A saúde mental no
governo Lula
O
Conselho Nacional de Saúde (CNS) recomendou ao governo
federal revogar a criação do Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas
(DACT), no ministério do Desenvolvimento, Assistência Social, Família e Combate
à Fome (MDS). A indicação foi feita no final de janeiro, mas não surtiu
qualquer efeito até o momento. Também a Associação Brasileira de Saúde
Coletiva (Abrasco)
se posicionou contrariamente ao Departamento de Apoio a Comunidades
Terapêuticas, afirmando que sua criação “cria um conflito interno na gestão
federal, prejudica a implantação de políticas já existentes e ameaça os
princípios da reforma psiquiátrica e da defesa dos direitos humanos das pessoas
em sofrimento mental”.
A Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme)
repudiou a criação do DACT assinalando que “após um processo de transição
marcado pela escuta dos movimentos sociais, e uma proposta de construção
dialogada de uma política que efetivamente cuide da população brasileira, é
paradoxal que seja criado um departamento cuja função específica é dar apoio a
um dispositivo asilar como as chamadas comunidades terapêuticas que, nos
últimos anos, tem sido alvo de diversas inspeções que produziram relatórios
apontando graves violações de direitos humanos”.
Não
obstante a oposição ao DACT, tudo indica que o órgão terá vida longa no governo
de Lula, no ministério comandado por Wellington Dias, cujo orçamento anual é de
cerca de 90 bilhões de reais e tem no Fundo Nacional de Assistência Social um
instrumento estratégico para a gestão das ações nessa área no Brasil. Fica a
aceitação, tácita, de que as ações de “comunidades terapêuticas” são válidas no
enfrentamento de problemas de saúde mental.
O
Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas (DACT) foi criado pelo Decreto
nº 11.392, de 20 de janeiro de 2023 no MDS, vinculado diretamente à secretaria
executiva da pasta, com a missão de:
“i)
assessorar e assistir o ministro de Estado, no âmbito das competências do
ministério, quanto às ações do Governo e do Sistema Nacional de Políticas sobre
Drogas relacionadas à atenção e à reinserção social de usuários e dependentes
de drogas;
ii)
apoiar o ministério da Justiça e Segurança Pública e demais órgãos do poder
executivo federal, no âmbito de suas competências, na execução das ações do
Governo e do Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas relacionadas à atenção
e à reinserção social de usuários e dependentes de drogas;
iii)
apoiar as ações de cuidado e de tratamento de usuários e dependentes de drogas,
em consonância com as políticas do Sistema Único de Saúde e do Sistema Único de
Assistência Social – SUAS, em articulação com o ministério da Justiça e
Segurança Pública e os demais órgãos do Poder Executivo federal;
iv)
desenvolver, coordenar e monitorar a implementação de ações e projetos na área
de cuidado, apoio e mútua ajuda, no âmbito das competências do ministério, de
acordo com as diretrizes e orientações da Política Nacional Sobre Drogas, do
ministério da Justiça e Segurança Pública e dos demais órgãos do Poder
Executivo federal;
v)
propor ao Secretário-Executivo a celebração de contratos, convênios, acordos,
ajustes e instrumentos congêneres com os entes federativos, entidades públicas
e privadas, instituições e organismos nacionais, e acordos internacionais, no
âmbito de suas competências;
vi)
propor parcerias com órgãos governamentais e não governamentais que realizam
atividades voltadas ao cuidado, em articulação com o ministério da Justiça e
Segurança Pública e os demais órgãos do Poder Executivo federal, de forma a
integrar as ações desenvolvidas nacionalmente, no âmbito de suas competências;
vii)
propor, planejar, analisar, coordenar, apoiar e acompanhar parcerias e
contratações na área de cuidado;
viii)
analisar e propor a atualização da legislação relativa à sua área de atuação”.
Porém,
nada disso foi proposto, no período da transição do governo federal, ao grupo de
especialistas incumbido de avaliar a situação da saúde no país, e do Sistema
Único de Saúde (SUS) em especial. Especificamente para a saúde mental, o grupo
da saúde recomendou que a área, historicamente uma coordenação na estrutura do
ministério da Saúde (MS), fosse alçada à condição de Departamento de Saúde
Mental (DSM), proposição que foi elogiada nos quatro cantos do país.
A
recomendação foi aceita e, ao reestruturar o MS com a edição do Decreto nº
11.358, de 1º de janeiro de 2023, o governo criou o Departamento de Saúde
Mental e Enfrentamento do Uso Abusivo de Álcool e Outras Drogas, subordinado à
Secretaria de Atenção Especializada à Saúde (SAES), com a atribuição de:
“a)
coordenar os processos de implementação, fortalecimento e avaliação da Política
Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas e da rede de atenção
psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com
necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas no âmbito do SUS;
b)
elaborar instrumentos técnicos e participar da elaboração de atos normativos
para subsidiar o desenvolvimento, a implantação e a gestão das ações
estratégicas e das redes de saúde vinculadas ao Departamento;
c)
incentivar a articulação com movimentos sociais, organizações não
governamentais e instituições afins, para fomento à participação popular e
social na formulação, no acompanhamento e na avaliação das ações programáticas
estratégicas e das redes de saúde vinculadas ao Departamento;
d)
fomentar pesquisas relacionadas às ações programáticas estratégicas;
e)
promover cooperação técnica com instituições de pesquisa e ensino para o
desenvolvimento de tecnologias inovadoras de gestão e atenção à saúde das ações
programáticas estratégicas para a rede de atenção psicossocial”.
No
entanto, em menos de três semanas o DSM foi amputado das atribuições
relacionadas com o “enfrentamento do uso abusivo de álcool e outras drogas”,
que migraram da pasta da Saúde para a do Desenvolvimento Social. O Decreto nº
11.391, de 20 de janeiro de 2023, alterou o nome do Departamento, mas manteve
formalmente a atribuição do DSM de “coordenar os processos de implementação,
fortalecimento e avaliação da Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e
outras Drogas (…) no âmbito do SUS”.
Como
o SUS é, tecnicamente, um sistema nacional e não um serviço nacional, suas
ações não precisam se ater ao denominado “setor saúde”, e podem ser articuladas
e organizadas de modo intersetorial. Na prática, porém, o SUS é gerido,
predominantemente, como um serviço setorial de saúde. Isto significa que,
competindo ao MDS, “desenvolver, coordenar e monitorar a implementação de ações
e projetos na área de cuidado” relacionado com o uso de “álcool e drogas”, ao
Departamento de Saúde Mental cabe agir nas matérias afetas à “implantação e
gestão das ações estratégicas e das redes de saúde vinculadas ao Departamento”.
Saúde
Mental é uma das áreas mais tensionadas do ministério da Saúde. Segundo o
pesquisador Paulo Amarante, uma das
principais referências nessa área, ao tomar posse na presidência da República,
Michel Temer “nomeou um coordenador absolutamente defensor do modelo
manicomial”, cuja inadequação à política de saúde mental, na perspectiva do
SUS, vem sendo reconhecida desde a 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental
(1987), que rejeitou o modelo manicomial e, conforme Amarante, consolidou a
consigna “Por Uma Sociedade sem Manicômios” e, propondo a “participação de
usuários, familiares, militantes de movimentos de direitos humanos, passou a
vislumbrar uma sociedade sem violências, sem exclusão, concebendo o manicômio
como não apenas o prédio do hospício ou de outras instituições de reclusão e
repressão, mas as práticas e mentalidades sociais de opressão, de ausência de
solidariedade, empatia e reconhecimento da diferença e da diversidade”. Por
essa razão, houve reações ao modelo imposto no período Temer, mas o pior viria
no governo de Jair Bolsonaro que “resolveu” as dificuldades simplesmente
extinguindo a coordenação de saúde mental do MS.
A
saúde mental divide, agora, o governo Lula. Mas essa divisão vem de longe. É
certo que problemas de saúde requerem ações intersetoriais e, portanto, o
conjunto das políticas públicas, sociais e econômicas, devem convergir para
promover a saúde coletiva. Neste caso, a saúde mental. Mas é também consensual
que a coordenação das políticas de saúde incumbe ao SUS e ao seu comando único
em âmbito nacional, que é o ministério da Saúde. Não faz sentido um
Departamento, com “terapêutico” em sua denominação, que não esteja vinculado ao
ministério da Saúde, vale dizer, ao SUS.
Ou
faz sentido? Depende de quem busca sentido. O Conselho Nacional de Saúde, a
Abrasco e a Abrasme, evidentemente definiram suas posições institucionais com
base em conhecimentos científicos contemporâneos que indicam que a “saúde
mental” decorre de múltiplos aspectos que podem ser resumidos na expressão
“determinação social”, não se restringindo aos aspectos apenas biológicos envolvidos.
Para
o CNS e as entidades, embora se reconheçam os aspectos sociais da saúde-doença
mental, as terapêuticas nesta área implicam reconhecer as dimensões
biopsicossociais dos problemas e, portanto, a necessidade de atuação de
profissionais e instituições de saúde que devem orientar suas ações segundo
preceitos éticos e de humanização que recusam o encarceramento, a abstinência e
o fundamento religioso como base da abordagem e outros procedimentos
considerados terapeuticamente inadequados, como a opção manicomial sistemática
e banalizada e ausência de perspectiva de reinserção social do paciente.
Busca-se, em síntese, que a política de saúde mental assegure o cuidado em
liberdade, laico, humanizado, integral, antiproibicionista, antirracista e
antilgbtfóbico.
Mas
esse entendimento dos problemas na área de saúde mental parece não predominar
no MDS, onde a perspectiva da atuação do DACT, definida em suas atribuições,
chama para si a coordenação das “ações do Governo e do Sistema Nacional de
Políticas sobre Drogas”, e apoiar “o ministério da Justiça e Segurança Pública
e demais órgãos do poder executivo federal”, as “ações de cuidado e de
tratamento de usuários e dependentes de drogas, em consonância com as políticas
do SUS e do SUAS”, além de “desenvolver, coordenar e monitorar a implementação
de ações e projetos na área de cuidado, apoio e mútua ajuda, no âmbito das
competências do Ministério, de acordo com as diretrizes e orientações da
Política Nacional Sobre Drogas, do Ministério da Justiça e Segurança Pública e
dos demais órgãos do Poder Executivo federal”.
Para
dar conta de tudo isso, o DACT/MDS celebrará “contratos, convênios, acordos,
ajustes e instrumentos congêneres com os entes federativos, entidades públicas
e privadas, instituições e organismos nacionais, e acordos internacionais” além
de “propor parcerias com órgãos governamentais e não governamentais que
realizam atividades voltadas ao cuidado”, bem como “propor, planejar, analisar,
coordenar, apoiar e acompanhar parcerias e contratações na área de cuidado”.
Embora se afirme que tudo se fará sempre “no âmbito de suas competências”, o
DACT poderá ainda “analisar e propor a atualização da legislação relativa à sua
área de atuação”.
A
esta altura, com toda razão, o leitor, a leitora, estarão a se perguntar: mas,
então, cabe ao SUS e à rede de serviços de saúde fazer o quê?
Um
dos principais desafios enfrentados pelos reformistas que, na segunda metade do
século XX, idealizaram o SUS foi, justamente, lograr que o sistema de saúde
proposto unificasse efetivamente tudo sobre saúde, sob o comando nacional do
ministério da Saúde. Não foi fácil, mas avançamos, embora as unidades de saúde
militares tenham ficado à margem do SUS e, também, muitos hospitais e serviços
de saúde universitários que, ainda hoje, expressam estranhamento ao se verem
incluídos no SUS, como “sistema”.
Mas,
agora, o DACT/MDS parece devolver o SUS ao período pré-SUS. Mais do que “um
problema institucional”, porém, a manutenção do DACT no MDS e o aprofundamento
da perspectiva manicomial que o cerca, acende um enorme sinal amarelo quanto ao
papel de instituições religiosas na política de saúde mental, notadamente no
que se refere ao enfrentamento do uso de “álcool e drogas”. São frequentes as
denúncias de maus tratos e recorrentes violações de direitos humanos praticadas
em “comunidades terapêuticas”, notadamente em localidades remotas,
relativamente isoladas e não fiscalizadas, ou precariamente controlados por
órgãos do poder público.
É
bem conhecido que a ampla maioria das “Comunidades Terapêuticas” se vinculam a
entidades religiosas, que as criam, organizam, mantêm e lhes dão identidade.
Segundo o jornal Folha de S. Paulo, 74% das entidades são católicas ou
evangélicas. Isto não é, em si, um problema. O problema é que, em muitas dessas
instituições, frequentemente a ciência é substituída pela fé e por valores
relacionados à moralidade adotada pelo respectivo segmento religioso.
A
fé entra por uma porta, a ciência sai por outra. Não que não seja possível a
convivência, mutuamente respeitosa, mas a vulgarização religiosa, quase sempre
integrista, busca a submissão do conhecimento científico a alguma ideologia
religiosa. Sem falar em algumas situações – felizmente excepcionais – em que é
flagrante a deformação religiosa para fins político-ideológicos ou mera
corrupção no uso de recursos públicos, como tristemente constatado, ainda
recentemente, em episódios envolvendo líderes religiosos.
No
Brasil, não bastou a separação entre o Estado e a Igreja Católica Romana,
produzida politicamente pela Proclamação da República, em 1889. Apesar da
separação formal, por décadas e ainda hoje, diferentes correntes religiosas se
consideram no direito de receber tratamento privilegiado por órgãos e
servidores públicos, prática largamente tolerada no país. É como se políticas
públicas precisassem do aval de instituições e líderes religiosos para serem
implementadas. Tal é o caso da pretensa institucionalização de “comunidades
terapêuticas”, como recursos assistenciais com funções na política pública de
saúde mental. Se vários segmentos sociais rejeitam essa possibilidade, é bem
verdade que para outros tantos esse é um caminho a ser seguido.
O
silêncio do governo aos reclamos pela extinção do DACT no MDS deve ser
compreendido à luz desse dilema que se abate sobre o Estado e governantes no
Brasil, agravado pela fragilidade da nossa democracia. Confrontar, na condição
de autoridade pública, o poder de líderes religiosos pode ter consequências
(pelo menos eleitorais) que faz calar a boca e prender a mão de muitos
governantes.
Nessa
perspectiva, a falta de rumo da política de saúde mental do governo brasileiro
pode não ser apenas um tropeço de Lula, mas indicar um rumo que,
deliberadamente, o atual governo escolheu. Mas que pode, e segundo vários
segmentos ligados à luta em defesa do SUS e do direito à saúde, deveria rever.
Fonte:
por Paulo Capel Narvai, em A Terra é Redonda
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