“Se todos parassem
de comer animais, melhorariam as chances de evitar uma catástrofe”, afirma filósofo
australianos
Considerado
a bíblia do movimento animalista, poucos livros têm tanta influência no mundo
de hoje como Libertação animal, do filósofo australiano Peter Singer. Autor de
mais de cinquenta títulos, professor em várias universidades e referência
internacional no campo da bioética, neste ano recebeu da Fundação BBVA o
prestigioso Prêmio Fronteiras do Conhecimento por toda a sua trajetória.
O
reconhecimento coincide com a publicação em espanhol, pela editora Plaza y
Valdés, de Ética en acción: Henry Spira, el activista que doblegó a las
multinacionales. Publicado em inglês há mais de vinte anos, este ensaio, que
está entre uma biografia e uma crônica, nasceu como um desejo e uma promessa de
Peter Singer a Henry Spira, uma figura da esquerda norte-americana pouco
conhecida na Espanha, mas cujos métodos originais de protesto mudaram o
ativismo do movimento animalista.
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Eis a entrevista.
• Henry Spira foi muito pragmático em sua
estratégia. Antes de agir, costumava tentar negociar alguns dos objetivos que
almejava com as multinacionais, enviando cartas, por exemplo, ou solicitando
uma reunião. Só quando tinha uma resposta negativa, ou nenhuma resposta, tomava
outras medidas, como empreender campanhas publicitárias nos meios de
comunicação. Em geral, essa estratégia foi muito exitosa, como conta no livro.
Hoje, considera que a negociação com as multinacionais é a melhor opção para
mudar as coisas?
Sim,
continuo pensando que sempre se deve começar assumindo que aqueles que dirigem
as empresas são pessoas razoáveis, que compreenderão o porquê nos opomos às
suas práticas. Não há nada de ruim começar por aí. Às vezes, podemos até
conseguir que a empresa mude suas práticas sem a necessidade de ir além.
Contudo,
se isso não acontece, ao menos ficará demonstrado que somos razoáveis, que
apontamos o problema de modo educado e demos a eles a oportunidade de mudar,
mas que se negaram, que não somos “revoltosos” que se divertem protestando. Ao
contrário, preferiríamos não fazê-lo, mas como a empresa se negou a ouvir, não
nos deixou alternativa a não ser passar à ação.
• Spira escolhia muito bem seus objetivos.
É um aspecto muito importante a ser considerado no momento de se fazer um
protesto.
Claro.
Para que a proposta seja efetiva, o movimento animalista deveria considerar
três critérios: a importância do objetivo, a permeabilidade à mudança da
empresa envolvida e seu descaso ao responder às nossas propostas. Devemos
escolher uma causa que seja importante, com a qual possamos ter um grande
impacto.
No
movimento animalista, isto acontece geralmente pelos animais de granja, em vez
de cachorros e gatos, porque há muito mais animais de granja que sofrem. A
permeabilidade à mudança da empresa é fundamental e implica estabelecer metas
alcançáveis.
Por
exemplo, em vez de pedir à Revlon (naquele momento, a empresa de cosméticos
líder nos Estados Unidos) para que parasse de testar seus produtos em animais,
o que significaria não trazer nenhum novo produto para o mercado, Spira pediu
que doassem uma pequena porcentagem de seus enormes lucros para o
desenvolvimento de alternativas ao teste com animais. Essa estratégia demorou
vários anos para ter resultados, mas foi realista e deu seus frutos, pois se
demonstrou que essas alternativas existem.
• A imagem que apresenta de Spira é a de
um homem muito vitalista, muito comprometido com a causa dos animais. Tinha uma
intuição muito desenvolvida quando buscava escolher as ferramentas mais
eficazes para lutar contra o “lobby” da carne. Por exemplo, fez um uso muito
criativo da publicidade.
É
verdade que foi muito criativo com a publicidade, mas uma parte importante
dessa estratégia recai em outra pessoa, Mark Graham, que produziu os anúncios.
Mas, é claro, Henry forneceu as informações para os anúncios e teve muito a ver
com a produção.
• Também tinha uma grande capacidade de
entender a sociedade em que vivia e sua psicologia.
Sim.
Spira conhecia muito bem a preocupação das pessoas comuns e o que sentiam. Em
sua juventude, foi membro de uma organização trotskista na qual todos acreditavam
que em algum momento haveria um levante operário contra o capitalismo e o
stalinismo. Spira percebeu que o grupo vivia em uma espécie de bolha, nunca
falavam com aqueles que desafiavam suas crenças e que pensavam que a revolução
provavelmente não aconteceria.
Não
quis repetir esses erros. Se tinha uma ideia para uma campanha, como acabar com
o teste de cosméticos nos olhos dos coelhos, antes de comercializá-los, entrava
em um ônibus e se sentava aleatoriamente ao lado de alguém com quem, em
seguida, estabelecia uma conversa, e perguntava: “Você sabe que as empresas de
cosméticos testam seus produtos nos olhos dos coelhos?”. Se as pessoas
reagissem negativamente, sabia que havia escolhido um bom alvo.
• Nesse sentido, como conta no prólogo e
no último capítulo, “Ética em ação” também pode ser lida como um manual de
instruções para o ativismo em geral e o animalista em particular.
Henry
tinha muito interesse em que, após sua morte, outros ativistas pudessem se
inspirar em seus métodos. Ao longo dos anos, conversamos a esse respeito e eu
lhe dizia que algum dia escreveria um livro sobre ele e a forma como havia
conseguido mudar tantas coisas.
Quando
soube que tinha um câncer que provavelmente acabaria com ele, telefonou-me e
disse que tinha chegado o momento para eu escrever o livro. Livrei-me de alguns
assuntos de trabalho na Austrália e voei até Nova York para passar um tempo com
ele e reunir o material que precisava. Por sorte, viveu o suficiente para vê-lo
publicado.
• Considera que as multinacionais, hoje,
estão mais conscientes do poder do ativismo e da opinião pública ou, ao
contrário, ainda se sentem como fortalezas inexpugnáveis?
Estão
conscientes do poder da opinião pública. Sabem que precisam de uma “licença
social” para operar e que podem perdê-la. É claro, parte de sua estratégia
consiste em melhorar essa imagem pública, convencer as pessoas de que não há
problema no que fazem. Contudo, nem sempre isso é possível, então, às vezes,
sua mudança precisa ser real.
• Agora, o “lobby” da carne está mais
forte ou mais fraco do que nos anos 1970 e 1980, quando Spira o enfrentou?
Nos
Estados Unidos, o lobby da carne ou, de modo mais geral, o lobby da produção
animal, porque inclui os produtores de leite e ovos, continua sendo muito
poderoso. Não existe uma legislação nacional sobre bem-estar animal, fica nas
mãos dos estados e, claro, os estados que abrigam o maior número de animais de
granja permitem que os produtores de animais façam o que quiserem.
Contudo,
nos estados com normas que permitem aos cidadãos promover referendos, existem
leis mais rígidas que protegem os animais, o que demonstra que o lobby da
produção animal não consegue convencer o público, mesmo quando pode influenciar
os membros do Congresso.
Na
União Europeia, por outro lado, o lobby da produção animal parece mais frágil
do que nos Estados Unidos porque as leis que protegem os animais de granja são
mais exigentes do que lá. Por exemplo, a União Europeia proíbe grades para
animais de granja, bem como para animais criados para produção de peles e
outros fins.
• E os cidadãos? Somos mais sensíveis à
crueldade contra os animais?
Sim,
ao menos nos países ocidentais as pessoas se tornaram mais sensíveis à
crueldade infligida aos animais. Contudo, isso não é algo global. Na China, por
exemplo, ainda há bem pouca preocupação com o bem-estar animal e não existem
leis nacionais que protejam os animais de granja.
Por
que é tão difícil para a população entender que os animais sofrem?
Tanto
que os comem! Para evitar a dissonância cognitiva, as pessoas se convencem de
que os animais que comem são muito diferentes dos animais que amam, como
cachorros e gatos. É claro, não existe base para pensar que bois e porcos são
menos capazes de sofrer do que cachorros e gatos.
• O pragmatismo de Spira nem sempre foi compartilhado
por outra parte do movimento animalista, talvez mais “radical” em suas
estratégias e enfoques. Não seria mais importante para o movimento animalista
colaborar e se entender, apesar das diferenças? Afinal, o inimigo é muito mais
poderoso, como um Golias.
Claro!
Estou plenamente de acordo. O movimento animalista deve trabalhar unido contra
o inimigo comum. É claro, cada organização pode manter um enfoque diferente,
sempre que seja a partir da não-violência. O uso da violência pode ser muito
prejudicial, não só para as pessoas, mas também para o prestígio do próprio
movimento.
• Spira sempre disse que sua percepção do
sofrimento animal mudou após ler o seu livro “Libertação animal”. Como se sente
sabendo que exerceu essa influência sobre tantas pessoas?
Claro,
estou muito satisfeito por ter tido essa influência, por ter contribuído para
alcançar melhorias nas condições de vida dos animais.
• A mudança climática é uma das razões
pelas quais, atualmente, muitas pessoas param de comer animais. Você é otimista
a esse respeito?
É
difícil ser otimista sobre a mudança climática, mas não perdi totalmente a
esperança de que possamos evitar cenários catastróficos nos quais grande parte
da Terra se torne inabitável. E, é claro, se todo mundo parasse de comer animais,
melhorariam enormemente nossas chances de evitar uma catástrofe.
Carne é responsável por 86% da pegada de
carbono na dieta dos brasileiros
Um
dos principais alimentos no prato do brasileiro, a carne contribui com 86% da
pegada de carbono da dieta nacional. Isso é o que mostra uma análise de
pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), publicada na última
terça-feira (31) na revista científica “Environment, Development and
Sustainability”.
Além
da emissão de gases poluentes, a carne consumida nacionalmente representa 90%
do uso da terra considerando a dieta total, 77% da poluição de corpos d’água
associados à produção de alimentos e 26% do uso da água
O
trabalho foi baseado em dados das duas últimas edições da Pesquisa de Orçamento
Familiar, realizadas pelo IBGE em 2008 e 2017.
Segundo
o documento, nesse período, a presença da carne – bovina, suína, de frango e
peixe – aumentou 12% na alimentação dos brasileiros de todas as faixas de
renda, o que acarretou também o aumento nas emissões associadas à sua produção.
O
aumento da pegada de carbono também foi consequência da redução do consumo das
carnes menos poluentes, diz o trabalho. Entre todos os grupos, a ingestão de
peixe reduziu 23% entre os brasileiros, enquanto a de porco aumentou 78%, de
frango, 35%, e a carne bovina não apresentou mudanças expressivas no consumo no
período analisado, apesar de ser a carne mais consumida pelo brasileiro – 40%
do total ingerido.
• Cenário atual
Apesar
do trabalho dos pesquisadores da USP ser focado no período pré-pandemia da
Covid-19, quando o consumo de carne diminuiu no país, seus autores analisam que
as emissões associadas à produção do alimento não diminuíram.
“Durante
a pandemia, pesquisas apontam que houve uma redução no consumo de carne, as
pessoas não conseguiam comer a quantidade de carne que comiam anteriormente. Se
formos pensar que essas pessoas reduziram o consumo de carne, provavelmente a
pegada de carbono da dieta delas diminuiu, mas isso não significa que a pegada
de carbono do Brasil diminuiu, porque continuamos a produzir carne”, disse em
entrevista a ((o))eco a professora da Faculdade de Saúde Pública da USP e uma
das autoras do estudo, Aline Martins de Carvalho.
• Questão cultural
O
Brasil é um dos países que mais consome carne no mundo. Segundo os
pesquisadores da USP, em 2017, o consumo brasilerio de carne foi de 96g/1000
kcal, por dia.
De
acordo com a professora Aline Martins de Carvalho, o consumo de carne no Brasil
não está ligado somente ao aspecto nutricional, mas também cultural.
“Identificamos
que a carne é muito importante no Brasil, principalmente a cultura do
churrasco, que vem associada a um status econômico, à diversão, que sempre tem
uma carne envolvida. Algumas pessoas nem consideram como refeição quando não
tem carne, então a gente vê como um alimento extremamente cultural”, diz.
Mas,
devido aos impactos ambientais e na saúde, ela e os demais autores da pesquisa
sugerem uma redução na quantidade ingerida. “Você não precisa tirar a carne, se
reduzir a quantidade, já vai ajudar tanto na saúde quanto também no meio
ambiente. Ela é certamente muito rica nutricionalmente, mas pode ser consumida
em menor quantidade que não teria problema nenhum para a saúde”, finaliza.
Fonte:
Entrevista com Peter Singer a Javier Morales Ortiz, para El Diario - tradução do Cepat para IHU OnLine/O ((eco))
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