trânsito em julgado, existe insegurança jurídica para os
contribuintes, visto que não se sabe se devem provisionar esses valores ou
contabilizar como um passivo contingente, nem como devem agir com relação à
possibilidade de recuperação desses valores já recolhidos, além da
instabilidade política que esse tema gera perante o cenário de planejamento
econômico das empresas a curto e médio prazos", diz Leonardo.
Segundo Maria Andréia dos Santos, do Machado
Associados, a estratégia mais conservadora seria fazer depósito judicial ou não
usufruir de liminares nas teses filhotes, mas a tributarista diz que a melhoria
no fluxo de caixa que elas oferecem às empresas se tornou muito relevante, especialmente
durante e após a crise sanitária da Covid-19. "Via de regra, a opção dos
contribuintes tem sido no sentido de se utilizarem das decisões favoráveis, mas
sempre com a perspectiva de que, caso haja a revogação, o pagamento pode ser
feito em 30 dias, sem a aplicação da multa."
Arthur Barreto, da banca Donelli, Abreu Sodré e Nicolai
Advogados, também destaca a importância de monitorar os julgamentos do STF e,
sendo o caso, ajuizar medidas pertinentes para se precaver da aplicação da
modulação dos efeitos, a qual vem se tornando regra nos julgamentos tributários
com desfecho favorável aos contribuintes. A maior responsabilidade, no entanto,
ele atribui ao legislador.
·
Difusor de insegurança
"O
maior difusor de insegurança jurídica, hoje, é o legislador tributário — muitas
vezes, o próprio Ministério da Fazenda, por meio de suas medidas provisórias
posteriormente convertidas em lei, e que são a origem de grande parte das
normas tributárias mais relevantes hoje vigentes. Existem inúmeras
controvérsias tributárias que decorrem dessa produção legislativa, inclusive as
que originaram a 'tese do século' e as teses filhotes", diz o
advogado.
Segundo
Barreto, o STF vem criando maior segurança jurídica tributária e corrigindo
distorções. Mas, até que exista uma decisão definitiva, o que se tem é grande
insegurança no dia a dia dos contribuintes.
Para
Scaff, o problema é de falta de apuro técnico-jurídico. É comum que as MPs
sejam elaboradas após consulta a economistas e políticos, mas nem sempre com o
apoio de equipe jurídica. Alguns problemas surgem logo na origem, e outros, em
decorrência dos debates no Congresso. "Seja por um ou outro motivo, é
necessário redobrar a cautela e buscar clarificação e qualidade da técnica
jurídica."
Curiosamente,
foi por meio de medida provisória que a "tese do século" foi
positivada no ordenamento jurídico. A MP 1.159/2023 alterou a Lei
10.637/2002 e a Lei 10.833/2003 para excluir o ICMS da base de cálculo de PIS e
Cofins. A norma teve o prazo prorrogado e ainda não foi analisada pelo
Congresso Nacional.
Ø
O
combinado não sai caro: a volta por cima da liberdade sindical. Por Felipe
Santa Cruz
Na
última segunda-feira (24/4), a maioria dos ministros do STF (Supremo Tribunal
Federal) votou pelo reconhecimento da constitucionalidade das contribuições
negociais, desde que garantido o direito de oposição. Desde a reforma
trabalhista, que entrou em vigência em novembro de 2017, a viabilidade
financeira das entidades sindicais foi colocada em xeque.
Até
então, a contribuição sindical era descontada compulsoriamente no montante de
um dia de trabalho por ano e repassada às entidades sindicais. Não é segredo
que muitas das entidades sindicais se opunham publicamente a esse sistema de
desconto. Alguns sindicatos devolviam o imposto sindical aos trabalhadores
descontados ou aos seus sócios, como forma de mitigar as críticas e mostrar sua
real conexão com a base de representados. No entanto, a contribuição sindical
obrigatória era uma fonte de arrecadação estável e garantida a todos os
sindicatos.
Outra
modalidade era a imposição de contribuições assistenciais ou negociais, isto é,
previstas em normas coletivas e, portanto, aprovadas diretamente pelos
trabalhadores em assembleia. Muitas dessas cláusulas já previam a possibilidade
de o trabalhador se opor à cobrança. Em contrapartida, o produto da atuação
sindical, especialmente os textos dos acordos e convenções coletivas de trabalho,
aproveitavam a todos os integrantes da categoria, filiados ou não,
contribuintes ou não.
A
reforma trabalhista proibiu o desconto das contribuições sem a expressa e
prévia anuência do empregado, o que resultou em uma queda de mais de 80% na
arrecadação das contribuições sindicais de 2017 para 2018, segundo o portal de
relações sindicais Ministério do Trabalho e Emprego. Apesar de intenso debate
sobre a natureza tributária das contribuições, o STF declarou em 29 de junho de
2018 a constitucionalidade do fim da contribuição sindical obrigatória.
A
constituição é um marco em nossa redemocratização e prevê como regra a
liberdade sindical. Nela foram mantidos os pilares do sindicalismo brasileiro:
a representação compulsória e a unicidade sindical. Assim, ainda que o
trabalhador não deseje se filiar ao sindicato, ou mesmo que discorde
completamente das medidas tomadas por este, ele tem direito aos benefícios —
notadamente reajustes salariais – negociados e firmados nos acordos e
convenções coletivas do seu sindicato.
Desde
o início da vigência da Reforma Trabalhista, vive-se um paradoxo: a negociação
de acordos e convenções coletivas de trabalho segue tendo efeito para todos os
membros da categoria, mas os integrantes da categoria representada e
beneficiada não tem qualquer obrigação de financiar o funcionamento dos entes
sindicais que negociam estas mesmas normas.
Apesar
de aprovada a reforma sob o discurso que era preciso reaproximar o sindicato
das bases, a contribuição assistencial, aprovada em assembleia com participação
direta dos trabalhadores, foi inviabilizada. Ainda que houvesse aprovação em
assembleia, era necessária autorização individual. A reaproximação das bases
que ignora a necessidade de participação do trabalhador em assembleia não passa
de um discurso vazio. É o contato mais direto do trabalhador com seu sindicato
e onde há possibilidade de participação efetiva.
O
Brasil se encontrava em descompasso com as recomendações dos órgãos nacionais e
internacionais na área de proteção ao trabalho. O Comitê de Liberdade Sindical
da OIT dispõe que "a questão do desconto de contribuições sindicais pelos
empregadores e seu repasse para os sindicatos deve ser resolvida pela
negociação coletiva entre empregadores e sindicatos em geral, sem obstáculos de
natureza legislativa". Mesmo o Ministério do Trabalho possuía uma ordem de
serviço desde 2009 que assegurava a cobrança de contribuição assistencial de
toda a categoria, desde que assegurado o direito de oposição.
Tratando
especificamente do tema do repasse de contribuições, a Coordenadoria Nacional
de Promoção da Liberdade Sindical (Conalis) do Ministério Público do Trabalho
(MPT) editou o Enunciado 24, segundo o qual "a contribuição sindical será
fixada pela Assembleia Geral da categoria, registrada em ata, e descontada da
folha dos trabalhadores associados ou não ao sindicato". E, ainda, editou
a nota técnica nº 2, refletindo o entendimento que os abrangidos pela
negociação coletiva devem participar do financiamento desse processo, "sob
pena de inviabilizar a atuação sindical, bem como atuar como desincentivo a
novas associações".
Com
o voto de seis ministros, a tese fixada pelo STF reconhece ser
"constitucional a instituição, por acordo ou convenção coletivos, de
contribuições assistenciais a serem impostas a todos os empregados da
categoria, ainda que não sindicalizados, desde que assegurado o direito de
oposição".
A
forma de exercício do direito de oposição é um tema que merece ser regulado
para garantir a efetiva participação do trabalhador, o contato com o sindicato
e evitar que se torne um mecanismo de esvaziamento dos sindicatos por parte de
empresas mal-intencionadas. Pode ser uma excelente oportunidade para avançar na
regulamentação de práticas antissindicais no país.
Com
o julgamento, o Brasil se reposiciona no sentido de garantir a efetiva
liberdade sindical e de criar condições fáticas para reaproximação do sindicato
com os trabalhadores, ao privilegiar espaços de exercício da autonomia
coletiva.
Mais
que isto, a decisão do Supremo corrige o curso tomado pela reforma que, ao
exigir autorização individual para contribuição, esvaziava a autonomia coletiva
dos sindicatos, derivação direta da solidariedade como objetivo republicano e
dos valores sociais do trabalho. Privilegia-se, agora, a participação em assembleia
como espaços de coletividade e troca, que compreende uma relação de proximidade
com os sindicatos, o uso da autonomia coletiva e as negociações coletivas como
forma de afirmação do paradigma dos direitos sociais do trabalho.
Fonte:
Por Danilo Vital, em Conjur
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