sábado, 29 de abril de 2023

“Se todos parassem de comer animais, melhorariam as chances de evitar uma catástrofe”, afirma filósofo australianos

Considerado a bíblia do movimento animalista, poucos livros têm tanta influência no mundo de hoje como Libertação animal, do filósofo australiano Peter Singer. Autor de mais de cinquenta títulos, professor em várias universidades e referência internacional no campo da bioética, neste ano recebeu da Fundação BBVA o prestigioso Prêmio Fronteiras do Conhecimento por toda a sua trajetória.

O reconhecimento coincide com a publicação em espanhol, pela editora Plaza y Valdés, de Ética en acción: Henry Spira, el activista que doblegó a las multinacionales. Publicado em inglês há mais de vinte anos, este ensaio, que está entre uma biografia e uma crônica, nasceu como um desejo e uma promessa de Peter Singer a Henry Spira, uma figura da esquerda norte-americana pouco conhecida na Espanha, mas cujos métodos originais de protesto mudaram o ativismo do movimento animalista.

>>>> Eis a entrevista.

•        Henry Spira foi muito pragmático em sua estratégia. Antes de agir, costumava tentar negociar alguns dos objetivos que almejava com as multinacionais, enviando cartas, por exemplo, ou solicitando uma reunião. Só quando tinha uma resposta negativa, ou nenhuma resposta, tomava outras medidas, como empreender campanhas publicitárias nos meios de comunicação. Em geral, essa estratégia foi muito exitosa, como conta no livro. Hoje, considera que a negociação com as multinacionais é a melhor opção para mudar as coisas?

Sim, continuo pensando que sempre se deve começar assumindo que aqueles que dirigem as empresas são pessoas razoáveis, que compreenderão o porquê nos opomos às suas práticas. Não há nada de ruim começar por aí. Às vezes, podemos até conseguir que a empresa mude suas práticas sem a necessidade de ir além.

Contudo, se isso não acontece, ao menos ficará demonstrado que somos razoáveis, que apontamos o problema de modo educado e demos a eles a oportunidade de mudar, mas que se negaram, que não somos “revoltosos” que se divertem protestando. Ao contrário, preferiríamos não fazê-lo, mas como a empresa se negou a ouvir, não nos deixou alternativa a não ser passar à ação.

•        Spira escolhia muito bem seus objetivos. É um aspecto muito importante a ser considerado no momento de se fazer um protesto.

Claro. Para que a proposta seja efetiva, o movimento animalista deveria considerar três critérios: a importância do objetivo, a permeabilidade à mudança da empresa envolvida e seu descaso ao responder às nossas propostas. Devemos escolher uma causa que seja importante, com a qual possamos ter um grande impacto.

No movimento animalista, isto acontece geralmente pelos animais de granja, em vez de cachorros e gatos, porque há muito mais animais de granja que sofrem. A permeabilidade à mudança da empresa é fundamental e implica estabelecer metas alcançáveis.

Por exemplo, em vez de pedir à Revlon (naquele momento, a empresa de cosméticos líder nos Estados Unidos) para que parasse de testar seus produtos em animais, o que significaria não trazer nenhum novo produto para o mercado, Spira pediu que doassem uma pequena porcentagem de seus enormes lucros para o desenvolvimento de alternativas ao teste com animais. Essa estratégia demorou vários anos para ter resultados, mas foi realista e deu seus frutos, pois se demonstrou que essas alternativas existem.

•        A imagem que apresenta de Spira é a de um homem muito vitalista, muito comprometido com a causa dos animais. Tinha uma intuição muito desenvolvida quando buscava escolher as ferramentas mais eficazes para lutar contra o “lobby” da carne. Por exemplo, fez um uso muito criativo da publicidade.

É verdade que foi muito criativo com a publicidade, mas uma parte importante dessa estratégia recai em outra pessoa, Mark Graham, que produziu os anúncios. Mas, é claro, Henry forneceu as informações para os anúncios e teve muito a ver com a produção.

•        Também tinha uma grande capacidade de entender a sociedade em que vivia e sua psicologia.

Sim. Spira conhecia muito bem a preocupação das pessoas comuns e o que sentiam. Em sua juventude, foi membro de uma organização trotskista na qual todos acreditavam que em algum momento haveria um levante operário contra o capitalismo e o stalinismo. Spira percebeu que o grupo vivia em uma espécie de bolha, nunca falavam com aqueles que desafiavam suas crenças e que pensavam que a revolução provavelmente não aconteceria.

Não quis repetir esses erros. Se tinha uma ideia para uma campanha, como acabar com o teste de cosméticos nos olhos dos coelhos, antes de comercializá-los, entrava em um ônibus e se sentava aleatoriamente ao lado de alguém com quem, em seguida, estabelecia uma conversa, e perguntava: “Você sabe que as empresas de cosméticos testam seus produtos nos olhos dos coelhos?”. Se as pessoas reagissem negativamente, sabia que havia escolhido um bom alvo.

•        Nesse sentido, como conta no prólogo e no último capítulo, “Ética em ação” também pode ser lida como um manual de instruções para o ativismo em geral e o animalista em particular.

Henry tinha muito interesse em que, após sua morte, outros ativistas pudessem se inspirar em seus métodos. Ao longo dos anos, conversamos a esse respeito e eu lhe dizia que algum dia escreveria um livro sobre ele e a forma como havia conseguido mudar tantas coisas.

Quando soube que tinha um câncer que provavelmente acabaria com ele, telefonou-me e disse que tinha chegado o momento para eu escrever o livro. Livrei-me de alguns assuntos de trabalho na Austrália e voei até Nova York para passar um tempo com ele e reunir o material que precisava. Por sorte, viveu o suficiente para vê-lo publicado.

•        Considera que as multinacionais, hoje, estão mais conscientes do poder do ativismo e da opinião pública ou, ao contrário, ainda se sentem como fortalezas inexpugnáveis?

Estão conscientes do poder da opinião pública. Sabem que precisam de uma “licença social” para operar e que podem perdê-la. É claro, parte de sua estratégia consiste em melhorar essa imagem pública, convencer as pessoas de que não há problema no que fazem. Contudo, nem sempre isso é possível, então, às vezes, sua mudança precisa ser real.

•        Agora, o “lobby” da carne está mais forte ou mais fraco do que nos anos 1970 e 1980, quando Spira o enfrentou?

Nos Estados Unidos, o lobby da carne ou, de modo mais geral, o lobby da produção animal, porque inclui os produtores de leite e ovos, continua sendo muito poderoso. Não existe uma legislação nacional sobre bem-estar animal, fica nas mãos dos estados e, claro, os estados que abrigam o maior número de animais de granja permitem que os produtores de animais façam o que quiserem.

Contudo, nos estados com normas que permitem aos cidadãos promover referendos, existem leis mais rígidas que protegem os animais, o que demonstra que o lobby da produção animal não consegue convencer o público, mesmo quando pode influenciar os membros do Congresso.

Na União Europeia, por outro lado, o lobby da produção animal parece mais frágil do que nos Estados Unidos porque as leis que protegem os animais de granja são mais exigentes do que lá. Por exemplo, a União Europeia proíbe grades para animais de granja, bem como para animais criados para produção de peles e outros fins.

•        E os cidadãos? Somos mais sensíveis à crueldade contra os animais?

Sim, ao menos nos países ocidentais as pessoas se tornaram mais sensíveis à crueldade infligida aos animais. Contudo, isso não é algo global. Na China, por exemplo, ainda há bem pouca preocupação com o bem-estar animal e não existem leis nacionais que protejam os animais de granja.

Por que é tão difícil para a população entender que os animais sofrem?

Tanto que os comem! Para evitar a dissonância cognitiva, as pessoas se convencem de que os animais que comem são muito diferentes dos animais que amam, como cachorros e gatos. É claro, não existe base para pensar que bois e porcos são menos capazes de sofrer do que cachorros e gatos.

•        O pragmatismo de Spira nem sempre foi compartilhado por outra parte do movimento animalista, talvez mais “radical” em suas estratégias e enfoques. Não seria mais importante para o movimento animalista colaborar e se entender, apesar das diferenças? Afinal, o inimigo é muito mais poderoso, como um Golias.

Claro! Estou plenamente de acordo. O movimento animalista deve trabalhar unido contra o inimigo comum. É claro, cada organização pode manter um enfoque diferente, sempre que seja a partir da não-violência. O uso da violência pode ser muito prejudicial, não só para as pessoas, mas também para o prestígio do próprio movimento.

•        Spira sempre disse que sua percepção do sofrimento animal mudou após ler o seu livro “Libertação animal”. Como se sente sabendo que exerceu essa influência sobre tantas pessoas?

Claro, estou muito satisfeito por ter tido essa influência, por ter contribuído para alcançar melhorias nas condições de vida dos animais.

•        A mudança climática é uma das razões pelas quais, atualmente, muitas pessoas param de comer animais. Você é otimista a esse respeito?

É difícil ser otimista sobre a mudança climática, mas não perdi totalmente a esperança de que possamos evitar cenários catastróficos nos quais grande parte da Terra se torne inabitável. E, é claro, se todo mundo parasse de comer animais, melhorariam enormemente nossas chances de evitar uma catástrofe.

 

       Carne é responsável por 86% da pegada de carbono na dieta dos brasileiros

 

Um dos principais alimentos no prato do brasileiro, a carne contribui com 86% da pegada de carbono da dieta nacional. Isso é o que mostra uma análise de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), publicada na última terça-feira (31) na revista científica “Environment, Development and Sustainability”.

Além da emissão de gases poluentes, a carne consumida nacionalmente representa 90% do uso da terra considerando a dieta total, 77% da poluição de corpos d’água associados à produção de alimentos e 26% do uso da água

O trabalho foi baseado em dados das duas últimas edições da Pesquisa de Orçamento Familiar, realizadas pelo IBGE em 2008 e 2017.

Segundo o documento, nesse período, a presença da carne – bovina, suína, de frango e peixe – aumentou 12% na alimentação dos brasileiros de todas as faixas de renda, o que acarretou também o aumento nas emissões associadas à sua produção.

O aumento da pegada de carbono também foi consequência da redução do consumo das carnes menos poluentes, diz o trabalho. Entre todos os grupos, a ingestão de peixe reduziu 23% entre os brasileiros, enquanto a de porco aumentou 78%, de frango, 35%, e a carne bovina não apresentou mudanças expressivas no consumo no período analisado, apesar de ser a carne mais consumida pelo brasileiro – 40% do total ingerido.

•        Cenário atual

Apesar do trabalho dos pesquisadores da USP ser focado no período pré-pandemia da Covid-19, quando o consumo de carne diminuiu no país, seus autores analisam que as emissões associadas à produção do alimento não diminuíram.

“Durante a pandemia, pesquisas apontam que houve uma redução no consumo de carne, as pessoas não conseguiam comer a quantidade de carne que comiam anteriormente. Se formos pensar que essas pessoas reduziram o consumo de carne, provavelmente a pegada de carbono da dieta delas diminuiu, mas isso não significa que a pegada de carbono do Brasil diminuiu, porque continuamos a produzir carne”, disse em entrevista a ((o))eco a professora da Faculdade de Saúde Pública da USP e uma das autoras do estudo, Aline Martins de Carvalho.

•        Questão cultural

O Brasil é um dos países que mais consome carne no mundo. Segundo os pesquisadores da USP, em 2017, o consumo brasilerio de carne foi de 96g/1000 kcal, por dia.

De acordo com a professora Aline Martins de Carvalho, o consumo de carne no Brasil não está ligado somente ao aspecto nutricional, mas também cultural.

“Identificamos que a carne é muito importante no Brasil, principalmente a cultura do churrasco, que vem associada a um status econômico, à diversão, que sempre tem uma carne envolvida. Algumas pessoas nem consideram como refeição quando não tem carne, então a gente vê como um alimento extremamente cultural”, diz.

Mas, devido aos impactos ambientais e na saúde, ela e os demais autores da pesquisa sugerem uma redução na quantidade ingerida. “Você não precisa tirar a carne, se reduzir a quantidade, já vai ajudar tanto na saúde quanto também no meio ambiente. Ela é certamente muito rica nutricionalmente, mas pode ser consumida em menor quantidade que não teria problema nenhum para a saúde”, finaliza.

 

Fonte: Entrevista com Peter Singer a Javier Morales Ortiz, para El Diario -  tradução do Cepat para IHU OnLine/O ((eco))

 

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