Clemente Ganz
Lúcio: Taxa de juros alta impede igualdade
É
essencialmente político o imperativo da igualdade social e da sustentabilidade
ambiental. Sua promoção requer um projeto de desenvolvimento econômico e social
assentado no investimento produtivo, de industrialização, de inovação espraiada
para todos os setores de atividade, de agregação de valor, de incremento da
produtividade e de acesso aos direitos sociais.
É
um imperativo político porque se trata de afirmar uma visão de futuro coletiva,
declarar compromissos e fazer escolhas que se quer compartilhar. Há no Brasil,
e no mundo, bloqueios intencionais contrários a essa possibilidade histórica.
Por
isso, o desafio é mobilizar vontade política – visão, compromissos e escolhas –
para construir uma agenda da transformação produtiva que difunda em todo o
território as capacidades e condições para gerar produtos e serviços tanto para
atender a demanda interna quanto para exportá-los. Trata-se de uma nova agenda
que requer uma construção política entre os agentes econômicos do setor
empresarial, dos trabalhadores e do governo.
As
eleições reabriram portas e janelas para novas possibilidades históricas.
Colocar a igualdade como eixo ético e estético da utopia que pode nos mobilizar
coletivamente significa afirmar a nossa vontade política de enfrentar e superar
as causas das brechas estruturais que historicamente continuam a ser
produzidas.
Trata-se
de incluir a todos no campo de direito coletivo, superando prioritariamente a
miséria e a pobreza, e compartilhar os cuidados para com tudo aquilo que nos é
comum, convergindo para ganhos de eficiência econômica e de produtividade,
distribuindo seus resultados, construindo o sentido de pertencimento coletivo e
de participação na vida democrática.
A
reprimarização da economia, com a exploração dos recursos naturais e de grãos
em natura, o desinvestimento em educação e inovação, o abandono da
industrialização, a queda contínua do investimento para o incremento da
produtividade, o desleixo com a capacidade produtiva de transformação e
exportação, entre outros, são algumas das causas que explicam a dramática
situação presente de aumento da miséria, da pobreza e da desigualdade.
Tragicamente,
também em nosso país estamos reféns dos poderosíssimos interesses dos
rentistas, agentes econômicos que controlam a vida coletiva e dominam o sistema
produtivo para aumentar sua riqueza financeira. A hegemonia asfixiante da
estratégia do rentismo, do pensamento único e do debate público orientado para
garantir os ganhos exorbitantes do rentismo exige superação.
O
presente se abre para essa superação, se aqueles que almejam um outro padrão de
desenvolvimento estiverem dispostos a construí-la. Não será possível colocar o
país em uma trajetória de crescimento econômico virtuoso, que alavanque a renda
média pelo aumento dos salários e a geração de emprego, por políticas públicas
de proteção universal, sem que sejamos capazes de sair do corner em que formos
colocados pelo rentismo e suas estratégias de reprodução e de ganhos
crescentes.
A
hegemonia da economia financeirizada em escala global tem produzido, de forma
ainda mais intensa desde a crise de 2008, distorções dramáticas para a
produção, para o desenvolvimento, para as democracias e para a igualdade.
O
debate está capturado e intencionalmente bloqueado pelos interesses voltados
para o retorno financeiro imediato garantido, impondo uma visão de resultados
em curto prazo ao sistema produtivo e prevalência do retorno aos acionistas.
Faz
parte dessa estratégia manter um processo violento e descomunal de
transferência de renda através de taxas de juros de altíssimo custo para o
consumidor, para o empresário, para o investimento, para o orçamento público e
a receita fiscal.
O
rentismo realiza a captura gananciosa da riqueza produzida pelo trabalho de
todos. No Brasil essa captura se dá em escala escandalosa. Trata-se de um crime
contra o desenvolvimento econômico e social e contra a democracia. O rentismo
viabiliza regras e um ambiente econômico que desincentiva o investimento e a
atividade produtiva.
A
independência do Banco Central para a determinação da taxa de juros e da
política monetária é um exemplo de escolha orientada por interesses e que se
transformou em dogma, verdade irrefutável, que deve responder às expectativas
racionais formuladas pelos próprios rentistas e seus prepostos.
Nosso
desafio e tarefa é ousar, enfrentar dogmas e superar interdições para, como
afirma a Cepal, implementar uma política econômica que vá além das políticas de
metas de controle da inflação, combinando políticas anticíclicas com uma
estratégia de diversificação produtiva e de boas práticas fiscais para geração
de bens e serviços públicos e o fomento das diversas capacidades econômicas e
sociais.
Crédito direcionado, a taxa Selic e a
ignorância confiante do presidente do Banco Central. Por José Luiz Oreiro
A
vida do presidente do Banco Central do Brasil não tem sido nada fácil nos 100
dias de governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Dia sim e outro também
o presidente Lula ataca a política monetária do Banco Central que insiste em
manter a taxa selic em 13,75 % a.a num contexto em que a inflação medida pelo
IPCA acumulada em 12 meses acumulou alta de 4,65% em março de 2023 mesmo após a
reoneração parcial dos impostos sobre combustíveis feita pelo governo federal.
A
taxa real de juros (ex-post) se encontra no patamar de 8,69% a.a, quase 300
pontos base acima da média da taxa selic no período 1999-2022 de “apenas” 5,91%
a.a. Isso num contexto em que a inflação acumulada em 12 meses está quase 200
pontos base abaixo da média do período 1999-2022 de 6,43% a.a.
Trata-se
da mais elevada taxa real de juros praticada entre as maiores economias do
mundo.
Ao
ouvir de um empresário na Lide Brasil Conference nesta sexta-feira, dia 21 de
abril, de que o elevado patamar da taxa selic atrapalha o crescimento do
Brasil, Campos Neto recorreu ao velho arsenal de ideias desgastadas pelo uso
recorrente para explicar o inexplicável. Campos Neto apresentou os seguintes
argumentos:
1
– Apenas 20% do crédito é ligado a Selic, o resto depende de taxas longas que o
Banco Central não controla.
2
– Se a redução da Selic não for (sic) crível então as taxas de juros longas não
vão cair.
3
– A taxa selic está no patamar que se encontra devido à obstrução dos canais de
transmissão da política monetária por parte do crédito direcionado, o qual, ao
reduzir as taxas cobradas sobre algumas linhas de crédito (o crédito agrícola e
o habitacional, por exemplo), faz com que seja necessário uma dosagem maior da
taxa de juros básica para que o Banco Central consiga atingir a meta de
inflação.
Antes
de escrever este post, fui consultar o verbete sobre o presidente do Banco
Central do Brasil na Wikipédia, onde se pode constatar que Roberto Campos Neto
é graduado em economia com especialização em finanças pela Universidade da
Califórnia, tendo sua atuação profissional como operador no mercado financeiro
com passagens pelo Banco Bozano-Simonsen e Santander.
Sua
formação acadêmica e sua experiência profissional não têm nenhuma relação com
Política Monetária, algo que deveria ser condição sine qua non para qualquer
pessoa que exerça a Presidência do Banco Central do Brasil, ainda mais agora na
fase em que o Banco Central é uma “instituição autônoma” e, portanto, livre de
pressões políticas.
Essa
constatação me fez pensar que talvez o problema de Roberto Campos Neto não seja
ele ser, conforme a versão que circula livremente em Brasília, um agente
infiltrado do bolsonarismo no governo Lula com o objetivo de sabotar o governo
por intermédio de uma política monetária excruciantemente contracionista.
Acredito
que Roberto Campos Neto padeça do efeito “Dunning-Krueger” definido como uma
situação na qual a pessoa é ignorante sobre a própria ignorância, e por isso
acredita piamente ser um gênio incompreendido.
Vamos
aos argumentos apresentados por Campos Neto.
A
taxa selic é a chamada taxa básica de juros, ou seja, a meta anual para a taxa
de juros dos empréstimos no mercado interbancário, no qual ao final de cada dia
os bancos compensam tomam emprestado ou emprestam a diferença entre as suas
reservas no Banco Central e as reservas compulsórias. Como a política monetária
é operada por intermédio de uma meta para a taxa de juros do interbancário, o
Banco Central é obrigado a atuar como emprestador de última instância e ofertar
as reservas que os bancos comerciais demandem a essa taxa. Em outras palavras,
a oferta de reservas bancárias é endógena, determinada pela demanda dos bancos
comerciais.
Mas
a taxa selic não é apenas a taxa de juros do mercado interbancário. Ela também
é a taxa de juros de uma parcela considerável de títulos da dívida pública, as
assim chamadas Letras do Tesouro Nacional, sendo equivalente a 42,31% da dívida
mobiliária federal. Como as Letras Financeiras do Tesouro têm duration zero no
sentido de Macauley (Oreiro e Paula, 2021, p.78) segue-se que a taxa de juros
selic também é a taxa de juros livre de risco da economia brasileira, sendo
assim um dos determinantes do custo médio ponderado do capital, o qual é o
custo de oportunidade dos projetos de investimento.
Dessa
forma, mesmo que um projeto de investimento seja 100% autofinanciado, a taxa de
juros selic irá influenciar a decisão de investimento na medida em que é um dos
determinantes do custo do capital. É espantoso como uma pessoa que trabalhou
tantos anos no mercado financeiro desconheça um fato tão simples como esse.
O
custo médio ponderado do capital é a média entre a taxa de juros do capital
próprio (igual à soma entre a taxa de juros livre de risco e o prêmio de risco
específico ao projeto de investimento), ponderada pela participação do capital
próprio na estrutura de capital da firma, e a taxa de juros do capital de
terceiros, ponderada pela participação do capital de terceiros no capital
próprio.
O
capital de terceiros pode ser obtido no mercado de crédito, na forma de
empréstimos dos bancos comerciais ou de bancos de desenvolvimento como o BNDES;
ou no mercado de capitais por intermédio da venda de títulos de dívida junto a
instituições financeiras não bancárias. Os argumentos 2 e 3 de Campos Neto se
referem à taxa de juros do capital de terceiros.
Vamos
começar supondo que uma firma deseje lançar títulos no mercado de capitais para
financiar um projeto de investimento cujo horizonte é de 10 anos. Para evitar
descasamento de prazos entre ativos e passivos o ideal é que a firma emita um
título de dívida de 10 anos de prazo de maturidade. O preço de mercado desse
título será igual valor presente do fluxo de juros que a firma promete pagar ao
longo desse período acrescido de um valor de resgate do título ao final do seu
prazo de maturidade.
A
taxa de juros que iguala o preço do título ao valor presente desse fluxo de
caixa é a taxa de juros na maturidade, ou seja, a taxa de juros que o comprador
do título vai receber se mantiver o título em carteira até o final de seu prazo
de vencimento. Como se trata de um título de 10 anos, podemos dizer que se
trata de uma taxa de juros de 10 anos.
Como
é determinada a taxa de juros desse título? O comprador do título tem sempre a
opção de comprar um título da dívida pública de igual prazo de maturidade. Como
os títulos públicos são livres de risco, segue-se que a taxa de juros de longo
prazo do título privado será igual à taxa de juros de longo prazo dos títulos
públicos acrescida do prêmio de risco que os títulos privados têm que pagar
relativamente aos títulos públicos. Dessa forma, se a taxa de juros de longo
prazo dos títulos públicos aumentar, segue-se que a taxa de juros dos títulos
privados também irá subir, aumentando o custo do capital de terceiros e,
portanto, o custo médio ponderado do capital.
No
caso de uma LFT, a taxa de juros na maturidade será sempre igual à taxa selic,
de forma que não há distinção entre a taxa de juros de curto prazo e a taxa de
juros de longo prazo, ou seja, a curva de rendimentos é horizontal. Para os
títulos públicos pré-fixados, cuja participação na dívida mobiliária federal
era de 24,6% em fevereiro de 2023, a lógica de determinação da taxa de juros na
maturidade é similar a dos títulos privados.
Contudo,
um título pré-fixado com um prazo de maturidade de 10 anos é substituto
(imperfeito) de um título de prazo de maturidade de 1 ano, cuja aplicação pode
ser renovada por 9 anos. Dessa forma, a taxa de juros na maturidade de um
título público de 10 anos será igual à média geométrica do valor corrente da
taxa de juros de um ano (a taxa selic no ano 1) e das expectativas que os
compradores de títulos formam no ano 1 a respeito da taxa selic para o período
i=2, …10.
O
presidente do Banco Central afirma que (ponto 2 acima) que se a redução da taxa
de juros de curto prazo não for crível, então a taxa de juros de longo prazo
não irá cair. Como a taxa longa nada mais é do que a média geométrica das
expectativas de mercado sobre o valor futuro da taxa curta, o que Campos Neto
quer dizer é que as expectativas que o mercado formula sobre o comportamento
futuro do Banco Central, que é quem tem o poder para fixar a taxa selic a cada
instante do tempo, não são compatíveis com o comportamento corrente do Banco
Central.
Parece
confuso, mas não é. O que Campos Neto quer dizer é o seguinte “se eu fizer uma
redução da taxa de juros que o mercado considere incompatível com o cumprimento
da meta de inflação no futuro, então o mercado vai antecipar uma elevação
futura da taxa selic que terá como consequência a manutenção da taxa longa em
patamares elevados”.
O
problema é que as expectativas do mercado sobre o comportamento futuro da taxa
selic dependem criticamente da sinalização que o próprio Banco Central dá sobre
o comportamento futuro da Selic. Quando o presidente do Banco Central vem a
público dizer, como o ocorrido no dia 30 de março de 2023, que a taxa selic
deveria ser de 26,5% para que a meta de inflação de 2023 pudesse ser cumprida,
ele está passando uma mensagem clara para o mercado de que o Banco Central não
irá reduzir a taxa de juros tão cedo, o mercado então precifica essa informação
na curva de juros fazendo com que os preços dos títulos públicos acabem por
sancionar o cenário pessimista do Banco Central.
Aqui
temos um claro problema de falha de coordenação de expectativas: o Banco
Central não reduz os juros porque acha que o mercado verá a redução como
insustentável e o mercado precifica a manutenção da taxa de juros selic num
patamar elevado porque acha que o Banco Central não irá reduzir os juros.
Passemos
agora ao ponto 3. Esse argumento tem sido usado sistematicamente desde 2004
pelos economistas liberais como justificativa para o patamar elevado de juros
no Brasil. Eu mesmo ouvi da boca do Joaquim Levy, pelos idos de 2004 ou 2005,
quando ele era secretário do Tesouro do primeiro governo Lula numa palestra
realizada na Federação das Indústrias do Estado do Paraná. Esse argumento foi
usado pelo governo Temer para substituir a TJLP, a taxa de juros fixada pelo
Conselho Monetário Nacional para os empréstimos concedidos pelo BNDES, pela TLP
uma taxa real que acompanha o movimento da taxa selic.
Daqui
se segue, portanto, que uma parte relevante do canal de transmissão da política
monetária teria sido “desobstruída” durante o governo Temer, de maneira que,
fosse essa a causa dos juros elevados, então a taxa selic deveria estar num
patamar muito mais baixo do que o atual. Mas, como chamei atenção no início
deste post, o valor real da taxa selic se encontra hoje ACIMA da média
histórica de 1999 a 2022 da taxa selic. Esse argumento do Campos Neto
simplesmente não para em pé.
Mas
a fala de Campos Neto mostrou também uma enorme ignorância sobre a relação
crédito-depósitos numa economia de moeda fiduciária. Ao contrário do senso
comum apresentado nos manuais de economia monetária, os Bancos não emprestam
depósitos que tenham recebido previamente dos seus clientes; mas criam
depósitos quando concedem empréstimos.
Com
efeito, quando um banco decide conceder um empréstimo a uma pessoa física ou
jurídica ele credita o valor do empréstimo na conta de depósito a vista do
tomador, criando naquele exato momento um depósito à vista igual ao valor do
empréstimo (líquido das taxas cobradas pelo banco). Caso o volume de depósitos
criado exija um montante de reservas compulsórias superior ao que o banco
dispõe no Banco Central, ele simplesmente toma essas reservas emprestadas no
mercado interbancário pagando a taxa de juros selic, que é fixada pelo próprio
Banco Central.
Dessa
forma, numa economia de moeda fiduciária empréstimos criam depósitos e
depósitos criam reservas (Lavoie, 2022, capítulo 4). A implicação disso para a
questão do crédito direcionado é muito direta: a taxa de juros do crédito livre
não é mais alta do que a do crédito direcionado devido ao “efeito
meia-entrada”, ou seja, devido à existência de uma fração fixa do volume de
depósitos que têm que ser alocados em linhas de crédito menos lucrativas,
forçando os bancos a cobrar taxas de juros mais altas sobre os depósitos que
eles podem emprestar livremente.
Isso
porque o volume de depósitos não é independente do volume de crédito concedido,
mas é determinado por ele. Se a taxa de juros do crédito livre é mais alta do
que a do crédito direcionado é porque os bancos percebem um risco maior na
concessão de crédito livre do que na concessão de crédito direcionado. Aversão
ao risco, não efeito meia-entrada, é o que explica o diferencial de juros entre
os segmentos livre e direcionado do mercado de crédito.
Em
suma, Campos Neto apresentou na sexta-feira 21 mais uma desculpa esfarrapada
para manter a taxa de juros selic no patamar que se encontra. Vamos aguardar
qual será a próxima desculpa. Da minha parte, acredito que o estoque de
desculpas esteja prestes a se esgotar.
Fonte:
Brasil Debate
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