terça-feira, 11 de julho de 2023

Reforma tributária: Nenhuma taxação sem representação

O debate da Reforma Tributária teve um grande avanço nesta semana. Afinal, um tema que vinha sendo discutido há mais de três décadas, finalmente, deu um passo adiante. Ainda falta a percepção de que a tributação é o quinhão que os cidadãos/contribuintes pagam ao Estado, esperando, em troca, um mínimo de bem-estar. Isso implicaria a população exigir a prestação de serviços públicos essenciais adequados e de qualidade, como a educação básica e a assistência à saúde, serviços de água e esgoto, facilidades de acesso à habitação, mobilidade e eficiência nos diversos modais de transporte, proteção ao meio ambiente e segurança, em contrapartida às contribuições para manter a burocracia e o funcionamento da máquina do Estado.

O Estado é um grande provedor, e pode arbitrar melhor a redistribuição de renda e de oportunidades, funções que jamais serão feitas pelo mercado, cuja lógica é a concentração de renda. A sociedade, como um todo, ainda está longe de ter a percepção de que os governos nada mais fazem do que recolher seus impostos e que, portanto, tudo o que o Estado fizer em prol da população ainda será pouco, pois os governos têm como princípio básico de sua existência num Estado Democrático de Direito a arbitragem dos conflitos distributivos entre as camadas da sociedade, buscando atender as carências das camadas menos favorecidas. Mas, do ponto de vista institucional, houve a discussão da representatividade dos 26 estados mais o Distrito Federal, que compõem a República Federativa do Brasil. O que já é um grande avanço.

A História ensina que a emancipação das 13 Colônias Inglesas nas Américas, que acabaram dando origem à declaração de Independência dos Estados Unidos da América, em 7 de julho de 1776, nasceu de uma revolta contra a tributação e a falta de participação política da população na discussão da cobrança de impostos. Tudo começou, quando os colonos (súditos ingleses e irlandeses) que vieram com suas famílias para o novo mundo, foram mobilizados nas décadas de 1750 e 1760 por pastores protestantes, contra a taxação inglesa sobre a produção de açúcar e o imposto do Selo. Quando todos já estavam mobilizados contra a tributação, um sermão candente do pastor-ajunto Jonathan Mayhew, da Old West Church, em 1650, invocou um mote que motivou a guerra civil inglesa (1642-1651): “No taxation whitout representation”, ou mais claramente, “nenhuma taxação sem representação".

Vale lembrar que alguns séculos atrás a reação dos súditos da elite inglesa (representados pelos barões) contra a sanha tributária do Reino, levou à criação da Carta Magna, assinada em 1215 pelo Rei João Sem Terra. Nela, o Rei se comprometeu a reconhecer os direitos civis dos súditos: a Igreja poderia ficar livre da interferência do governo e todos os cidadãos livres (o que era uma minoria, ainda) teriam direito a possuir e herdar propriedades e de serem protegidos de impostos excessivos.

No Brasil, movimento semelhante foi a reação dos Inconfidentes Mineiros, liderados por Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, contra a derrama de impostos da Coroa Portuguesa (a cobrança do quinto do ouro – 20%) para custear a reconstrução de Lisboa, arrasada por terremoto. Houve a percepção de que os impostos jamais seriam devolvidos aos brasileiros sob a forma de prestação de serviços. Tiradentes foi o único Inconfidente enforcado, no Rio de Janeiro, em 21 de abril de 1792. Mas o germe da representação política em troca de tributos ficou no ar. E o príncipe regente, Pedro I, declarou a Independência em 7 de setembro de 1822, “antes que algum aventureiro” cortasse os laços do Brasil Colônia com Portugal.
A reação da sociedade à sanha tributária tem uma tradução: antes de o Estado cobrar, venha discutir conosco. A criação do Parlamento, no começo do século 19, institucionalizou a participação dos representantes da sociedade na elaboração de impostos e projetos de investimentos e gastos sociais, custeados pelas receitas tributárias. Nos estados democráticos modernos, os parlamentares escolhidos pelo voto direto dos cidadãos-eleitores-contribuintes arbitram esse conflito, com deputados e senadores defendendo a sociedade.

·         Tributação X representação política

A reforma tributária promete, por seu desenho de simplificar e reduzir a carga de impostos sobre o consumo, condensados no Imposto sobre Valor Agregado (IVA), e de ampliar a tributação sobre lucros, dividendos e grandes fortunas, melhorar a equidade fiscal do país. Aproximadamente 175 países adotam o Imposto sobre Valor (IVA) no mundo. A alíquota média está em torno de 19,2%. Os tributos sobre consumo correspondem a, aproximadamente, 30% do total das receitas tributárias dos países da OCDE. O país que aplica a menor alíquota é Andorra, 4,5%, e a maior alíquota é da Hungria, com 27%. Nova Zelândia tem uma alíquota de 15% e o México de 16%. No Brasil, a tributação sobre o consumo responde por quase 70% da arrecadação, contra pouco mais de 30% sobre a renda e o patrimônio. A reforma tende a inverter o quadro.

Mas as reações dos estados sulistas e do Sudeste à representação política desproporcional à população dos estados do Norte e do Nordeste sugerem que o Congresso precisa aproveitar o espírito reformador desta legislatura para aprofundar alguns dos temas arranhados pelos governadores de São Paulo, do Sul e de Minas, que reclamaram do poder desigual face à população de contribuintes no conselho federativo (a instância federativa para definir a redistribuição dos recursos arrecadados). Ficou estabelecido que ele terá 27 membros, um para cada estado. Os municípios e o Distrito Federal terão 27 membros, sendo 14 eleitos com base nos votos igualitários e 13 com base nos votos ponderados pelas respectivas populações. As deliberações serão feitas em duas etapas - uma por maioria absoluta e outra de representantes que correspondam a mais de 60% da população do país; e em relação aos municípios e ao Distrito Federal, a maioria absoluta de seus representantes. Trata-se de um arranjo paliativo que mostra a necessidade de reavaliação da representação de cada um dos entes federativos, sobretudo no Senado.

Na Câmara, as bancadas dos deputados federais são mais ou menos proporcionais à população representada em cada Colégio Eleitoral. São Paulo, o estado mais populoso e com mais eleitores, tem uma bancada de 70 deputados federais. Minas Gerais vem em 2º, com 53, e o Rio de Janeiro, tem 46 representantes, seguido pela Bahia, com 39. Os menores estados em população (Acre, Amapá, Amazonas, Roraima, Amapá, Rondônia, Sergipe e Tocantins), têm oito deputados cada, assim como o Distrito Federal.

Já no Senado, a Constituinte acabou legitimando a criação do 3º senador, o “senador biônico”, não eleito pelas urnas, mas inventado pelo governo Geisel, no Pacote de Abril de 1977, quando após derrotas nas eleições de 1974 e de 1976, a maioria do governo ficou ameaçada no Colégio Eleitoral (senadores, deputados federais e prefeitos das grandes capitais, então nomeados) que escolheria o sucessor em 1979. Com o “senador biônico”, a ditadura voltou a ter maioria no Senado. Para isso cassou, dois meses depois do pacote, em junho, o mandato do senador Alencar Furtado (MDB-PR). E a criação do Estado do Mato Grosso do Sul, abriu três vagas de senadores, devidamente preenchidos pelo partido hegemônico, a Arena.

São Paulo reclama que o senador eleito representante do estado – o astronauta e ex-ministro da Ciência e Tecnologia de Bolsonaro, Marcos Pontes (PL-SP) - tenha tido 10,714 milhões de votos, mas tenha o mesmo poder de representação que Davi Alcolumbre (União), reeleito senador pelo Amapá com 196 mil votos. Na prática, porém, o ex-presidente do Senado, hoje à frente da poderosa Comissão de Constituição e Justiça do Senado, tem mais peso político que Marcos Pontes e os senadores Otto Alencar (PSD-BA), eleito com 4,2 milhões de votos, ou o senador Cleitinho, eleito pelo PSC-MG também com 4,2 milhões de votos. Até porque Alcolumbre sonha em voltar a presidir a Casa.

A Proposta de Emenda Constitucional da Reforma Tributária acabou sendo votada na 5ª feira, em esforço concentrado, sob a batuta do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). A PEC foi aprovada com 382 votos no 1º turno da votação e 375 no 2º. O texto agregará 5 tributos federais e estaduais em dois IVAs (Imposto sobre valor agregado), um de competência federal (CBS) e outro dos entes federados (IBS). Apesar de novas concessões a alguns setores, os principais pontos da PEC-45, que vem sendo discutida há anos, foram mantidos. As mudanças propostas têm o potencial de simplificar o sistema tributário, reduzir sua cumulatividade e mitigar a guerra fiscal no âmbito subnacional.

Na 6ª feira, o plenário rejeitou três destaques e o projeto vai ser submetido a votação no Senado, em agosto, após o recesso parlamentar da semana que vem. Os critérios de repartição dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FDR), outra fonte de disputa entre os estados ricos e os mais pobres e carentes de transferências Constitucionais, serão estabelecidos por lei complementar. Também ficou para agosto a nova rodada de votação na Câmara do projeto do Arcabouço Fiscal, após as emendas feitas pelo Senado no texto aprovado pela Câmara em junho.

·         Vitória de Haddad

Mas ainda houve tempo para outra grande vitória do governo Lula, particularmente do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que costurou apoios à Reforma Tributária e agiu para aparar arestas, como as levantadas por seu adversário na eleição ao governo de São Paulo, o ex-ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, que acabou dando apoio à reforma. Foi a aprovação da volta do voto de desempate a favor da União no Carf, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. Trata-se de uma vitória superimportante no projeto do Arcabouço Fiscal do governo, com potencial de reforçar em pelo menos R$ 70 bilhões o caixa da Receita Federal do Brasil quando recursos de grandes empresas no Carf sobre multas ou impostos devidos tendem a pender a favor do governo em casos de empate entre os representantes do setor privado e do governo no Conselho de contribuintes.

O Arcabouço Fiscal se nutre de duas linhas gerais: o 1º é o reforço da arrecadação para calçar o aumento dos gastos fiscais compensatórios às camadas mais podres da sociedade, desassistidas no governo Bolsonaro. O Carf e outras cobranças em litígio, que tendem a acordos mais rápidos, diante do risco de perdas futuras no Carf, podem reforçar a arrecadação. O 2º vetor do crescimento da receita é decorrência do crescimento da economia. As indicações do Bradesco e do Itaú são de que o PIB do 2º trimestre terá pequeno aumento (revertendo a previsão anterior de queda).

Como o Senado aprovou a indicação de dois novos nomes para a diretoria do Banco Central – Gabriel Galípolo, ex-secretário executivo da Fazenda, assumirá, ainda este mês, a importante pasta da Política Monetária, acumulada por Diogo Guillen, da Política Econômica, desde março, com a companhia de Aílton Santos, na Fiscalização –, a reunião do Comitê de Política Monetária do Banco Central, em 1 e 2 de agosto, deve aprofundar a tendência de baixa dos juros, já prevista para a reunião. Os números negativos da inflação de junho, ajudados pela queda de preços dos gêneros alimentícios e pela baixa do diesel, podem estimular a continuidade do crescimento no 2º semestre. Inflação menor e juros mais palatáveis ajudam muito o crescimento.

·         Derrota de Bolsonaro

Depois da condenação a ficar inelegível, por oito anos, pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por insuflar o país contra as urnas eletrônicas e os membros do TSE, inclusive com a esdrúxula convocação dos embaixadores estrangeiros para uma reunião no Palácio da Alvorada, em 18 de julho de 2022, com transmissão ao vivo da TVBrasil e abertura de link para as redes sociais bolsonaristas, quando voltou a colocar em dúvida a lisura do pleito que teria lugar em outubro (na ocasião, o presidente estava perdendo terreno para o avanço de Lula, que liderava as pesquisas eleitorais desde abril), o ex-presidente Jair Bolsonaro sofreu nova grande derrota política ao se colocar frontalmente contra a Reforma Tributária. Cabe lembrar que os dois juízes que foram condescendentes para com as ações do ex-presidente deixaram de pedir vista justamente porque se o fizessem, Bolsonaro perderia direito a concorrer no pleito de 2030, caso ainda tenha condições físicas e políticas para isto.

A derrapada de sua posição radicalmente contrária à Reforma Tributária acabou provocando uma cisão no que se supunha ser sua base de apoio na extrema-direita. Caberia notar que a reforma só não foi votada em seu governo porque a pandemia da Covid-19, em março de 2020, suspendeu tanto a reforma Administrativa quanto a Tributária que se seguiriam à reforma da Previdência, aprovada em 2019. Na derrota, teve companhia dos governadores Romeu Zema (Novo-MG), Ronaldo Caiado (União-GO) Jorginho Melo (PL-SC).

Seu ministro e aliado político, Tarcísio de Freitas (o governador de São Paulo eleito pelo Republicanos) foi grosseiramente atacado por Jair Bolsonaro e seus radicais aliados do PL e de outros veios da extrema direita. Simplesmente por ter dialogado com o governo Lula, que comanda o Executivo desde 1º de janeiro de 2023, após a eleição por 60,345 milhões de votos (50,90% dos votos válidos). Ou seja, uma semana depois da condenação do TSE, Bolsonaro volta a marcar posição contra o Estado Democrático de Direito, que pressupõe a negociação política entre os partidos e os diversos entes federativos.

É interessante notar que três expoentes que fizeram parte da base de apoio da campanha à reeleição de Jair Bolsonaro - o senador Ciro Nogueira (PP-PI), que foi seu último chefe da Casa Civil; o deputado federal, Marcos Pereira, presidente do Republicanos, o partido da Igreja Universal do Reino de Deus, de Edir Macedo; e o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), que divide o comando do Centrão com Ciro Nogueira – bateram na mesma tecla: não é possível ficar contra os interesses nacionais e as exigências de crescimento da economia. Ciro Nogueira foi categórico após a aprovação da Reforma Tributária na Câmara: “Nenhuma oposição pode ser contra o Brasil".

Na semana passada disse aqui na coluna que achava precipitada a busca por um sucessor de Bolsonaro na ultradireita. Quando o extremismo arrefecer na vida política brasileira, afluirão novamente (e normalmente) nomes do centro democrático, que é o ponto de equilíbrio da sociedade brasileira, ora pendendo para a centro direita, ora para a centro esquerda. As opções pelos extremos foram exceção nos dois últimos pleitos, por rejeição (não por escolha).

·         Reforma deve conversar com o Censo

Volto a insistir. Após a 1ª etapa da Reforma Tributária ser aprovada na Câmara dos Deputados: é preciso que a classe política, a começar pelos ministros e governadores, mergulhe de cabeça no Censo Demográfico de 2022. Mesmo com imperfeições, o Censo oferece o retrato mais próximo das mazelas e carências da sociedade. Ou seja, o roteiro mais seguro para que não se gaste o parco e bom dinheiro público (o seu, o meu o nosso dinheiro dos impostos) em áreas que não precisem tanto, enquanto outras áreas ficam descobertas.

Os orçamentos anuais e plurianuais devem ser elaborados tendo por base a radiografia da sociedade brasileira, nos estados e, sobretudo, nos municípios. Antes de morar no Brasil ou no Rio ou em São Paulo ou num estado do Sul ou do Nordeste, o cidadão-contribuinte-eleitor vive numa casa, casebre ou apartamento de uma determinada avenida, rua, ou beco do município X, Y ou Z. É o olhar dos prefeitos que deve ficar mais atento às radiografias do Censo, ainda que a visão direta dos problemas de cada região deveria, necessariamente, ser do conhecimento prévio do alcaide. Mas o desenho da distribuição do Orçamento Geral da União, que privilegia a Educação e a Saúde engorda verbas para o FNDE (que estimula a construção de escolas e de ônibus de transporte escolar, nem sempre necessários, mas que permitem gordas comissões, em vez da qualificação do ensino, pela maior capacitação dos professores). Em casos absurdos, há a farra da distribuição de robôs em Alagoas (com as digitais de assessores do atual presidente da Câmara) ou dos notebooks em Minas Gerais em número acima do de alunos do município.

Não se sabe se a carência maior é na pediatria ou na geriatria, o grande desafio das próximas décadas, com a forte desaceleração do crescimento populacional. As cidades carecem de serviços de abastecimento de água e coleta e tratamento de esgotos, bem como da coleta de lixo, mas os prefeitos não gostam de abrir valas e embutir manilhas. Preferem asfaltar ruas ou construir pontes, que ficam mais visíveis e geram dividendos a curto prazo.

Nos meus 73 anos de existência conheci três reformas tributárias. É um arcabouço que precisa refletir a realidade do país e fazer sua projeção para os próximos 30 anos. A de 1964-1967, começou com reformas pontuais no Imposto de Renda. Muita gente era isenta: professores, autores, magistrados e donos de jornais, mas a pecha ficou de que os jornalistas eram isentos. A isenção se aplicava mais aos donos de jornais. Os jornalistas profissionais, na verdade, ganhavam tão pouco que ficavam fora dos limites de declaração. Reorganizaram-se os incentivos fiscais. No final de 1964 foi criado o IR na fonte para profissionais autônomos e aluguéis (os donos de imóveis, sequer declaravam os rendimentos!).

Outra inovação foi corrigir, com a correção monetária introduzida em junho de 1964, tanto dívidas como valores a receber da Receita Federal. No fim de 1965 foi criado o Registro de Pessoas Físicas para o Imposto de Renda (de início o atual CPF tinha a sigla CIC). Com a criação efetiva do Banco Central, em 31 de dezembro de 1964, a partir de 1965 são regulados os Impostos sobre Operações Financeiras, sobre o Câmbio e sobre transações com valores mobiliários. A receita do IOF ajudaria a custear o Banco Central.

A reforma mais importante foi a substituição do Imposto sobre Vendas e Consignações pelo Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICM), a partir de 1967. Impostos federais foram estruturados para os diversos setores da indústria, com carga maior sobre bebidas e fumo. Mas o Brasil de então era uma sociedade que vivia mais no campo que nas cidades, assentadas pelo litoral (São Paulo, Belo Horizonte e Curitiba eram as capitais mais para o interior). Brasília, inaugurada em 21 de abril de 1960, engatinhava. Parte do Poder Executivo continuava no Rio de Janeiro, antiga capital. Em Brasília, as árvores mal davam sombra e os gramados não se espalhavam. O barro ficava impregnado nas solas dos sapatos. O café era o carro-chefe da receita cambial brasileira. As primeiras plantações de soja floresciam no Rio Grande do Sul.

Em 1988, com a Constituição da Redemocratização, veio a reforma tributária. Mas o Brasil já era um país urbano desde a 2ª metade dos anos 70 (a geada no café em 1975 alterou radicalmente a agricultura e o uso da terra no Paraná e em São Paulo). No Governo Geisel, que se instalou efetivamente em Brasília, foi feita uma redistribuição espacial da indústria e do agronegócio no país. Preocupado com o vazio de oportunidades nos demais estados e a alta concentração industrial em São Paulo (que logo se tornaria antieconômica), Geisel proibiu que o Conselho de Desenvolvimento Industrial de dar incentivos fiscais para novas fábricas de automóveis e da indústria pesada no ABCD.

A Fiat se instalou em Betim (MG), em 1976, e a Volvo no Paraná. Foram implantados polos petroquímicos na Bahia (Camaçari) e Rio Grande do Sul (Triunfo e Canoas). As próprias montadoras trocaram o ABCD (onde passaram a ter dificuldades logísticas para receber insumos e despachar mercadorias prontas) pelo interior de São Paulo. Hoje há fábricas de automóveis, caminhões e tratores e máquinas agrícolas em SP, PR, MG, RJ, RS, SC, PE, CE e GO. A Bahia perdeu, temporariamente, a fábrica da Ford, mas está fechando a vinda, para ocupar as antigas instalações em Camaçari, de uma montadora chinesa de veículos elétricos. A produção de motos é concentrada na Zona Franca de Manaus, com resíduos em São Paulo e Paraná. Vê-se que a descentralização funcionou, amenizando os desequilíbrios regionais. Há o retorno dos filhos de migrantes que foram para as cidades nos anos 80-90 para as novas oportunidades da indústria e do agronegócio no interior e cidades médias.

Mas houve intensa guerra fiscal por incentivos entre os 27 estados que quase travou a simplificação da reforma tributária. Na Constituinte de 1986-88, o capítulo da reforma tributária teve como relator o então deputado federal José Serra (PSDB-SP). Serra encarnou, a ferro e fogo, o espírito colonizador dos paulistas. Os bandeirantes de então, que concentravam a produção industrial, queriam seguir controlando economicamente o país. Além do recolhimento do ICMS (já acrescido dos serviços, atividade que passou a liderar a economia brasileira nos anos 80, seguindo a tendência mundial) no local de produção, o constituinte (invertendo a lógica) criou um regime próprio para beneficiar São Paulo na questão da tributação sobre os insumos energéticos.

Como ainda não haviam sido descobertos os gigantescos campos de petróleo e gás do pré-sal da Bacia de Santos, que se estende do Rio de Janeiro até Santa Catarina, Serra definiu que o recolhimento de ICMS sobre insumos energéticos seria no estado consumidor. Com isso, São Paulo bigodeou os tributos sobre a energia elétrica, vinda do Paraná, Minas Gerais e Goiás, além do carvão de Santa Catarina e Rio Grande do Sul e, sobretudo, da energia nuclear (de Angra dos Reis-RJ) e do petróleo e gás vindos da Bacia de Campos e do Espírito Santo (diga-se que a perda do RJ com isso é de bilhões e bilhões de reais). Na indústria canavieira, São Paulo não chegava a perder muito.

Agora, com São Paulo tendo gás e petróleo do pré-sal, e já consolidado como Centro Financeiro Nacional (condição desfrutada pelo Rio de Janeiro até meados dos anos 90, quando a “indústria sem chaminé” se mudou para São Paulo, atraindo para lá uma enorme circulação de riqueza, sem que aqui protestássemos), houve menos resistência dos paulistas às propostas modernizantes da reforma tributária. Até porque a capital paulista e o cinturão do ABCD, que inclui ainda Osasco e Guarulhos, virou o mais importante do país no comércio e em serviços, o novo carro-chefe da economia brasileira. Isso, Jair Bolsonaro não entende, comprovando sua visão errada do país.

 

Fonte: Por Gilberto Menezes Côrtes, no Jornal do Brasil

 

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