Racismo impacta no
envelhecimento dos negros no Brasil, aponta pesquisa
Envelhecer
não é fácil para boa parte da população, mas é ainda mais difícil para quem é
negro, e Terê Cordeiro, 70, ex-empregada doméstica e hoje poeta, cita um dentre
vários exemplos para ilustrar essa realidade:
"Se
chega uma velhinha branca a um pronto-socorro público, o atendimento é ruim.
Mas, se é uma velhinha negra que chega, com o chinelo de dedo gasto na parte de
trás, o atendimento é muito pior."
O
que ela e tantos idosos negros sentem na pele foi traduzido em números por uma
pesquisa recém-lançada, intitulada Envelhecimento e Desigualdades Raciais,
realizada pelo Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) em parceria
com o Itaú Viver Mais.
O
estudo entrevistou 500 pessoas com mais de 50 anos, presencialmente, em suas
residências, em três capitais: São Paulo, Salvador e Porto Alegre, em 2021.
As
cidades foram escolhidas por apresentarem um alto índice de envelhecimento
populacional, em que o grupo dos idosos cresce mais do que o de jovens. Já a
faixa dos 50 aos 60 anos, não considerada idosa pela Organização Mundial da
Saúde (OMS), foi incluída no estudo com a intenção de avaliar o envelhecimento
de uma forma mais ampla, como um processo contínuo, que resulta de um acúmulo
de vivências.
Os
resultados da pesquisa confirmam que a velhice dos negros no Brasil é o
somatório das desigualdades impostas pelo racismo ao longo da vida, como a
baixa escolaridade, a insegurança alimentar, o trabalho precário, a falta de
acesso a serviços de saúde e de cultura e a exposição à violência, entre
outros.
O
estudo apresenta o índice de envelhecimento ativo --formado por condicionantes
que influenciam na qualidade de vida, como saúde física e mental, mobilidade,
segurança, inclusão digital, sociabilidade e condição financeira.
O
índice é o resultado de uma série de perguntas relacionadas a esses aspectos, e
vai de 0 a 100. Quanto mais próximo de cem, melhor a situação daquele grupo de
pessoas.
Considerando
as três cidades e as diferentes faixas etárias a partir dos 50 anos (50-59;
60-69; 70-79 e 80 ou mais), na maior parte delas a população branca tem índices
mais elevados do que a negra.
Além
disso, na maioria das faixas etárias nas diferentes cidades, a situação dos
homens tende a ser melhor do que a das mulheres.
Entre
pessoas de 60 a 69 anos da cidade de São Paulo, por exemplo, o índice de
envelhecimento ativo das mulheres negras é de 51, enquanto o das mulheres
brancas é de 53,3. No caso dos homens, o índice dos negros é de 46,5, enquanto
o de brancos, de 55,1.
A
pesquisa traz uma série de dados a partir dos quais fica claro por que o
envelhecimento da população negra é mais difícil do que o da branca.
Avaliemos,
por exemplo, o acesso a serviços privados de saúde, com base no mesmo grupo de
São Paulo, de 60 a 69 anos. Dentre as mulheres entrevistadas, são 30% das
brancas e 27% das negras as que têm acesso a eles. A diferença foi gritante
para os homens nessa amostra pesquisada pelo Cebrap. Apenas 1% dos negros
entrevistados (foram ouvidos 70, segundo os pesquisadores) acessa serviços
pagos de saúde, enquanto, no caso dos brancos, são 46%.
Os
homens negros, também destaca a pesquisa, são as maiores vítimas de mortalidade
prematura, já a partir dos 15 anos e normalmente associada à violência, mas
também a riscos no trabalho e à falta de acesso a serviços de saúde.
Em
geral, a mortalidade da população negra brasileira é maior do que a da branca,
o que faz com que a proporção de pretos e pardos se reduza em faixas etárias
mais altas. No Sudeste, por exemplo, na faixa dos 25 aos 49 anos, a população
de pretos e pardos é de 51%, enquanto, acima dos 50, cai para 43%.
"O
Brasil é negro, mas o envelhecimento é branco", disse, no evento de
lançamento da pesquisa, o enfermeiro Roudom Ferreira Moura, cujo doutorado na
USP apontou a desigualdade racial entre idosos.
Quando
a desigualdade de gênero se soma à racial, o estudo aponta a mulher idosa negra
no mais distante patamar de um envelhecimento ativo. Isso fica evidente quando
se considera o aspecto financeiro.
As
mulheres negras relataram uma maior dificuldade para pagar as contas. Ainda
avaliando a mesma população de São Paulo, entre 60 e 69 anos, 63% das mulheres
negras disseram considerar difícil ou muito difícil quitar as contas mensais
com o rendimento disponível. No caso das brancas, foram 54%. Para os homens, a
dificuldade com os gastos mensais foi apontada por 58% dos negros e por 38% dos
brancos.
Em
debate realizado no lançamento da pesquisa, Márcia Lima, professora de
sociologia da USP e secretária nacional de Políticas de Ações Afirmativas e
Combate e Superação ao Racismo, do Ministério da Igualdade Racial, citou a obra
"Sítio do Picapau Amarelo", de Monteiro Lobato, para corroborar a
conclusão do estudo.
"Temos
aquelas duas velhices, a da Dona Benta, a vovó que acolhe, e a da Tia
Anastácia, que está lá para servir e não tem história, não tem família."
Lúcia
Xavier, coordenadora-geral da ONG Criola, que defende os direitos das mulheres
negras, apontou que "alcançar a velhice, sobretudo no caso da população
negra, é vencer processos complexos de violência e de discriminação".
"Quem
conseguiu vencer a morte neonatal, a morte na adolescência e passou dos 60 anos
já ganhou na loteria", afirmou.
Alexandre
Silva, secretário nacional dos Direitos da Pessoa Idosa, do Ministério de
Direitos Humanos, abordou, no debate sobre a pesquisa, a necessidade de se
realizar no país o "letramento das pessoas idosas em relação aos seus
direitos".
"Desde
o pré-natal da mãe a desigualdade se coloca, e o negro acumula traumas sem
viver plenamente a cidadania", afirmou ele, que é fisioterapeuta,
gerontólogo e doutor em saúde pública pela USP, com uma tese sobre a
desigualdade racial dos idosos.
"Trauma"
aparece na primeira estrofe do poema criado por Terê Cordeiro a pedido para
esta reportagem. Sua avó, negra, tinha 15 anos quando, em 1912, foi estuprada
pelo senhor de engenho, em Pernambuco.
O
filho dessa violência foi o pai de Terê, que nasceu branco, casou-se com uma
negra e replicou práticas de violência, racismo e machismo com a mulher, a quem
repetia sempre "Cala boca, sua negrinha".
Terê
trabalhou na roça na infância, mudou-se para São Paulo na adolescência e conta
ter vivido uma semiescravidão como empregada doméstica, morando em um quartinho
na casa dos patrões, com uma folga por mês.
Ela
conseguiu terminar o ensino médio aos 60 anos, entrou para um grupo de poetas
idosas, e escreveu o seguinte poema sobre desigualdade racial no
envelhecimento:
"Ser
idoso nos dias de hoje
É
difícil e quase um trauma
Além
das dores físicas
Também
tem as dores da alma.
Nos
equipamentos públicos
Ou
mesmo supermercado
Sofremos
racismo explícito
Por
vezes ele vem velado.
Entramos
no transporte público
Já
somos chamados de velhos
Por
não passar a catraca
E
é um bafafá eterno.
Nos
lares deveria haver ternura
Mas
nem sempre isso existe
A
falta de compreensão
Deixa
nossa vida triste.
Por
fim, uso de gratidão
Com
Deus, família e irmãos
Pela
dádiva de envelhecer
Obrigada,
Deus, pela unção."
O Brasil que mostra a sua cara. Por
Marcio Pochmann
O
Brasil do primeiro quarto do século 21 se apresenta profundamente diferente
daquele que existia antes do ingresso na globalização dos anos 1990.
Sinteticamente, a nação vergou.
De
acordo com o Fundo Monetário Internacional, a participação do Brasil no PIB
mundial (em preços correntes e em poder de paridade de compra) declinou de
4,3%, em 1980 para 1,7%, em 2022. Da sexta maior economia do mundo, retrocedeu
à nona posição global.
Para
as Nações Unidas, a presença do Brasil na população mundial decresceu de 2,7%,
em 1980, para 2,5%, em 2022. Da quinta maior população, regrediu para a sétima.
A se manter essa trajetória demográfica, o Brasil pode deixar de estar entre os
dez países mais populosos do mundo no final do século 21.
Considerando
as informações do Censo de 2022, chamam a atenção três grandes mudanças
identificadas no Brasil desde o início do século 21.
A
primeira diz respeito à longa estagnação da renda per capita nacional, que
terminou por impactar direta e indiretamente nas decisões dos brasileiros,
especialmente no que diz respeito à trajetória da natalidade. A aceleração na
queda dos nascimentos em relação ao total da população se mostrou decisiva para
que a transição demográfica se aprofundasse muito rapidamente.
Assim,
o Brasil, que tinha o seu passado de forte crescimento populacional, inverteu o
sinal ao longo do início do século 21. Caso não seja alterada a política
demográfica, por exemplo, a população do país se manterá estabilizada, podendo
ainda diminuir em termos absolutos, enquanto no século 20, o número de
brasileiros foi multiplicado por dez vezes e no século 19 multiplicado por
cinco vezes.
A
segunda grande alteração é o inédito processo da desmetropolização
populacional, com a mudança do sistema industrial, outrora complexo,
diversificado e integrado regionalmente, para o modelo econômico
primário-exportador acompanhado pela desindustrialização nacional.
No
ano de 2022, por exemplo, o conjunto das grandes cidades constituídas por 500
mil e mais habitantes reduziu a participação relativa no total da população
para 29%.
Em
2010, as metrópoles brasileiras responderam por 29,3% do total da população,
bem acima do ano 2000, quando era de 27,6%. Em contrapartida, o conjunto das
cidades médias constituídas por 100 mil a 500 mil habitantes cresceu a presença
relativa no total da população para 28%, enquanto em 2010 era de 25,4% e, em
2000, de 23,2%.
Destaca-se
que as regiões metropolitanas, em sua maioria situadas nas áreas litorâneas do
país, exerciam até os anos 1980 uma forte centralidade no progresso da
industrialização nacional. Atualmente, após o longo percurso da
desindustrialização, as bases da moderna sociedade urbana e industrial
encontram-se arruinadas, com as metrópoles do país concentrando atrasos da
pobreza, desemprego e violência.
Uma
verdadeira síntese da cara do Brasil forjado pelo novo sistema jagunço a
dominar pelo fanatismo religioso e pelo banditismo social as multidões de
sobrantes sem destino que vagueiam nas periferias dos centros urbanos desmetropolizados.
Em contrapartida, avança a modernidade na forma de enclaves econômicos cada vez
mais conectados ao exterior com o turismo e, sobretudo, o agrarismo exportador.
Neste
contexto do enriquecimento interiorizado nas cidades médias, crescendo no ritmo
“chinês”, o vazamento da riqueza atrai um segmento crescente e variado de
ocupações “servis”, indispensáveis à reprodução do modelo consumista copiado do
american way of life e situado na “cobertura aberta no andar de cima” da
sociedade brasileira. Assim, a dinâmica contida do emprego na atividade
econômica primário-exportadora termina por ser “compensada” pela difusão de
serviços de atenção à reprodução dos novos-ricos do país.
Por
fim, mas não menos importante, os múltiplos impactos decorrentes da inclusão da
população brasileira na Era Digital – em grande medida, a defasagem dos atuais
padrões tributário e federalista, próprios do passado da sociedade industrial
que ficou para trás. Neste sentido, o decréscimo da população e o seu
deslocamento geográfico no território nacional revelam a reconfiguração social
do país.
A
nova cara do Brasil rebate direta e indiretamente nos municípios, especialmente
naqueles que perdem e nos que convivem com a estagnação dos seus habitantes. Na
Era Digital, o motor dos negócios não mais se assenta na exclusividade do
dinamismo tradicional exercido pela ocupação realizada fora do local de
moradia.
Sem
condições de oferecer condições de vida e trabalho decentes, o país passou a
conviver com o ineditismo da diáspora de brasileiros que emigraram para outros
países. No ano de 2022, as estimativas apontam 2,4% da população nacional
vivendo fora, enquanto em 1980 era menos de 1%.
Fonte:
FolhaPress/Terapia Política
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