Acampamento Terra
Livre termina com homologação de territórios, mas indígenas querem mais
A
19ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), que reuniu cerca de 6 mil
indígenas em Brasília durante a semana, terminou nesta sexta-feira (28) com uma
medida aguardada durante todo o encontro: a retomada oficial da política de
demarcações, paralisada durante os governos de Michel Temer (MDB) e Jair
Bolsonaro (PL), por meio da homologação de seis terras indígenas, algo que não
acontecia desde abril de 2018.
O
presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) esteve presente no encerramento do
evento ao lado de ministros e lideranças indígenas, como o cacique Raoni
Mutuktire e representantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib),
organizadora do acampamento.
Lá,
anunciou a conclusão dos processos de reconhecimento oficial de seis
territórios, localizados em seis estados do país. São eles as Terras Indígenas
(TIs) Kariri-Xocó, em Alagoas; Tremembé da Barra do Mundaú, no Ceará; Arara do
Rio Amônia, no Acre; Uneiuxi, no Amazonas; Rio dos Índios, no Rio Grande do
Sul; e Avá-Canoeiro, em Goiás. As seis áreas estavam entre as treze destacadas
pelo Grupo de Trabalho de Povos Indígenas da transição de governo como aptas para
a homologação, a etapa final do rito de demarcação, que depende da assinatura
do presidente da República. Esperava-se que as homologações fossem confirmadas
durante os primeiros cem dias da gestão de Lula, o que não ocorreu.
A
demora, no entanto, causou ansiedade entre o movimento indígena, que tem como
demanda histórica o avanço nas demarcações – mote desta edição do acampamento
–, e passou os últimos anos assistindo a seguidos retrocessos nessa área. Como
mostra reportagem da Agência
Pública, Jair Bolsonaro não apenas cumpriu a promessa eleitoral de não
demarcar “nenhum centímetro” de terras indígenas, como atuou para retardar
diversas etapas do processo.
“Não
quero deixar nenhuma terra indígena que não seja demarcada nesse meu mandato de
quatro anos. Esse é um compromisso que tenho e que fiz com vocês antes da
campanha”, declarou Lula aos indígenas acampados. Quando esteve no ATL do ano
passado, ainda como pré-candidato, ele assinou uma carta-compromisso com uma série
de demandas das organizações que compõem a Apib, como se comprometer
politicamente e garantir recursos “para a identificação, delimitação,
declaração, demarcação e homologação imediata de todas as terras indígenas, até
o final de 2026”, ano em que acaba seu governo. Na ocasião, falou também pela
primeira vez na criação de um “ministério para discutir as questões indígenas”,
que se concretizou no primeiro dia de sua administração.
Kleber
Karipuna, um dos coordenadores executivos da Apib, avaliou que a medida foi um
“pontapé inicial” na retomada das demarcações. “A gente sabia que possivelmente
não seriam [homologadas] todas as terras por questão de tempo de análise dos
processos, que ficaram quatro anos nas mãos dos nossos inimigos no governo
anterior”, disse à Pública. “Mas a gente almeja muito mais. O
movimento indígena tem um papel de articular e cobrar, e vamos fazer isso, mas
com um diálogo próximo ao governo, principalmente com as nossas lideranças que
hoje estão lá.”
·
Parentes
cobram demarcação de terras com conflitos
Os
indígenas cobraram de Lula a retomada das demarcações em diferentes momentos do
ATL, que neste ano ocorreu num contexto inédito, quase quatro meses após a
instituição do Ministério dos Povos Indígenas (MPI). É também a primeira vez
que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e a Secretaria Especial de
Saúde Indígena (Sesai) são comandadas por representantes dos povos originários,
respectivamente, Joenia Wapichana e Weibe Tapeba.
Na
marcha de quarta-feira (26), eram muitas as faixas e cartazes que pediam o avanço
das demarcações. Um grupo de 22 jovens indígenas segurava placas que juntas
formavam as frases “já se passaram 100 dias” e “reage, Lula”.
Na
terça-feira (25), a presidente da Funai, Joenia Wapichana, disse aos ouvidos
atentos dos parentes, como os indígenas de referem uns aos outros, que sua “prioridade número um” é destravar as
demarcações, mas que precisou fazer uma revisão dos treze processos. “Não vou
assinar qualquer papel da outra gestão, tenho que ter responsabilidade de
atualizar esses processos, de ver se estão conforme as reivindicações das
nossas comunidades. Não posso assinar documento que estava parado há dez anos
porque pode ter mudado alguma coisa”, explicou. De acordo com ela, por depender
de análises de técnicos da Funai, isso levou tempo.
Naquele
dia, a ex-deputada federal por Roraima garantiu à Pública que
o órgão havia encaminhado ao MPI 14 processos para homologação – aos treze
iniciais, acrescentou mais um, o da TI Avá-Canoeiro. A reportagem apurou que a
pasta, por sua vez, direcionou 11 deles para análise da Casa Civil, responsável
por enviá-los a Lula para a canetada final.
No
discurso desta sexta-feira, o presidente não explicou por que assinou apenas
seis homologações, tampouco houve oportunidade para que jornalistas o questionassem
sobre o assunto. Falou apenas que “é um processo demorado” que “tem que passar
por muitas mãos”. Em coletiva depois da solenidade com Lula, a ministra dos
Povos Indígenas Sonia Guajajara afirmou que a Casa Civil, comandada pelo
ex-governador da Bahia Rui Costa (PT), não teria conseguido concluir os
processos a tempo. “Vamos elaborar um cronograma para a gente atualizar tanto
os oito processos que não foram assinados hoje, como também a Funai vai
continuar trabalhando para concluir relatórios [de identificação de terras
indígenas] e a constituição de GTs [grupos de trabalho que fazem o trabalho de
identificação]”, disse.
Apesar
do avanço, áreas com conflitos deflagrados ficaram de fora da primeira leva de
homologações. É o caso da Terra Indígena Aldeia Velha, ocupada pelos Pataxó em
Porto Seguro, no sul da Bahia, onde outros territórios do mesmo povo aguardam
demarcação. Na segunda-feira (24), quando começou o ATL, a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) emitiu uma medida
cautelar em
favor dos Pataxó, solicitando que o Estado brasileiro adote as providências
necessárias “para proteger a vida e a integridade pessoal” dos indígenas. O
pedido se refere especificamente às TIs Comexatibá e Barra Velha, palco de ataques
violentos contra os Pataxós nos últimos meses, mas a TI Aldeia Velha está
inserida no mesmo contexto. Quando Sonia Guajajara falava na coletiva de
imprensa, um indígena Pataxó de Barra Velha a questionou aos gritos sobre a
demarcação de seu território, dizendo que não poderia voltar à sua aldeia “sem
uma reposta” e que “seu povo estava morrendo” devido aos conflitos com
fazendeiros invasores.
A
TI Morro dos Cavalos, localizada no município de Palhoça, em Santa Catarina,
também não foi contemplada com a homologação nesta sexta-feira. Os cerca de 600
Guaranis que habitam o local esperam desde 2008 pelo reconhecimento de seus
direitos de posse sobre a área. Nos últimos anos, a comunidade tem sido alvo de
invasões e ataques físicos e racistas. Walter Alberto Sá Bensousan, que briga
no Judiciário contra a demarcação da terra, alegando ser seu
proprietário, foi condenado em
2022 pela Justiça a
excluir um site em que fazia publicações discriminatórias sobre os indígenas de
Morro dos Cavalos, pregando inclusive que são “brasiguaios” para deslegitimar
seu histórico de ocupação tradicional do território.
Juliana
Kerexu, coordenadora executiva da Apib pela Comissão Guarani Yvyrupa, que
congrega coletivos Guarani do Sul e Sudeste, relatou que precisou consolar uma
liderança de Morro dos Cavalos, “enxugar as lágrimas e falar que estamos aqui,
fortes”, contou à reportagem. “Não é à toa que estamos há 523 nessa luta. A
gente sabe que não vai ser de uma hora para a outra que vai mudar. Mas
acreditamos profundamente na luta coletiva, com todas as organizações e
lideranças presentes”, disse.
·
Governo anuncia retorno de políticas indigenistas
Na
ida de Lula ao ATL, foram divulgadas outras medidas de retomada da política
indigenista além das homologações. Uma delas é a instituição do comitê gestor
da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental das Terras Indígenas
(PNGATI). O comitê é o meio pelo qual as comunidades produzem os Planos de
Gestão Territorial e Ambiental (PGTAs), que definem as regras para o uso
sustentável dos recursos nos territórios. Eles garantem, ao mesmo tempo, a
sobrevivência de seus habitantes e a proteção dos ecossistemas e da
biodiversidade.
A
PNGATI foi debatida durante o acampamento. Descrita pelos indígenas como “única
política” elaborada a partir de consulta prévia aos povos, ela foi construída
durante anos e instaurada no governo de Dilma Rousseff (PT), mas depois teve
sua implementação paralisada. Agora, segundo Ceiça Pitaguary, secretária de
Gestão Ambiental e Territorial Indígena do MPI, a ideia é avançar no tema e
obter orçamento interno próprio, já que antes o financiamento da PNGATI vinha
majoritariamente da cooperação internacional.
O
presidente também assinou o decreto de recriação do Conselho Nacional de
Política Indigenista (CNPI), extinto por Jair Bolsonaro logo no início do
governo junto a mais de 30 outros conselhos que integravam a Política Nacional
de Participação Social. O CNPI será um espaço de discussão das políticas
públicas voltadas aos povos indígenas brasileiros e terá paridade de assentos
entre membros do governo e da sociedade civil.
Além
disso, Sonia Guajajara afirmou que será criado em breve, no âmbito do MPI, um
Comitê Interministerial Permanente de Combate ao Crime Organizado que atuará na
desintrusão de terras indígenas.
·
Acampamento decretou emergência climática
Como
a Pública já havia adiantado, na quarta-feira
(26), os povos indígenas presentes no encontro decretaram emergência climática
para destacar seu papel no combate ao aquecimento global. Estudos científicos indicam que
as terras indígenas funcionam como um escudo contra o desmatamento, sobretudo
quando demarcadas.
O decreto traz 18
demandas do movimento indígena a todas as esferas do Estado. Entre elas, além
do avanço nas demarcações e na implementação da PNGATI, estão: que governos
atuem para a revogação de projetos de lei anti-indígenas, como o que pretende
adotar a tese do marco temporal (490/2007); a atualização do compromisso
brasileiro sob o Acordo de Paris, em linha com a meta de limitar o aquecimento
médio do planeta a 1,5°C; e a não concessão de financiamento por parte do BNDES
e outros bancos multilaterais a empresas envolvidas com desmatamento em terras
indígenas.
O
documento pede ainda a reativação da Comissão Nacional para REDD+ (CONAREDD+),
responsável por coordenar e monitorar a implementação da estratégia federal
para os projetos de geração de créditos de carbono florestais pelo desmatamento
evitado. As organizações indígenas querem assentos na CONAREDD+ e em outras
instâncias de discussão de políticas climáticas.
Também
foi reinstalado pela Apib o Comitê Indígena de Mudanças Climáticas (CIMC), que
reunirá lideranças das cinco regiões do país, além de comitês regionais, para
discutir a questão e posicionar o movimento indígena nos debates sobre a
crise do clima. O comitê já existia, mas estava paralisado.
·
Continua a luta contra o marco temporal
O
próximo compromisso do movimento indígena em Brasília, anunciado durante o
Acampamento Terra Livre, é a mobilização para acompanhar o julgamento do marco temporal, que deve ser
retomado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 7 de junho.
De
acordo com a teoria jurídica — utilizada pelo governo de Michel Temer para
atrasar demarcações e depois por Sergio Moro, ex-ministro da Justiça de
Bolsonaro e hoje senador — só deveriam ser formalmente reconhecidos pelo Estado
brasileiro os territórios que estavam ocupados por indígenas na época de promulgação
da Constituição, em outubro de 1988. Áreas das quais as comunidades haviam sido
expulsas e que foram retomadas após essa data não poderão ser demarcadas, caso
a Corte decida a favor da tese. Isso inviabilizaria a homologação de diversas
terras tradicionais.
Lideranças
indígenas como o coordenador jurídico da Apib, Maurício Terena, cobram que Lula se
expresse mais incisivamente contra a tese, defendida por setores ligados ao
agronegócio. No ato de encerramento do ATL, o presidente chegou a levantar uma
bandeira onde se lia “juventude Xokleng contra o marco temporal”.
Os
Xokleng são um dos povos que habitam a Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ, que
está no centro do julgamento. O plenário do STF deve apreciar um recurso que
diz respeito à ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa
Catarina, onde está localizado o território, contra os Xokleng. A decisão do
tribunal terá “repercussão geral”, ou seja, servirá como parâmetro para outros
processos judiciais.
Fonte:
Por Anna Beatriz Anjos, da Agencia Pública
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