Jurista de direita
pode ser cúmplice de golpismo
Às
19h36, de 27 de abril de 2017, o então major Fabiano da Silva Carvalho, aluno
do 2.º ano da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), mandou um
e-mail para o professor Ives Gandra Martins. Depois de se apresentar, o oficial
pediu ao jurista um parecer que “elucidasse” o que, para as Forças Armadas,
caracterizaria o dever de “garantia dos poderes constitucionais”.
A
manifestação de Gandra – disse o oficial – seria “de extrema relevância” na
elaboração de um manual de segurança integrada do Exército. “A garantia dos
poderes constitucionais é uma missão imposta para as Forças Armadas e prevista
no art. 142 CF (Constituição Federal), assim como a defesa da Pátria e a
garantia da lei e da ordem”, escreveu o major, que anexou ainda nove perguntas
ao professor.
Seis
anos depois, o trabalho dos alunos da Eceme foi encontrado pela Polícia Federal
no telefone celular do tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid, um dos
integrantes do grupo da escola da qual participava o então major Fabiano. O
documento se tornou um dos indícios de que Cid e seus companheiros buscavam
argumentos para justificar um golpe de Estado e impedir a posse do petista Luiz
Inácio Lula da Silva. Na próxima semana, o tenente-coronel deve ser questionado
no Congresso sobre o documento na CPMI dos ataques do dia 8 de janeiro.
O
Estadão procurou refazer a discussão sobre o artigo na Assembleia Nacional
Constituinte, para recuperar as intenções e desígnios dos constituintes, bem
como para reconstruir a ação dos alunos da Eceme, no biênio 2016-2017. “Desde
agosto, quando falavam que havia risco de golpe, eu respondi que ele era zero
sobre zero. E escrevi um artigo dizendo isso. O artigo 142 é para nunca ser
usado e depende sempre de um Poder pedir”, afirmou Ives Gandra Martins à
reportagem.
O
professor contou que leciona há 34 anos para os futuros generais do Exército.
“Participei de banca de mestrado na escola e, se algum aluno me telefonasse, eu
atendia. Esse major não foi meu aluno, mas ele me pediu que eu respondesse a
algumas questões. Eu nunca deixei de responder para qualquer aluno, ainda que
não fosse meu aluno. Tenho esse hábito como professor universitário.”
O
e-mail de Gandra foi enviado ao major no dia 3 de maio de 2017. Ali estava a
segunda pergunta enviada pelo major. Ela era a seguinte: O emprego das Forças
Armadas na garantia dos poderes constitucionais pode ocorrer em situação de
normalidade ou apenas em estado de exceção? A resposta de Gandra, que suscitou
interpretações polêmicas, nos anos seguintes, foi: “Pode ocorrer em situação de
normalidade se, no conflito entre Poderes, um deles apelar para as Forças
Armadas, em não havendo outra solução”.
Era
justamente esse tipo de conflito que militares investigados pela PF
vislumbravam existir entre o presidente Jair Bolsonaro e o Supremo Tribunal
Federal e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em 2022. Mas a discussão sobre o
papel das Forças em uma crise entre os Poderes nascera muito antes, como prova
não só a troca de e-mails entre o major e o jurista, mas também manifestações
públicas de generais.
Em
outubro de 2017, um deles, o general Luiz Eduardo Rocha Paiva – já na reserva,
ele mantinha relações com o comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas –
escreveu um artigo que começava afirmando que, na Constituição, estava claro
“não haver nenhum dispositivo legal” que autorizasse “o emprego ou a
intervenção das Forças Armadas por iniciativa própria”. Mas, em seguinda, o
militar que comandara a Eceme de 2004 a 2006 dizia: “A intervenção militar será
legítima e justificável, mesmo sem amparo legal, caso o agravamento da crise
política, econômica, social e moral resulte na falência dos Poderes da União”.
Em
meio à Operação Lava Jato, Rocha Paiva concluía que “o Executivo e o
Legislativo, profundamente desacreditados pelo envolvimento de altos escalões
em inimagináveis escândalos de corrupção, perderam a credibilidade para
governar e legislar”. E previa que o agravamento do cenário, em médio prazo,
“poderá levar as Forças Armadas a tomarem atitudes indesejadas, mas pleiteadas
por significativa parcela da população”.
A
Polícia Federal não conseguiu detectar se os integrantes do grupo de estudos do
então major Fabiano procuraram outros juristas ou militares para tratar do tema
abordado por Gandra Martins e pelo general Rocha Paiva. Ou se pesquisaram os
anais da Assembleia Nacional Constituinte para reconstruir os debates que
levaram à formulação da redação atual do artigo 142 da Constituição.
Esse
foi um trabalho feito pelo cientista político e professor da Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp) Antonio Sérgio Carvalho Rocha, que coordena o
Projeto Memória Constituinte. Ele reúne pesquisadores de outras sete
instituições do Rio e São Paulo – o Centro de Estudos de Cultura Contemporânea
(Cedec) e as instituições de ensino USP, Unicamp, Uerj, UFSCar, Unesp e
Mackenzie.
Desde
2007, o grupo entrevistou 152 políticos, juristas e atores da sociedade para
explicar a Constituição de 1988. Entre eles está o então ministro do Exército,
o general Leônidas Pires Gonçalves, falecido em 2015. Leônidas disse aos
pesquisadores que o Exército conseguiu tudo o que queria na Constituinte,
aprovando 26 pontos que considerava importantes na Assembleia.
“Não
se pode dissociar a experiência brasileira do regime que veio antes. Na
literatura comparada, existem três exemplos de transição. O primeiro é o da
Espanha (Pacto de Moncloa, nos anos 1970), que consegue não só uma transição
exitosa do franquismo para a democracia, mas também submeter os militares ao
poder civil. Trata-se de caso paradigmático. Na Argentina (a redemocratização
após a Guerra das Malvinas, em 1982), houve um caso intermediário e, no Brasil,
houve um fiasco quase total de submeter os militares ao poder civil”, disse o
professor Carvalho Rocha. O primeiro dos 11 volumes da pesquisa será publicado
neste ano.
No
Brasil, houve um fiasco quase total de submeter os militares ao poder civil.”
Antonio Sérgio Carvalho Rocha, professor da Unifesp
Carvalho
Rocha sabe que a polêmica sobre o artigo 142, o que define o papel das Forças
Armadas, não foi inventada pelo coronel Cid e seus amigos. Desde o começo da
Constituinte, esse tema esteve entre os que mais suscitaram debates na
Assembleia. No final de 1987, durante as sessões da comissão de sistematização,
havia três posições: a do general Leônidas, a do senador Fernando Henrique
Cardoso (PMDB) e a do deputado federal José Genoino (PT).
Conta
Carvalho Rocha que a direita era favorável a dois pontos defendidos por
Leônidas: a de que as Forças Armadas destinavam-se à defesa da Pátria, à
garantia dos poderes constitucionais e, só por iniciativa do Executivo, da lei
e da ordem. A esquerda queria a exclusão da expressão “lei e ordem” e dar aos
outros Poderes a capacidade de convocar os militares. Coube a FHC a solução
conciliatória. A expressão “lei e ordem” foi mantida, mas a iniciativa para a
convocação das Forças foi estendida ao Legislativo e ao Judiciário.
Genoino
temia que a expressão “lei e ordem” servisse no futuro para o que o
constitucionalista Oscar Vilhena chama de “interpretação fraudulenta da
Constituição”, a de que aos militares teria sido conferido uma espécie de Poder
Moderador entre os Poderes da República, em caso de conflito entre os Poderes.
Daí porque desejava circunscrever a ação constituicional das Forças à defesa da
Pátria, contra inimigos externos.
“O
dissenso entre Genoino e Fernando Henrique não era um dissenso entre golpistas.
Era de vítimas da ditadura, os dois”, afirmou o desembargador aposentado Walter
Maierovitch. É o que ficou registrado nos anais da sessão de 6 de novembro de
1987, na comissão de sistematização, quando a emenda do petista foi derrotada,
prevalecendo o texto defendido por Fernando Henrique.
Para
Vilhena, diretor da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas, para entender
a redação final do artigo é preciso lembrar que a Constituinte é parte do
processo de transição entre a ditadura militar e a Nova República. “Isso significa
que os militares ainda tinham muita força. O que vinha do Palácio do Planalto
por intermédio do ministro Leônidas não era algo a ser descartado.” Para ele, a
proposta de Fernando Henrique diferenciava o texto das Constituições
anteriores, pois retirava dos militares por completo a autonomia para qualquer
tipo de conduta dentro do mundo civil.
“Ele
(o militar) só pode agir para garantir. Não posso usar os militares para
destituir a Justiça Eleitoral. Só para garantir a integridade do TSE, sem
ofender a ordem constitucional. E ele não é o intérprete do que é a ordem
constitucional. O texto não dá espaço para que o militar decida quando e por
que intervir. A redação proposta pelo Genoino seria melhor, mas a concessão que
o Fernando Henrique propôs ao Leônidas deixa claro que isso só pode acontecer
se há convocação de um dos Poderes e para a defesa da Constituição”, disse
Vilhena.
O
texto não dá espaço para que o militar decida quando e por que intervir. A
redação proposta pelo Genoino seria melhor, mas a concessão que o Fernando
Henrique propôs ao Leônidas deixa claro que isso só pode acontecer se há
convocação de um dos Poderes e para a defesa da Constituição.”
Oscar Vilhena, professor da FGV
Toda
essa discussão se baseava no fato de o Brasil republicano registrar um
histórico de intervenções militares que tinham como origem a ideia de que os
militares podiam interpretar quando deviam ou não obediência ao poder civil e
autonomia para resolver conflitos políticos. Fernando Henrique sabia disso.
Gandra Martins concorda com a ideia de que o futuro presidente da República
conciliou as propostas da esquerda e da direita
“Foi o Fernando que contrariou no Genoino, que
queria uma outra redação”, disse Gandra ao Estadão. Nesta semana, ele voltou a
conversar com o relator da constituinte, Bernardo Cabral, para recuperar parte
do ambiente da Assembleia e da discussão sobre o título 5.º da Constituição,
denominado como Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas, no qual
estão definidos o estado de sítio, o estado de defesa e o papel das Forças
Armadas e das forças policiais.
“Era
um título que foi colocado de uma forma para nunca ser utilizado, o que chamo
de regime constitucional das crises. O estado de sítio, por exemplo, citado
naquele decreto estapafúrdio, tem de ser mandado para o Congresso e, se em 24
horas, ele não aprovar por maioria absoluta, deixa de existir.” Gandra se
refere ao documento apreendido pela PF na casa do ex-ministro da Justiça
Anderson Torres, um decreto de estado de defesa dentro do TSE para cancelar as
eleições.
Para
Maierovitch, além das amarras constitucionais e das intenções da maioria da
Constituinte, a história não sustenta a interpretação de que o artigo 142
concederia o poder moderador às Forças Armadas. “O Benjant Constant de Rebecque
(pensador francês) entendia que, nas monarquias constitucionais, o poder
moderador era do monarca, o que foi importado pelo Brasil no Império.
Historicamente, ele aplica-se somente às monarquias e ele é do imperador.
Jamais se falou em Forças Armadas. Jamais o autor da doutrina do poder
moderador chegou a tal absurdo.”
Ele
aponta ainda não haver dúvida de que a convocação das Forças Armadas estará
sempre submetida à apreciação do Judiciário. “Está na Constituição, como
garantia, que nenhuma violação a direito será subtraída à apreciação do Poder
Judiciário. Com o devido respeito, só mentes tomadas por uma interpretação
gramatical absurda podem chegar à conclusão de que o Poder Moderador é das
Forças Armadas. Esse tipo de distorção só interessa a golpistas.”
Além
da minuta do golpe apreendida com o ex-ministro Torres e das respostas de
Gandra Martins para o estudo do major Fabiano, a PF aprendeu ainda com o
tenente-coronel Cid uma segunda “minuta do golpe”. O documento seria um modelo
de decreto para a convocação das Forças Armadas por meio da decretação de
operação de garantia da lei e da ordem com o objetivo de reverter o resultado
da eleição de 2022.
Cabe
agora ao Congresso, à PF e ao STF verificar até onde o mero debate acadêmico
dos colegas de Cid passou do limite do grupo de estudo para se tornar um
instrumento para legitimar os atos dos que atacaram a Praça dos Três Poderes,
em 8 de janeiro. Ou seja, se Cid reuniu esses documentos com o objetivo de
obter suporte jurídico e legal à execução de um golpe de Estado.
Ø
'Maioria do Alto
Comando torcia para que desse certo', diz Dino sobre 8/1
O
ministro da Justiça, Flávio Dino, afirmou que a maioria do Alto Comando do
Exército "torcia" para que a tentativa de golpe de Estado aventada
por bolsonaristas em 8 de janeiro de 2023 tivesse dado certo. Em entrevista à
Veja, Dino detalhou os bastidores daquele dia e sua exaltação com os militares
que nutriam ímpetos antidemocráticos.
Dino
afirmou que, após as cenas de destruição em Brasília, houve "embate"
entre ele e os militares". O ministro disse ter ido pessoalmente ao
quartel do Exército para mandar "prender todo mundo que estava"
acampado, e foi nesse momento em que viu "tanques saindo de uma
ruazinha."
Para
o ministro, aquela cena foi a comprovação de que havia uma ala golpista dentro
do Exército. "Se alguém ainda tinha alguma dúvida de que um golpe estava
em andamento, ela se dissipou naquele momento. A maioria do Alto-Comando torcia
para que o levante tivesse dado certo."
Dino
também disse que deu ordem para o comandante do Exército prender os golpistas
acampados, mas o militar "tentou crescer para cima" do ministro e se
opôs às prisões.
No
meio dessa discussão, outro general interveio e disse que a polícia nunca tinha
entrado no quartel para prender pessoas. Essa é uma evidência acima de qualquer
dúvida razoável de que havia a simpatia nas Forças por uma virada de mesa. O
Exército estava dividido entre bolsonaristas golpistas e bolsonaristas
legalistas, mas sempre bolsonaristas.
Por
fim, Dino destacou que houve concordância em efetuar as prisões dos golpistas
no dia seguinte àquele 8/1 —de fato, na manhã
do dia 9/1 cerca de 1.500 bolsonaristas que estavam acampados em frente ao
quartel-general do Exército em Brasília foram levados
para a prisão.
Seis
meses depois do ocorrido, Flávio Dino pondera que ter aguardado para efetuar as
prisões no dia seguinte foi o correto a ser feito. "Se fosse diferente,
seria perigoso para as pessoas e talvez pior ainda para a democracia. Imagina a
PM de um lado e o Exército do outro."
Atualmente,
mais de 1.200 pessoas respondem a processos e cerca de 250 estão presas. Os
prejuízos causados aos cofres públicos com as destruições das sedes do STF
(Supremo Tribunal Federal), do Congresso Nacional e do Palácio do Planalto é de
pelo menos R$ 20 milhões.
Fonte:
Agencia Estado/FolhaPress
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