domingo, 30 de abril de 2023

Em seis anos, dez filhotes da 'tese do século' geraram incerteza e judicialização

Seis anos depois do julgamento da "tese do século" pelo Supremo Tribunal Federal, a discussão sobre se o conceito de renda pode abarcar os tributos que compõem os preços das operações praticadas pelos contribuintes se desdobrou em ao menos outras dez questões, gerando incerteza e judicialização sobre o tema.

O levantamento foi feito pela revista eletrônica Consultor Jurídico e o balanço, por tributaristas que acompanharam os desdobramentos da decisão de considerar que o ICMS não compõe o faturamento ou a receita bruta das empresas, sendo inviável incluí-lo na base de cálculo de PIS e Cofins (veja a tabela ao final do texto).

O resultado vinculante, sob a sistemática da repercussão geral, foi chamado de "tese do século" por seu vastíssimo impacto. À época, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional estimou o prejuízo em R$ 250 bilhões — conta que foi afetada pela modulação dos efeitos, feita pelo STF em 2021.

No ano passado, o cálculo incluído no Anexo de Riscos Fiscais da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2023 estimava esses valores em até R$ 533 bilhões. Esse montante se refere a perda de arrecadação anual e estimativa de devoluções, considerados os cinco anos anteriores. Trata-se, porém, do impacto máximo, que pode não se concretizar em sua totalidade.

A vitória no Tema 69 da Repercussão Geral no STF deu aos contribuintes brasileiros motivos para litigar contra a inclusão de outros tributos em diferentes bases de cálculo. As chamadas "teses filhotes" abriram novas frentes de judicialização. Hoje, é discutido se outros cinco tributos devem integrar a base de cálculo de PIS e Cofins. Há também demandas sobre as bases de cálculo de CPRB, ISS, Funrural, IRPJ e CSLL.

Como a maioria dessas demandas ainda não recebeu uma resposta definitiva das cortes superiores, a estratégia das empresas tem sido ajuizar ações com pedidos liminares e, na hipótese de decisões favoráveis, tratar a melhora do fluxo de caixa de maneira conservadora. Isso porque o cenário atual é de bastante incerteza tributária.

·         Incertezas

Em janeiro de 2022, Fernando Facury Scaff publicou em sua coluna na ConJur que todos os problemas se resolveriam se o STF alterasse a "tese do século" para explicar que nenhum tributo compõe a base de cálculo para a incidência de outro tributo. Ele previu que decidir o tema de forma fracionada criaria o risco de não haver nem coerência, nem consistência, nem integridade jurisprudencial em matéria tributária.

Esses problemas se apresentaram nas duas únicas teses filhotes já apreciadas pelas cortes superiores até o momento. Em 2021, o STF entendeu que é constitucional incluir ICMS e ISS na base de cálculo da Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta (CPRB). Isso poderia sinalizar que o Supremo não pretende estender a "tese do século" a toda e qualquer inclusão de um tributo na base de cálculo de outro.

O caso da CPRB tem uma peculiaridade: ela foi concebida para desonerar a folha de salários e reduzir a carga tributária, e seu recolhimento passou a ser facultativo a partir da Lei 12.546/2011. Assim, foi tratada pelo STF como benefício fiscal. Logo, retirar ICMS e ISS de sua base implicaria novo benefício não previsto pelo legislador.

"Isso gera sinais contraditórios", afirmou Scaff. Para ele, desdobramentos da "tese do século" são naturais, mas devem ser tratados de maneira coerente com o que foi decidido. "Eu não chamaria de insegurança. É uma incerteza, uma imprevisibilidade. Não se tem a segurança de que a jurisprudência será mantida", acrescentou ele.

Na opinião de Scaff, essa sensação foi reforçada pela decisão do Superior Tribunal de Justiça em outro tema tributário relevante: na última quarta-feira (26/4), a corte entendeu que é possível incluir valores referentes a benefícios fiscais do ICMS na base de cálculo de IRPJ e CSLL. O Tribunal da Cidadania é o outro palco relevante para decisões sobre desdobramentos da "tese do século".

Um deles já está sendo apreciado. O STF não reconheceu a repercussão geral e delegou ao STJ decidir se o ICMS por substituição tributária (ICMS-ST) também fica fora da base de cálculo de PIS e Cofins. O relator na 1ª Seção, ministro Gurgel de Faria, votou por replicar a solução dada pela "tese do século". Um pedido de vista interrompeu o julgamento.

·         Modulação e judicialização

Os tributaristas consultados pela ConJur apontam que o raciocínio da "tese do século" vem sendo replicado por juízes e tribunais de todo o país. Leonardo Freitas de Moraes e Castro, do escritório VBD Advogados, afirma que o maior cuidado a ser tomado pelo contribuinte é não deixar de ingressar com ação em todas as teses filhotes cabíveis. O risco é deixa-las chegar às cortes superiores e haver a modulação dos efeitos.

O STF fez isso com a "tese do século", quatro anos depois de fixá-la, ao julgar embargos de declaração: a corte decidiu que ela só seria aplicável a partir de 15 de março de 2017. Para os períodos anteriores, só pôde gozar de seus efeitos quem já tinha ações e procedimentos judiciais e administrativos protocolados.

"Enquanto as teses não tiverem o trânsito em julgado, existe insegurança jurídica para os contribuintes, visto que não se sabe se devem provisionar esses valores ou contabilizar como um passivo contingente, nem como devem agir com relação à possibilidade de recuperação desses valores já recolhidos, além da instabilidade política que esse tema gera perante o cenário de planejamento econômico das empresas a curto e médio prazos", diz Leonardo.

Segundo Maria Andréia dos Santos, do Machado Associados, a estratégia mais conservadora seria fazer depósito judicial ou não usufruir de liminares nas teses filhotes, mas a tributarista diz que a melhoria no fluxo de caixa que elas oferecem às empresas se tornou muito relevante, especialmente durante e após a crise sanitária da Covid-19. "Via de regra, a opção dos contribuintes tem sido no sentido de se utilizarem das decisões favoráveis, mas sempre com a perspectiva de que, caso haja a revogação, o pagamento pode ser feito em 30 dias, sem a aplicação da multa."

Arthur Barreto, da banca Donelli, Abreu Sodré e Nicolai Advogados, também destaca a importância de monitorar os julgamentos do STF e, sendo o caso, ajuizar medidas pertinentes para se precaver da aplicação da modulação dos efeitos, a qual vem se tornando regra nos julgamentos tributários com desfecho favorável aos contribuintes. A maior responsabilidade, no entanto, ele atribui ao legislador.

·         Difusor de insegurança

"O maior difusor de insegurança jurídica, hoje, é o legislador tributário — muitas vezes, o próprio Ministério da Fazenda, por meio de suas medidas provisórias posteriormente convertidas em lei, e que são a origem de grande parte das normas tributárias mais relevantes hoje vigentes. Existem inúmeras controvérsias tributárias que decorrem dessa produção legislativa, inclusive as que originaram a 'tese do século' e as teses filhotes", diz o advogado.

Segundo Barreto, o STF vem criando maior segurança jurídica tributária e corrigindo distorções. Mas, até que exista uma decisão definitiva, o que se tem é grande insegurança no dia a dia dos contribuintes.

Para Scaff, o problema é de falta de apuro técnico-jurídico. É comum que as MPs sejam elaboradas após consulta a economistas e políticos, mas nem sempre com o apoio de equipe jurídica. Alguns problemas surgem logo na origem, e outros, em decorrência dos debates no Congresso. "Seja por um ou outro motivo, é necessário redobrar a cautela e buscar clarificação e qualidade da técnica jurídica."

Curiosamente, foi por meio de medida provisória que a "tese do século" foi positivada no ordenamento jurídico. A MP 1.159/2023 alterou a Lei 10.637/2002 e a Lei 10.833/2003 para excluir o ICMS da base de cálculo de PIS e Cofins. A norma teve o prazo prorrogado e ainda não foi analisada pelo Congresso Nacional.

 

Ø  O combinado não sai caro: a volta por cima da liberdade sindical. Por Felipe Santa Cruz

 

Na última segunda-feira (24/4), a maioria dos ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) votou pelo reconhecimento da constitucionalidade das contribuições negociais, desde que garantido o direito de oposição. Desde a reforma trabalhista, que entrou em vigência em novembro de 2017, a viabilidade financeira das entidades sindicais foi colocada em xeque.

Até então, a contribuição sindical era descontada compulsoriamente no montante de um dia de trabalho por ano e repassada às entidades sindicais. Não é segredo que muitas das entidades sindicais se opunham publicamente a esse sistema de desconto. Alguns sindicatos devolviam o imposto sindical aos trabalhadores descontados ou aos seus sócios, como forma de mitigar as críticas e mostrar sua real conexão com a base de representados. No entanto, a contribuição sindical obrigatória era uma fonte de arrecadação estável e garantida a todos os sindicatos.

Outra modalidade era a imposição de contribuições assistenciais ou negociais, isto é, previstas em normas coletivas e, portanto, aprovadas diretamente pelos trabalhadores em assembleia. Muitas dessas cláusulas já previam a possibilidade de o trabalhador se opor à cobrança. Em contrapartida, o produto da atuação sindical, especialmente os textos dos acordos e convenções coletivas de trabalho, aproveitavam a todos os integrantes da categoria, filiados ou não, contribuintes ou não.

A reforma trabalhista proibiu o desconto das contribuições sem a expressa e prévia anuência do empregado, o que resultou em uma queda de mais de 80% na arrecadação das contribuições sindicais de 2017 para 2018, segundo o portal de relações sindicais Ministério do Trabalho e Emprego. Apesar de intenso debate sobre a natureza tributária das contribuições, o STF declarou em 29 de junho de 2018 a constitucionalidade do fim da contribuição sindical obrigatória.

A constituição é um marco em nossa redemocratização e prevê como regra a liberdade sindical. Nela foram mantidos os pilares do sindicalismo brasileiro: a representação compulsória e a unicidade sindical. Assim, ainda que o trabalhador não deseje se filiar ao sindicato, ou mesmo que discorde completamente das medidas tomadas por este, ele tem direito aos benefícios — notadamente reajustes salariais – negociados e firmados nos acordos e convenções coletivas do seu sindicato.

Desde o início da vigência da Reforma Trabalhista, vive-se um paradoxo: a negociação de acordos e convenções coletivas de trabalho segue tendo efeito para todos os membros da categoria, mas os integrantes da categoria representada e beneficiada não tem qualquer obrigação de financiar o funcionamento dos entes sindicais que negociam estas mesmas normas.

Apesar de aprovada a reforma sob o discurso que era preciso reaproximar o sindicato das bases, a contribuição assistencial, aprovada em assembleia com participação direta dos trabalhadores, foi inviabilizada. Ainda que houvesse aprovação em assembleia, era necessária autorização individual. A reaproximação das bases que ignora a necessidade de participação do trabalhador em assembleia não passa de um discurso vazio. É o contato mais direto do trabalhador com seu sindicato e onde há possibilidade de participação efetiva.

O Brasil se encontrava em descompasso com as recomendações dos órgãos nacionais e internacionais na área de proteção ao trabalho. O Comitê de Liberdade Sindical da OIT dispõe que "a questão do desconto de contribuições sindicais pelos empregadores e seu repasse para os sindicatos deve ser resolvida pela negociação coletiva entre empregadores e sindicatos em geral, sem obstáculos de natureza legislativa". Mesmo o Ministério do Trabalho possuía uma ordem de serviço desde 2009 que assegurava a cobrança de contribuição assistencial de toda a categoria, desde que assegurado o direito de oposição.

Tratando especificamente do tema do repasse de contribuições, a Coordenadoria Nacional de Promoção da Liberdade Sindical (Conalis) do Ministério Público do Trabalho (MPT) editou o Enunciado 24, segundo o qual "a contribuição sindical será fixada pela Assembleia Geral da categoria, registrada em ata, e descontada da folha dos trabalhadores associados ou não ao sindicato". E, ainda, editou a nota técnica nº 2, refletindo o entendimento que os abrangidos pela negociação coletiva devem participar do financiamento desse processo, "sob pena de inviabilizar a atuação sindical, bem como atuar como desincentivo a novas associações".

Com o voto de seis ministros, a tese fixada pelo STF reconhece ser "constitucional a instituição, por acordo ou convenção coletivos, de contribuições assistenciais a serem impostas a todos os empregados da categoria, ainda que não sindicalizados, desde que assegurado o direito de oposição".

A forma de exercício do direito de oposição é um tema que merece ser regulado para garantir a efetiva participação do trabalhador, o contato com o sindicato e evitar que se torne um mecanismo de esvaziamento dos sindicatos por parte de empresas mal-intencionadas. Pode ser uma excelente oportunidade para avançar na regulamentação de práticas antissindicais no país.

Com o julgamento, o Brasil se reposiciona no sentido de garantir a efetiva liberdade sindical e de criar condições fáticas para reaproximação do sindicato com os trabalhadores, ao privilegiar espaços de exercício da autonomia coletiva.

Mais que isto, a decisão do Supremo corrige o curso tomado pela reforma que, ao exigir autorização individual para contribuição, esvaziava a autonomia coletiva dos sindicatos, derivação direta da solidariedade como objetivo republicano e dos valores sociais do trabalho. Privilegia-se, agora, a participação em assembleia como espaços de coletividade e troca, que compreende uma relação de proximidade com os sindicatos, o uso da autonomia coletiva e as negociações coletivas como forma de afirmação do paradigma dos direitos sociais do trabalho.

 

Fonte: Por Danilo Vital, em Conjur

 

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