José Maurício
Domingues: Junho de 2013 - a grande revolta plebeia
As
gigantescas manifestações de junho de 2013 cumprem 10 anos e se mostram para
muitos de difícil compreensão. Alguns, por interesse próprio e cegueira
política, perseveram em teses absurdas sobre sua abertura ao fascismo e
supostas guerras híbridas. Outros buscam definir as bases dessas manifestações
a partir das classes sociais, no marxismo nosso de cada dia, esposado inclusive
por boa parte dos analistas liberais. Outros corretamente assinalam a
pluralidade de visões e demandas que se fizeram presentes nas redes sociais e
nas ruas. Enfim, mobilizações populares antes e depois daquele mês ampliam o
foco da análise. Junho de 2013 foi de fato muitas coisas. O que com frequência
falta é uma interpretação política do fenômeno, uma daquelas raras vezes na
história em que as massas se põem em movimento autonomamente.
A
democracia liberal é, intrinsecamente, um regime misto. Ela é democrática, mas
também oligárquica. Alguns, em seu alvorecer, quiseram pensá-la como dirigida
por uma “aristocracia do espírito”, eletiva. Outros sublinharam como uma camada
superior de políticos teria como tarefa domar o caráter democrático do sistema.
Inicialmente em geral avesso à democracia, o liberalismo foi se democratizando
ao longo do século 20. Paradoxalmente, isso deu em boa medida via grandes
organizações, grandes partidos de massas, sindicatos e associações, controladas
por oligarquias internas, que, todavia, canalizavam o desejo popular de
participação, contando com o voto, mas para além dele. Forças sociais
centrípetas, baseadas em identidades tradicionais ou baseadas em fatos
materiais, seja a religião, seja a pertença a uma numerosa e concentrada classe
operária, facilitavam a construção desse tipo de organização.
O
Brasil participou desse processo, em que a democracia se democratizou, sem
perder seus elementos oligárquicos fundamentais. No pós-regime militar, a
democracia aprofundou, tardiamente em relação a outros países, com o sistema
evidenciando, em contrapartida, caráter muito mais oligárquico.
Desde
os anos 1970 se observa um recuo forte do elemento democrático da democracia,
com a estatalização dos partidos e um progressivo fechamento do sistema
político. Também aquelas forças centrípetas foram se dissolvendo, com mudanças
no mundo do trabalho e a pluralização das identidades sociais, religiosas, de
gênero etc. Forças centrífugas passaram a predominar. A conexão paradoxal e
virtuosa entre grandes organizações e participação popular foi se perdendo. Os
partidos e os políticos passaram a cada vez menos prestar atenção à população,
que cada vez mais se sente excluída e vê nos políticos, crescentemente, agentes
interessados em si mesmos. O Brasil seguiu na mesma direção, com os problemas
anteriores a agudizando.
2013
foi a grande revolta plebeia da história do Brasil. Foi ademais simultânea a
outras que eclodiram mundo afora, pondo o sistema político em xeque de forma
radical. Esse sistema foi depois consumido por lutas intestinas e teve de
enfrentar a ofensiva do judiciário. Mas aos poucos ele se recuperou e criou
mecanismos que bloqueiem qualquer ameaça a sua reprodução. Oligarquizou-se
ainda mais, como a apoteose do “Centrão” fisiológico demonstra.
Malgrado
suas duras e excludentes características oligárquicas, no qual há um bom tempo
a parte dominante da esquerda está profundamente imbricada, ainda que como ala
mais débil, trata-se, o brasileiro, de um sistema político democrático liberal,
com espaço de participação e influência popular. O bolsonarismo, a exemplo da
ditadura militar, quis manter seu núcleo oligárquico e combiná-lo com a
ditadura de um só, apoiada pelas Forças Armadas. Fracassou, mas a ameaça de
desdemocratização paira sobre nós.
Cabe
às forças democráticas tomarem consciência de que somente mais democracia pode
neutralizar tendências regressivas e as taras da oligarquização. Por isso,
olhar para o legado de 2013 de forma positiva é tão importante. Para a
oligarquia política o contrário é, obviamente, o caso. É, porém, somente em seu
próprio prejuízo que a esquerda pode recusar a plebeização da política e
desconhecer a necessidade de reinventar as forças de participação e a sua
própria organização de modo a abrir mais uma via para o processo de democratização
da modernidade política. Tarefa difícil, mas essencial.
Ø
11
de agosto de 2022: uma noite de distanciamentos e realinhamentos na esquerda
brasileira. Por Jonas Medeiros
A
manifestação politicamente mais significativa de 11 de agosto de 2022 na cidade
de São Paulo foi a leitura pública dos dois manifestos em defesa da democracia
no Largo São Francisco. Contudo, esta manhã de “união entre capital e trabalho
em defesa da democracia” foi sucedida, no final do dia, por um outro “Ato em
defesa da democracia e por eleições livres”. Muito mal divulgado nas redes
sociais (não havia, por exemplo, nenhum evento criado no Facebook, como era de
praxe nos “Grandes Atos Fora Bolsonaro”, puxados pelas Frentes Brasil Popular e
Povo Sem Medo entre maio e outubro de 2021), o protesto foi relativamente
esvaziado, mas, mesmo assim, ele pode nos revelar outros significados
políticos, tanto para o presente quanto para o futuro.
Participaram
do ato que teve concentração em frente ao MASP a partir das 17h: partidos
políticos (UP, PCB, PSTU, PT, PCdoB, PSOL e, de forma mais isolada, REDE e
PDT), juventudes e coletivos partidários, mandatos e candidaturas legislativas,
movimentos estudantis (secundaristas e universitários), centrais sindicais,
movimentos sociais (feminista, negro, de moradia) e ao menos uma torcida de
futebol antifascista.
Pela
minha experiência de pesquisa qualitativa observando protestos há sete anos
(desde 2015), interpretar a configuração espacial da concentração e da passeata
em movimento permite revelar não apenas relações de força entre os atores
sociopolíticos, mas também os processos em que eles se engajam na delimitação
de fronteiras, ou seja, de aproximações e de distanciamentos, em um processo
ativo de criação de identidades, alianças e antagonismos no interior da própria
manifestação (e não apenas com antagonistas ou inimigos externos, como
Bolsonaro, o neoliberalismo ou o fascismo).
Em
outros protestos do passado recente, suas configurações espaciais revelaram
processos comparáveis de distanciamentos e realinhamentos.
Em
8 de março de 2016, o ato do Dia Internacional das Mulheres literalmente
rachou: após desentendimentos e agressões, inclusive de homens sindicalistas
ligados ao PCdoB contra uma então militante feminista do PSTU que criticou
Dilma Rousseff no carro de som, uma parte do ato marchou em uma direção (PSTU,
PSOL e PCB foram em direção ao Paraíso), enquanto a outra seguiu na direção
oposta (PT e PCdoB foram em direção à Consolação).
Já
no caso do último grande ato Fora Bolsonaro do ano passado, que ocorreu em 2 de
outubro, detectei em minha observação uma dinâmica espacial mais complexa e
sutil: enquanto partidos políticos de esquerda e suas juventudes e coletivos
tinham uma atitude sedentária e territorializada em diferentes quarteirões, o
PT e militantes e simpatizantes lulistas se destacavam por sua presença nômade
e desterritorializada, quase onipresente por todo o ato.
Agora
que as eleições de outubro de 2022 se aproximam, os atores sociopolíticos estão
revelando seus realinhamentos, construídos ao longo dos últimos anos, e
explicitando algumas divergências que antes podiam permanecer escondidas.
Assim, nesta mesma chave de prestar atenção à espacialidade do ato, torna-se
extremamente significativo ressaltar o vazio entre a frente e o fundo do ato na
noite de 11 de agosto de 2022.
A
frente do ato evidenciou a emergência do protagonismo do PCB e da UP, com o
PSTU secundarizado em termos da energia da base e da ressonância dos discursos
e uma presença extremamente minoritária do PSOL na figura do coletivo Juntos!.
Pelo que a ocupação das ruas mostra, o futuro da oposição de esquerda ao PT
pode estar nas mãos dos autodenominados marxistas-leninistas, uma configuração
crescentemente distante da configuração da oposição de esquerda entre
2011-2016, ápice do ciclo de protestos da década passada, quando se constituiu
uma espécie de “frente ampla”, flutuante e contingente, entre autonomistas,
anarquistas e trotskistas, que dinamizou lutas feministas, pelo transporte
público e pela escola pública.
Como
hipótese para explicar esta reconfiguração, identifico a emergência de uma
espécie de “contrapúblico comunista”, uma arena discursiva criada nos últimos
anos por sites, blogs, canais de YouTube, podcasts, revistas (físicas ou
digitais), plataformas de cursos, perfis e páginas em redes sociais, que
alimenta o fortalecimento de organizações marxistas-leninistas no interior de
movimentos sociais e estudantis e que está formando politicamente uma nova
geração de jovens militantes em um marxismo ortodoxo redivivo.
Uma
explicação complementar ao protagonismo dos marxistas-leninistas no que quero
chamar de “nova oposição de esquerda” pode se encontrar na eleição da chapa de
oposição “É Tudo para Ontem” para o DCE-Livre da USP em junho deste ano.
Juventudes partidárias ligadas à UP, PCB e PSOL (o Juntos!) derrotaram a gestão
que estava há cinco anos no poder, composta por juventudes ligadas ao PT e
PCdoB.
Na
composição espacial do protesto, o bloco desta nova oposição de esquerda foi
constituído por secundaristas e crianças na frente do ato, a UP e, em seguida,
estudantes universitários que portavam bandeiras antifascistas associadas a
seus cursos de origem, estando de certa forma “ensanduichados” por bandeiras do
PCB e de organizações ligadas a este partido. Em último lugar o PSTU, tecendo
solitariamente discursos um pouco mais profundos, a fim de explicitar o abismo
entre socialistas e lulistas, mas sem que tais discursos tivessem muita
ressonância, diante do impacto emocional da energia das baterias e da animação
de palavras de ordem mais genéricas dos marxistas-leninistas (“Recua, recua seu
fascista, a América Latina vai ser toda socialista”, “Ditadura nunca mais” e
“Não vai ter golpe, vai ter luta”).
Entre
a frente e o fundo do ato, um abismo físico de meio quarteirão, preenchido
apenas por uma gigantesca urna eletrônica inflável. Irônica e sintomaticamente,
o único ator que eu observei ocupando este vazio foi um pequeno grupo de
militantes portando bandeiras e panfletos da REDE Sustentabilidade: no início
da concentração, eles estavam no fundo do ato; depois, no final da
concentração, vieram para este abismo do meio, e, por fim, acabaram ficando
depois do PT e antes da UJS, o que, para mim, revela seu incômodo com a
correlação geral de forças, mas também, no final das contas, uma disposição de
compor com o campo democrático-popular, afinal de contas a REDE está federada
com o PSOL e compondo a coalizão da candidatura presidencial de Lula.
Imagem cedida pelo Monitor do Debate Político no Meio Digital (ato na Av.
Paulista em 11/8/2022)
Já
o fundo do ato ou, melhor dizendo, o segundo grande bloco do protesto, pode ser
lido de duas formas. Em um primeiro olhar, superficial, nada de novo no front.
Pessoas portando bandeiras do PT estavam, inicialmente, dispersas na concentração,
mas depois foram para a frente do segundo bloco do ato, criando uma nova linha
de frente, vários metros depois do PSTU; secundariamente, vinham as
organizações ligadas ao PCdoB, como a UJS, as entidades estudantis por ela
hegemonizadas (como UBES, UNE e UEE-SP) e candidatos deste partido ao
legislativo fazendo campanha.
O
diagnóstico de manifestantes e lideranças parece ser compartilhado por
praticamente todos os presentes, tanto em relação aos discursos nos carros de
som quanto nas palavras de ordem cantadas pelo chão do ato: Bolsonaro fascista
ou neofascista (provavelmente o único ator que faria questão de não concordar
com este diagnóstico seria o PSTU). O que efetivamente muda são os horizontes
de derrota do fascismo: via eleições ou via socialismo –“a favor” ou “contra” a
“democracia burguesa”. Assim, a linha geral no carro de som do segundo bloco
era no sentido de defender que a vitória de Lula no primeiro turno seria o
caminho mais seguro para derrotar o “neofascismo”.
Contudo,
quero defender que estes não são os fenômenos mais interessantes e
significativos do que estava sendo produzido e reproduzido no chão de ato neste
segundo bloco. Desde o adesivo “PSOL com Lula” até as faixas portadas por
diferentes coletivos do PSOL – “Juventude com Lula” (Afronte!), “Na rua com
Lula” (RUA- Juventude Anticapitalista) e “Ele não, Lula sim!” (Bancada
Feminista do PSOL) –, o mais relevante que pude observar foi o ineditismo do
reposicionamento do PSOL em direção ao lulismo e ao campo democrático-popular,
algo que ainda não tinha se cristalizado tão fortemente nas ruas paulistanas
quanto neste 11 de agosto. A Frente Povo Sem Medo também ressurgiu nas ruas
depois de ter perdido seu protagonismo nas manifestações de rua do ano passado,
e o MTST compôs o fundo do ato.
A
diluição de praticamente todo o PSOL no campo democrático-popular (com exceção
do Juntos!) precisa ser interpretada como um realinhamento da maioria das
tendências deste partido em direção à Lula e ao PT; este processo parece
cumprir o papel de ampliar e renovar o campo democrático-popular, trazendo
bases populares (MTST), feministas (Bancada Feminista do PSOL) e antirracistas
(feministas antirracistas do PSOL), que interseccionam classe, gênero e raça de
um modo que os antigos atores lulistas não conseguem no tempo presente, além de
intensificar a legitimidade da hegemonia lulista sobre o campo progressista
como um todo.
Fico
me perguntando: qual é o grau de consolidação do realinhamento de setores
juvenis, feministas, antirracistas, indígenas e ambientalistas do PSOL? Será
que este processo tem um prazo de validade? Quem tem mais a ganhar? Será que a
movimentação do PSOL vai ser capaz de puxar um Governo Lula 3 para a esquerda,
reinstitucionalizando a força de públicos subalternos no interior do Estado brasileiro,
ou estes serão alguns dos novos pilares de relegitimação do presidencialismo de
coalizão, diante de todas as alianças que Lula está conseguindo tecer com
setores do MDB e do PSD, não para as eleições, mas sim para governar? Quando
chegarem as inevitáveis decepções com relação ao que pode ser feito em termos
de políticas públicas em um contexto bem mais difícil do que o período
2003-2016, como estes atores vão se comportar?
Coloco-me
também a questão: será que uma nova oposição de esquerda hegemonizada por –
como se queira chamar – neostalinistas, comunistas ou marxistas-leninistas será
capaz de dinamizar as lutas sociais dos grupos subalternos brasileiros? Mesmo
com seus problemas e insuficiências, a antiga oposição de esquerda, composta
por autonomistas e trotskistas, tinha um compromisso com a autonomia dos
movimentos que me parece incompatível com o centralismo democrático, o
vanguardismo e a estatolatria cultivados pelos novos atores que estão entrando
em cena à esquerda do PT.
Em
uma contagem artesanal do número de manifestantes, o tamanho dos blocos era,
basicamente, equivalente: em torno de mil pessoas no primeiro grande bloco da
nova oposição de esquerda compondo a frente do ato, e em torno de mil pessoas
no segundo grande bloco do campo democrático-popular renovado e ampliado, no
fundo do ato.
Independentemente
da fragilidade desta quantificação, é inegável tanto o equilíbrio entre os
blocos quanto o esvaziamento do ato, o que indica a total ausência de senso de
urgência por parte de todas as frentes e organizações: se a perspectiva
compartilhada é de “fascismo” e “golpismo”, como foi possível investir tão
poucos recursos e energia em mobilização diante de tamanha ameaça?
Nada
garante que a mobilização bolsonarista consiga colocar nas ruas um público
similar ao do 7 de setembro de 2021: cerca de 1 milhão de pessoas na Av.
Paulista. Contudo, é certo que a massividade do protesto no Bicentenário da
Independência vai exceder largamente as poucas centenas de pessoas no 11 de
agosto na mesma Av. Paulista.
Se
a esquerda permanecer apostando todas as fichas na política institucional
oficial (limitando-se a defender o sistema eleitoral e as urnas eletrônicas e a
tecer alianças frágeis com setores do empresariado e economistas ligados ao
establishment) e não fizer nenhum movimento em direção à política
extrainstitucional (como a ocupação massiva das ruas) ou apresentar e
desenvolver de forma central reivindicações antissistêmicas (com relação a:
capitalismo, reprodução social, discriminação racial, genocídio indígena e
destruição ambiental), a extrema-direita terá diante de si a reprodução de
todas as condições sociais e culturais para continuar apresentando a si mesma
como a encarnação do Antissistema e a esquerda (desde o centro até a
extrema-esquerda) como a encarnação do Sistema.
E,
mesmo que Lula tome posse em 1º de janeiro de 2023, o ano de 2026 vai estar
logo ali, na virada da esquina.
Fonte:
Correio da Cidadania
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