Paraisópolis: a 1° audiência 3 anos e sete meses depois da ação que matou nove jovens
Quase quatro anos depois, acontece a primeira
audiência do processo criminal contra policiais que participaram do massacre de
Paraisópolis. O nome foi dado à ação policial na comunidade na Zona Sul de São
Paulo que levou à morte de nove jovens, com idades entre 14 e 23 anos, e um
número incontável de feridos. Cerca de 5 mil pessoas se divertiam no baile da
DZ7, que acontece dentro da comunidade. O baile foi encerrado com bombas e
tiros, e as pessoas acabaram sendo encurraladas na correria pelas vielas.
Dos 31 policiais que participaram do episódio, 12
estão sendo processados. Na sessão, que acontece nesta terça-feira, no Fórum
Criminal da Barra Funda, no Centro de São Paulo, serão ouvidos as testemunhas
de acusação, os PMs e familiares das vítimas.
No julgamento, que se inicia 3 anos 7 meses após a
ação, os policiais responderão pelo crime de homicídio com dolo eventual,
quando se assume o risco de matar, com pena pode variar de 12 a 30 anos de
prisão, e lesão corporal, no qual podem ser condenados de 2 a 8 anos. O caso
também é apurado separadamente na Justiça Militar.
Os 12 agentes acusados são os soldados: Anderson da
Silva Guilherme, Gabriel Luís de Oliveira, José Joaquim Sampaio, Luís Henrique
dos Santos Quero, Marcelo Viana de Andrade, Marcos Vinicius Silva Costa e
Matheus Augusto Teixeira; o subtenente Leandro Nonato, o Sargento João Carlos
Messias Miron, o Cabo Paulo Roberto do Nascimento Severo e a Tenente Aline
Ferreira Inácio.
As nove pessoas que morreram após a ação da Polícia
Militar foram: Gustavo Cruz Xavier, de 14 anos; Dennys Guilherme dos Santos
Franco, 16; Marcos Paulo de Oliveira dos Santos, 16; Denys Henrique Quirino da
Silva, 16; Luara Victoria de Oliveira,
18; Gabriel Rogério de Moraes, 20; Eduardo Silva, 21; Bruno Gabriel dos Santos,
22 e Mateus dos Santos Costa de 23 anos. Nenhuma das vítimas morava na
comunidade.
Em entrevista à Agência Pública, Maria Cristina
Quirino Portugal, 43 anos, mãe do adolescente Denys Henrique, falou sobre a sua
expectativa em relação à audiência e da importância do relatório “O Massacre no
Baile da DZ7, Paraisópolis: Chacina Policial, Institucionalização do Caso e a
Dinâmica dos Fatos Segundos as Evidências”, lançado em 01 dezembro de
2022. “Só pelo fato que a gente vai ver
a cara deles [os policiais] pela primeira vez, estou com muito medo. Acho que
medo é o que me define hoje. Mas eu preciso muito ir pra cima porque é preciso
que o juiz entenda que esse caso não pode voltar para a Justiça Militar”,
conta.
Portugal, integrante do Movimento de Familiares das
Vítimas do Massacre em Paraisópolis, participou da elaboração do relatório como
pesquisadora e parte da equipe do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense
(CAAF), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O documento também
contou com a parceria do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos
(NECDH) da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
O relatório, que será utilizado pela acusação,
apresenta uma análise detalhada sobre o que aconteceu naquela madrugada, e
questiona a narrativa apresentada pelos agentes de que houve resistência à ação
PM. O trabalho também afirma que o motivo das mortes não foi o pisoteamento e
que não houve socorro.
No último sábado, 22 de julho, Cristina, junto a
outros familiares de vítimas, lideranças comunitárias e representantes de
movimentos sociais estiveram em Paraisópolis e fizeram uma caminhada pelas ruas
e vielas para lembrar aos moradores o que aconteceu ali. Durante o trajeto, com
faixas, cartazes e panfletos, eles divulgaram a data da audiência e criticaram
a absolvição de 19 agentes envolvidos na operação. O grupo pede que todos os 31
PMs envolvidos no massacre sejam levados a júri popular.
<><><> Confira a entrevista
completa:
• Você
poderia falar sobre o Denys Henrique?
Eu tenho quatro filhos. Dois mais velhos que o
Denys e uma mais nova que ele, mas ele era o filho que me dava mais amor, mais
carinho, mais atenção. Ele alegrava a família inteira. Era o mais carismático,
muito engraçado e muito inteligente.
Ele era muito amigo, sabe? Eu não perdi só um
filho, eu perdi o meu amigo, eu perdi meu companheiro. O filho que eu planejei
pra minha companhia na minha velhice. Eu já tinha dois meninos e eu queria ter
mais um filho. Eu falava muito pra Deus me dar outro menino, que eu era muito
feliz sendo mãe de menino. Ele veio e ele se apegou muito a mim desde
bebezinho.
Quando as crianças nascem, as mães dão chupeta, dá
fraldinha e chama de ‘naninha’, meu filho não teve ‘naninha’ porque a ‘naninha’
dele era o meu cabelo. Eu nem cortava o cabelo por causa dele. Ele se apegou de
uma maneira tanto comigo que só dormia cheirando o meu cabelo, ele fazia cafuné
em mim, era muito apegado.
Meu filho estava no auge da juventude. Ele tinha só
16 anos, estava começando a descobrir as coisas da vida. Era aquele garoto que
estava sonhando em fazer 18 anos e comprar uma casa melhor pra nós, pra gente
sair do aluguel, ele era um sonhador.
Eu vim de família humilde, de uma família
constituída pela maior parte de mulher. Só tem de homem meu pai, meu irmão mais
velho, o resto é tudo mulher. E os jovens, que são os nossos filhos, são os
homens que estão chegando na família. Criar quatro filhos sozinha não foi
fácil.
• No
país, há milhares de casos de jovens que foram e são vítimas da violência do
Estado. No entanto, não são todos os familiares que têm forças e condições de
lutar por justiça e reparação. Em que momento você tomou a decisão de fazer
essa luta?
Foi quando a Corregedoria Militar da Polícia
Militar começou a falar que a culpa era deles, que a culpa era nossa. Até
então, eu ainda acreditava que eles iam falar a verdade, mas aí quando saiu a
decisão da Corregedoria e também uma matéria que falou que eles iam acionar o
Conselho Tutelar pros pais pela morte dos menores, que os maiores de idade
seriam os responsáveis e iam culpar também os organizadores do baile, eu
entendi que estava tudo errado.
Não era pra mim ficar do jeito que eu estava, que
se eu ficasse, meu filho ia ser mais um que ia ser assassinado pela polícia e
todo mundo achar que a polícia está certa – porque era assim o pensamento que
eu tinha antes. Aí, de repente, você vê a Corregedoria falando uma coisa dessa.
Eles estão corrigindo quem dessa maneira?
Então eu fui atrás de apoio para mostrar a verdade
que eles não contam. Foi aí que eu me levantei e falei, ‘não, a mãe do Denys
tem que levantar porque meu filho era inocente, meu filho estava num baile, meu
filho não estava cometendo crime nenhum, meu filho era menor de idade, eles
tinham que ter feito todas as correções lógicas e óbvias. Levar pra uma
delegacia, chamar o Conselho Tutelar pra mim ir lá repreender meu filho,
corrigir, dar uma uma punição pra ele, ou pra mim, se fosse o caso, mas não
matar o meu filho e me entregar ele dentro do saco plástico. Isso nunca. Eles
não tinham esse direito.
Eles não podem cometer crimes desse tipo – nenhum na verdade – e ainda saírem impunes
como se fossem heróis. Eu tinha essa visão da polícia antes, que eles eram
heróis. Eu achava que eles salvavam as vidas, eu tinha grande admiração por
essa profissão. Me envergonho de falar isso hoje, porque eu imagino o quanto eu
estava admirando leigamente, sem saber o que de fato eles fazem. Sem saber a
quantidade de pessoas eles já mataram. Hoje eu sei, eu já tenho essa ciência,
porque eu leio anuários e pesquisas que saem todos os anos e eu vejo como eles
agem. Hoje eu falo, ‘cara, como é que eu pude admirar uma profissão dessa?’
Tem gente que fala pra mim assim, ‘ah, não são
todos’, mas eu não acredito mais nisso também. Eu não acredito porque numa ação
que tinha 31 policiais envolvidos na morte dos nossos filhos, nenhum falou a
verdade. Se tivesse um honesto naquela situação, ele teria falado a verdade,
ele teria dado um depoimento correto que ajudasse a gente a provar que todos
eles estavam fazendo a mesma coisa, mas nenhum fez isso, por quê? Porque eles
fazem um juramento, a partir do momento que eles juram a bandeira deles lá,
eles não quer saber, eles são corrompidos.
Aí você vê que passa o tempo e a mentira continua.
Para o DHPP [Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa], só 12 dos 31
foram denunciados por homicídio culposo, quando não tem intenção de matar. Eles
encurralam as pessoas dentro de uma viela, joga gás de pimenta, joga gás
lacrimogêneo, dá tiro de borracha, eles fazem todo aquele “auê”- como que eles
não estavam com a intenção de matar? Tem a voz de um policial falando ‘vai
morrer, vai morrer todo mundo’. O que ele queria naquela hora era matar todo
mundo. E por quê? Agora me fala por quê? Quem me dá essa resposta? Por que
fizeram isso com os nossos filhos? Por quê? Qual foi o mal que os nossos filhos
fizeram para eles?
• Em
que momento você começou a se envolver com esse processo de investigação com o
CAAF?
Na prática, eu já fazia essa investigação antes
mesmo de ter o trabalho do CAAF. O que eles começaram a fazer, eu já estava
fazendo na minha casa sozinha, que era ver vídeos e vídeos e começar a ver o
que que estava errado. Tenho todas as anotações de tudo está errado, o que não
podia. Eu ia atrás de provas e eu fui atrás de testemunhas em Paraisópolis
sozinha.
Os familiares do Dennys Guilherme também fizeram. A
gente tentou ir na comunidade sozinha,
sem saber que era arriscado. Aí depois que eu entrei pra equipe, mas
quando eu cheguei, eu já sabia como ia ser porque era a mesma coisa que já estavam
fazendo: ir atrás de provas, atrás de confrontar as versões etc.
Desde o começo, quando aconteceu isso, o CONDEPE
[Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana] reuniu todos os
familiares e chamou a Defensoria [Pública], movimentos sociais – foi uma
reunião coletiva – e naquele momento foi criada uma comissão pelo CONDEP e eu
já me incluí nessa comissão. Mas desde o primeiro instante eu já queria saber o
que tinha acontecido com o meu filho. Eu já sabia que estava tudo errado, só
que ainda não tinha caído a ficha.
A gente começou a se reunir toda semana e aí o CAAF
entrou. Foi aí que eu grudei neles, porque senti que eles iam nos ajudar. Deus
tocou o meu coração e eu não desgrudei mais deles – nem do CONDEPE nem do CAAF
– porque foi ali que eu vi a oportunidade de trazer essa verdade.
• Na
época, o então governador João Dória, em reunião com os familiares, prometeu
criar uma comissão externa para acompanhar as investigações. Essa promessa foi
cumprida?
Essa promessa nunca foi cumprida. Eu estava nessa
reunião e ele prometeu que ia montar a comissão, que ela ia existir e ele ia
oficializar, mas nunca aconteceu. Tudo que ele prometeu, no meu ponto de vista,
ele não cumpriu.
Ele prometeu seriedade. Ele não cumpriu com a
seriedade dele. Porque a partir do momento que a gente chega numa reunião com o
governador do estado de São Paulo e ele vira pra nós e fala, pouco tempo que
tinha acontecido as mortes, que só tinha sete policiais afastados e estava tudo
bem – isso numa roda cheia de familiares e representantes do governo. Eu falei
na cara dele: “como que você acha que está tudo bem, sendo que você afastou só
sete policiais? Sendo que tem mais de 30 envolvidos numa ação que matou os
nossos filhos. E o restante? De repente esses sete que você separou, eles não
estavam nem lá dentro da favela, batendo, espancando, jogando gás de pimenta.
De repente eles não tiveram nem participação. A gente exige que afastem todos’,
aí ele virou pro coronel da Polícia Militar
que estava sentado do lado dele e mandou afastar no mesmo dia.
• Os
familiares tiveram algum suporte do Estado? Há alguma perspectiva de reparação?
Não existe reparação para isso. Eles só estão
contribuindo para a redução de danos que eles causam na vida da gente.
A princípio veio um monte de gente na minha casa,
na casa de todos os familiares, oferecer apoio psicológico pra mim, pra
família, meus filhos e eu não aceitei, porque como que o Estado oferece apoio
psicológico pra uma mãe sendo que foi o próprio Estado que causou mal na minha vida,
na minha mente. Eu não consegui aceitar.
Mas aí a moça deixou o endereço dela no papelzinho
e falou ‘ó, próxima quinta-feira a senhora vai lá’. Aí ela me chamou no
WhatsApp: ‘dona Maria Cristina, a senhora vai?’ Aí eu falei, onde que é? Quando
ela me mandou o endereço, eu não acreditei, é dentro do Fórum Criminal da Barra
Funda, onde vai acontecer audiência. O apoio psicológico que o Estado oferece
pra mães que têm seus filhos assassinados é lá dentro. Aí eu não fui, nenhum
familiar foi. Mas passou um tempo e o Condepe conseguiu o apoio psicológico num
lugar na Santa Cecília.
A gente chegou a ir, eles montaram um grupo pros
familiares, só que era pago, a gente não tinha condições de pagar. A gente só
participou de duas sessões e depois a gente não foi mais. Passou o tempo, aí
veio a pandemia e aí eles ofereceram de novo. Então fez um grupo, só que desta
vez gratuito e só para nós familiares. E eu não participei desse grupo porque
eu já estava debruçada na luta com a cara e com a coragem, cheia de problema
pessoal e sendo despejada. Eu entrei no finalzinho, quando estava perto de
acabar, mas foi quase um ano de grupo, eu acho.
• Como
tem sido para você participar deste processo de investigação junto ao CAAF e a
Defensoria? Porque, além do seu filho, há outros jovens e seus familiares. Isso
de certa maneira traz mais responsabilidade?
É uma responsabilidade também, mas pensando no
futuro. Precisa de muita força pra seguir, amigo. É Deus e meu filho que me dão
essa força todos os dias porque eu durmo e acordo pensando nele. Durmo e acordo
pensando que eu não tenho mais meu filho comigo. Não tem como eu não pensar
nisso. E eu durmo e acordo pensando com medo de perder outros filhos. Então
essa força vem daí.
Olha aqui ó, agora estou dentro da casa da minha comadre,
tem três crianças ali. Eu sei que essas crianças têm um futuro e elas precisam
viver.
Quando eu estou lutando, quando eu estou na luta,
quando eu vou para as manifestações, para alguma entrevista, alguma coisa que
preciso fazer, eu não estou indo por mim nem pelo meu filho, não. Meu filho não
volta. Estou indo por nós. Eu falo nós porque eu hoje eu me vejo que eu sou uma
vida pelas vidas.
Porque eu não estou lutando pra que meu filho vá
voltar. Você acha que eu não queria estar no lugar de uma mãe que tem um filho
preso, que vai lá na Defensoria pedir isso, pedir aquilo. Bater em uma porta,
bater em outra porque sabe que o filho vai voltar. O meu não volta.
Mas eu preciso que as outras pessoas vivam. Eu
preciso que as outras crianças, a juventude viva. Eu olho pros adolescentes
hoje, eu olho pros jovens e quero eles vivos.
Hoje mesmo de manhã, estava parada na porta da
padaria, perto da minha casa, e tinha um garoto que entrou, saiu e eu fiquei
olhando – ele tinha 15, 16 anos – eu vi meu filho naquele garoto. Mas o meu
filho não teve mais condição, a possibilidade de continuar, de ir numa padaria.
É igual olhar pros meus filhos hoje com 25 e outro com 23 anos. Meu filho não
vai alcançar essa idade. Mas os filhos
dos das outras pessoas vai e é por isso que eu luto, entende? Eu acho é daí que
vem essa força é por eles.
Eu não posso ter perdido o filho em vão. Esse é meu
pensamento e é isso que eu alimento todos os dias. Eu não perdi o filho
assassinado pela polícia no exercício da função para simplesmente cruzar os
braços e ficar quieta. Não!
Como você acha que é a mente de uma mãe que
idolatrava a polícia? Essa é a palavra que eu usava: eu idolatrava – era Deus
no céu e a polícia na terra para proteger a minha família. Era esse o termo que
eu usava. Até primeiro de dezembro de 2019. Ensinei meus filhos a respeitar a
polícia, eu ensinei meus filhos a baixar a cabeça pra polícia. Eu dizia ‘mesmo
que você esteja certo, filho, quando a polícia te parar na rua, você respeita’.
Você imagina só, eu vivi, eu nasci, cresci na
periferia, eu vi muita coisa errada, eu vi muita atitude da polícia que não era
correta. Então eu passava isso pra que os meus filhos não passassem por aqueles
constrangimentos, por aquela situação. Então, de repente, você dorme idolatrando
a polícia, mãe de quatro filhos, no outro dia você acorda mãe de três filhos
porque aquela polícia matou o teu filho.
Como você acha que está a minha mente hoje diante
de uma situação onde eu tenho que lutar por justiça, onde eu vou dia 25 estar
de frente com alguns dos assassinos do meu filho e eles estão lá lutando para
se inocentar sendo que eles mataram nove pessoas?
• Em
fevereiro de 2020, a Corregedoria da PM concluiu o inquérito policial militar
que apurava a conduta dos policiais envolvidos no caso e pediu o arquivamento
da investigação. A conclusão foi a de que, apesar das mortes, a ação dos
policiais foi lícita e que eles agiram em legítima defesa. Como foi receber
essa notícia na época?
Foi neste dia que eu falei ‘não, espera aí que
agora eu vou me tornar uma pedra no sapato do Estado. Porque isso não está
certo’. Foi um baque pra nós todos, nós ficamos destruídos – eu falo em nome de
todos mesmo, porque a gente conversava muito nessa época, todos os dias.
Eu tinha esperança que a corregedoria fosse justa.
Achei que ia afastar todo mundo, mas não fizeram isso. Aí, quando chegou na
Justiça Militar, pediu o arquivamento. Cara, que que está acontecendo? Aonde
que a gente está errando? Mas não é nós que estou falando é os governantes lá
de cima lá sabe? Aquele povo lá, que tem o poder de mudar essa situação, de
reverter isso.
Agora muda quando é pra eles. Quem vai lá fazer
arruaça em Brasília, agora é crime hediondo. E aí isso aí mudou rapidinho. Só
que eu vou bater na porta de quem pra pedir pra mudar, quando o policial for
matar o filho de alguém? – na verdade ele não tem nem que matar – , mas se ele
matar, pra que seja afastado imediatamente da polícia? Afastado mesmo, não
afastado administrativamente. Entendeu? Exonerado na hora.
Ele só vai receber o direito, no meu entendimento,
de exercer novamente a função se ele provar a inocência realmente. Se não tiver
punição, não vai ter justiça nunca, nunca. Esse é o meu entendimento, não tem
lógica, não tem lógica. Enquanto não tiver punição pra esses, eles vão
continuar matando. Eles têm um aval do Estado pra isso.
• Quais
foram as contradições encontradas na narrativa dos policiais que vocês
conseguiram apurar para o relatório?
A principal delas é quando eles entram em contato
com o COPOM. Que eles ficam 21 minutos em silêncio, sem comunicação com o rádio
do COPOM. Depois, eles entram em contato falando que tem nove pessoas
pisoteadas na viela e começam a conversar no rádio entre eles. É a tenente e o
COPOM falando, pedem o SAMU e eles começam a pedir pra socorrer as vítimas,
falando que eles estavam sendo ameaçados pela população, que não tinha
condição, que tava muito longe, que as vítimas estavam pedindo socorro.
Essa é a maior contradição de todas. Primeiro,
porque pra morrer de asfixia acho que é de três a quinze minutos. Eles já
passaram 21 minutos em silêncio com o rádio do Copom. Naqueles minutos nossos
filhos já estavam mortos e nenhum deles tentou fazer os primeiros socorros.
Eles chegaram no hospital mortos.
Também tem o confrontamento das imagens que
conseguimos, porque eles falam no rádio do COPOM que na rua tinha mais de mil
pessoas e que eles tinham que sair porque estavam sendo pressionados. Eles
falam no depoimento que fizeram uso de bala de borracha, de gás de pimenta, que
fizeram o uso dessas armas pra dispersão da população, para poder sair
tranquilamente com as vítimas que estavam socorrendo. Mas tem a imagem que
mostra eles saindo em comboio, um atrás do outro e a rua vazia deserta.
Também tem a parte que eles falam, quando eles
chegam no hospital com os nossos filhos, que o fato aconteceu há 30 minutos [,
só que nesse período tinha passado uma hora. Então aí é onde você começa a
pegar as mentiras deles, porque é tudo mentira. Porque se eles tivessem que
falar a verdade, se eles tivessem acionado o COPOM dizendo que estavam
precisando prestar socorro, que tinha que mandar mais de uma ambulância,
chegaria mais.
Ela [a policial que atendia a ocorrência] fala em
algum momento: ‘uma ambulância só não vai dar’.Eles não falam em momento algum
qual era a situação real pro COPOM. O que de fato tinha acontecido ali. Eles só
falam que teve tumulto, teve correria, mas eles não falam que eles estavam
tacando gás de pimenta e bala de borracha nos meninos encurralados na viela.
• A
versão apresentada pelos policiais e pela justiça é a de que os adolescentes e
jovens se machucaram ou morreram por conta do pisoteamento. O que o relatório
revela em relação a isto?
No nosso relatório não há nada que indique que foi
pisoteamento. As mortes dos nossos filhos não têm nada a ver com o que eles
falam. Nenhum tinha marca no corpo de pisoteamento. Só tinha um que tinha o
trauma raquimedular – que a gente está trabalhando para saber se condiz com os
fatos que eles narram.
Meu filho era magrinho, meu filho era isso aqui ó
[mostra o dedo mindinho], se meu filho tivesse sido pisoteado, você acha que o
meu filho não tinha quebrado um dedo pelo menos? Não tinha uma cartilagem
quebrada, não tinha nada quebrado nele? Ele só tinha um machucado na testa e
tinha um machucado na mão.
• Como
você imagina que a justiça pode ser feita neste caso? Qual é a justiça que você
busca?
Eu não sei se seria uma justiça. Não consigo ver
nenhuma justiça. Eu sei que a gente busca pelo menos a punição dos assassinos
dos nossos filhos, eu acho que é o mínimo que tem que acontecer agora é eles
perderem o direito de matar outras pessoas porque eu não vejo mais eles com o
direito de serem protetores e servidores da leis.
Não consigo vê-los mais como policial herói, como
eu via antes, não consigo ver mais como quem está ali para proteger a
sociedade, servir a sociedade. Não é mais essa visão que eu tenho da polícia e
dos assassinos dos nossos filhos.
Eu entendo que, por exemplo, se nós estamos aqui
num comércio – você tá comigo aqui – se
eu fechar o lugar cheio de gente dentro, abrir o botijão de gás e morrer todo
mundo e a gente sair, se a gente tava junto, você vai ser meu cúmplice. Mesmo
que você não tenha feito nada, você vai responder por isso, você podia ter
impedido.
A gente queria que todos eles paguem pelo que eles
fizeram. Foram três equipes: ROCAM,
Força Tática e o 16° Batalhão que atende Paraisópolis.
• Qual
a sua expectativa em relação a esta primeira audiência?
Eu estou muito tensa. Estou com muito medo. Só pelo
fato que a gente vai ver a cara deles pela primeira vez, eu estou com muito
medo. Acho que medo é o que me define hoje. Mas eu preciso muito ir pra cima
porque é preciso que o juiz entenda que esse caso não pode voltar para a
Justiça Militar.
A expectativa maior é de mostrar a realidade para
sociedade porque o trabalho do CAAF mostra essa realidade e ele é parte do
processo, então eu acho que fazer com
que a sociedade enxergue e entenda porque, quando sentarem no júri, seja lá
quem for, que a pessoa tenha ciência que está diante de um caso que não tem
como falar que os policiais não são culpados.
Fonte: Por José Cícero, da Agencia Pública
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