terça-feira, 11 de julho de 2023

José Maurício Domingues: Junho de 2013 - a grande revolta plebeia

As gigantescas manifestações de junho de 2013 cumprem 10 anos e se mostram para muitos de difícil compreensão. Alguns, por interesse próprio e cegueira política, perseveram em teses absurdas sobre sua abertura ao fascismo e supostas guerras híbridas. Outros buscam definir as bases dessas manifestações a partir das classes sociais, no marxismo nosso de cada dia, esposado inclusive por boa parte dos analistas liberais. Outros corretamente assinalam a pluralidade de visões e demandas que se fizeram presentes nas redes sociais e nas ruas. Enfim, mobilizações populares antes e depois daquele mês ampliam o foco da análise. Junho de 2013 foi de fato muitas coisas. O que com frequência falta é uma interpretação política do fenômeno, uma daquelas raras vezes na história em que as massas se põem em movimento autonomamente.

A democracia liberal é, intrinsecamente, um regime misto. Ela é democrática, mas também oligárquica. Alguns, em seu alvorecer, quiseram pensá-la como dirigida por uma “aristocracia do espírito”, eletiva. Outros sublinharam como uma camada superior de políticos teria como tarefa domar o caráter democrático do sistema. Inicialmente em geral avesso à democracia, o liberalismo foi se democratizando ao longo do século 20. Paradoxalmente, isso deu em boa medida via grandes organizações, grandes partidos de massas, sindicatos e associações, controladas por oligarquias internas, que, todavia, canalizavam o desejo popular de participação, contando com o voto, mas para além dele. Forças sociais centrípetas, baseadas em identidades tradicionais ou baseadas em fatos materiais, seja a religião, seja a pertença a uma numerosa e concentrada classe operária, facilitavam a construção desse tipo de organização.

O Brasil participou desse processo, em que a democracia se democratizou, sem perder seus elementos oligárquicos fundamentais. No pós-regime militar, a democracia aprofundou, tardiamente em relação a outros países, com o sistema evidenciando, em contrapartida, caráter muito mais oligárquico.

Desde os anos 1970 se observa um recuo forte do elemento democrático da democracia, com a estatalização dos partidos e um progressivo fechamento do sistema político. Também aquelas forças centrípetas foram se dissolvendo, com mudanças no mundo do trabalho e a pluralização das identidades sociais, religiosas, de gênero etc. Forças centrífugas passaram a predominar. A conexão paradoxal e virtuosa entre grandes organizações e participação popular foi se perdendo. Os partidos e os políticos passaram a cada vez menos prestar atenção à população, que cada vez mais se sente excluída e vê nos políticos, crescentemente, agentes interessados em si mesmos. O Brasil seguiu na mesma direção, com os problemas anteriores a agudizando.

2013 foi a grande revolta plebeia da história do Brasil. Foi ademais simultânea a outras que eclodiram mundo afora, pondo o sistema político em xeque de forma radical. Esse sistema foi depois consumido por lutas intestinas e teve de enfrentar a ofensiva do judiciário. Mas aos poucos ele se recuperou e criou mecanismos que bloqueiem qualquer ameaça a sua reprodução. Oligarquizou-se ainda mais, como a apoteose do “Centrão” fisiológico demonstra.

Malgrado suas duras e excludentes características oligárquicas, no qual há um bom tempo a parte dominante da esquerda está profundamente imbricada, ainda que como ala mais débil, trata-se, o brasileiro, de um sistema político democrático liberal, com espaço de participação e influência popular. O bolsonarismo, a exemplo da ditadura militar, quis manter seu núcleo oligárquico e combiná-lo com a ditadura de um só, apoiada pelas Forças Armadas. Fracassou, mas a ameaça de desdemocratização paira sobre nós.

Cabe às forças democráticas tomarem consciência de que somente mais democracia pode neutralizar tendências regressivas e as taras da oligarquização. Por isso, olhar para o legado de 2013 de forma positiva é tão importante. Para a oligarquia política o contrário é, obviamente, o caso. É, porém, somente em seu próprio prejuízo que a esquerda pode recusar a plebeização da política e desconhecer a necessidade de reinventar as forças de participação e a sua própria organização de modo a abrir mais uma via para o processo de democratização da modernidade política. Tarefa difícil, mas essencial.

 

Ø  11 de agosto de 2022: uma noite de distanciamentos e realinhamentos na esquerda brasileira. Por Jonas Medeiros

 

A manifestação politicamente mais significativa de 11 de agosto de 2022 na cidade de São Paulo foi a leitura pública dos dois manifestos em defesa da democracia no Largo São Francisco. Contudo, esta manhã de “união entre capital e trabalho em defesa da democracia” foi sucedida, no final do dia, por um outro “Ato em defesa da democracia e por eleições livres”. Muito mal divulgado nas redes sociais (não havia, por exemplo, nenhum evento criado no Facebook, como era de praxe nos “Grandes Atos Fora Bolsonaro”, puxados pelas Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo entre maio e outubro de 2021), o protesto foi relativamente esvaziado, mas, mesmo assim, ele pode nos revelar outros significados políticos, tanto para o presente quanto para o futuro.

Participaram do ato que teve concentração em frente ao MASP a partir das 17h: partidos políticos (UP, PCB, PSTU, PT, PCdoB, PSOL e, de forma mais isolada, REDE e PDT), juventudes e coletivos partidários, mandatos e candidaturas legislativas, movimentos estudantis (secundaristas e universitários), centrais sindicais, movimentos sociais (feminista, negro, de moradia) e ao menos uma torcida de futebol antifascista.

Pela minha experiência de pesquisa qualitativa observando protestos há sete anos (desde 2015), interpretar a configuração espacial da concentração e da passeata em movimento permite revelar não apenas relações de força entre os atores sociopolíticos, mas também os processos em que eles se engajam na delimitação de fronteiras, ou seja, de aproximações e de distanciamentos, em um processo ativo de criação de identidades, alianças e antagonismos no interior da própria manifestação (e não apenas com antagonistas ou inimigos externos, como Bolsonaro, o neoliberalismo ou o fascismo).

Em outros protestos do passado recente, suas configurações espaciais revelaram processos comparáveis de distanciamentos e realinhamentos.

Em 8 de março de 2016, o ato do Dia Internacional das Mulheres literalmente rachou: após desentendimentos e agressões, inclusive de homens sindicalistas ligados ao PCdoB contra uma então militante feminista do PSTU que criticou Dilma Rousseff no carro de som, uma parte do ato marchou em uma direção (PSTU, PSOL e PCB foram em direção ao Paraíso), enquanto a outra seguiu na direção oposta (PT e PCdoB foram em direção à Consolação).

Já no caso do último grande ato Fora Bolsonaro do ano passado, que ocorreu em 2 de outubro, detectei em minha observação uma dinâmica espacial mais complexa e sutil: enquanto partidos políticos de esquerda e suas juventudes e coletivos tinham uma atitude sedentária e territorializada em diferentes quarteirões, o PT e militantes e simpatizantes lulistas se destacavam por sua presença nômade e desterritorializada, quase onipresente por todo o ato.

Agora que as eleições de outubro de 2022 se aproximam, os atores sociopolíticos estão revelando seus realinhamentos, construídos ao longo dos últimos anos, e explicitando algumas divergências que antes podiam permanecer escondidas. Assim, nesta mesma chave de prestar atenção à espacialidade do ato, torna-se extremamente significativo ressaltar o vazio entre a frente e o fundo do ato na noite de 11 de agosto de 2022.

A frente do ato evidenciou a emergência do protagonismo do PCB e da UP, com o PSTU secundarizado em termos da energia da base e da ressonância dos discursos e uma presença extremamente minoritária do PSOL na figura do coletivo Juntos!. Pelo que a ocupação das ruas mostra, o futuro da oposição de esquerda ao PT pode estar nas mãos dos autodenominados marxistas-leninistas, uma configuração crescentemente distante da configuração da oposição de esquerda entre 2011-2016, ápice do ciclo de protestos da década passada, quando se constituiu uma espécie de “frente ampla”, flutuante e contingente, entre autonomistas, anarquistas e trotskistas, que dinamizou lutas feministas, pelo transporte público e pela escola pública.

Como hipótese para explicar esta reconfiguração, identifico a emergência de uma espécie de “contrapúblico comunista”, uma arena discursiva criada nos últimos anos por sites, blogs, canais de YouTube, podcasts, revistas (físicas ou digitais), plataformas de cursos, perfis e páginas em redes sociais, que alimenta o fortalecimento de organizações marxistas-leninistas no interior de movimentos sociais e estudantis e que está formando politicamente uma nova geração de jovens militantes em um marxismo ortodoxo redivivo.

Uma explicação complementar ao protagonismo dos marxistas-leninistas no que quero chamar de “nova oposição de esquerda” pode se encontrar na eleição da chapa de oposição “É Tudo para Ontem” para o DCE-Livre da USP em junho deste ano. Juventudes partidárias ligadas à UP, PCB e PSOL (o Juntos!) derrotaram a gestão que estava há cinco anos no poder, composta por juventudes ligadas ao PT e PCdoB.

Na composição espacial do protesto, o bloco desta nova oposição de esquerda foi constituído por secundaristas e crianças na frente do ato, a UP e, em seguida, estudantes universitários que portavam bandeiras antifascistas associadas a seus cursos de origem, estando de certa forma “ensanduichados” por bandeiras do PCB e de organizações ligadas a este partido. Em último lugar o PSTU, tecendo solitariamente discursos um pouco mais profundos, a fim de explicitar o abismo entre socialistas e lulistas, mas sem que tais discursos tivessem muita ressonância, diante do impacto emocional da energia das baterias e da animação de palavras de ordem mais genéricas dos marxistas-leninistas (“Recua, recua seu fascista, a América Latina vai ser toda socialista”, “Ditadura nunca mais” e “Não vai ter golpe, vai ter luta”).

Entre a frente e o fundo do ato, um abismo físico de meio quarteirão, preenchido apenas por uma gigantesca urna eletrônica inflável. Irônica e sintomaticamente, o único ator que eu observei ocupando este vazio foi um pequeno grupo de militantes portando bandeiras e panfletos da REDE Sustentabilidade: no início da concentração, eles estavam no fundo do ato; depois, no final da concentração, vieram para este abismo do meio, e, por fim, acabaram ficando depois do PT e antes da UJS, o que, para mim, revela seu incômodo com a correlação geral de forças, mas também, no final das contas, uma disposição de compor com o campo democrático-popular, afinal de contas a REDE está federada com o PSOL e compondo a coalizão da candidatura presidencial de Lula.
Imagem cedida pelo Monitor do Debate Político no Meio Digital (ato na Av. Paulista em 11/8/2022)

Já o fundo do ato ou, melhor dizendo, o segundo grande bloco do protesto, pode ser lido de duas formas. Em um primeiro olhar, superficial, nada de novo no front. Pessoas portando bandeiras do PT estavam, inicialmente, dispersas na concentração, mas depois foram para a frente do segundo bloco do ato, criando uma nova linha de frente, vários metros depois do PSTU; secundariamente, vinham as organizações ligadas ao PCdoB, como a UJS, as entidades estudantis por ela hegemonizadas (como UBES, UNE e UEE-SP) e candidatos deste partido ao legislativo fazendo campanha.

O diagnóstico de manifestantes e lideranças parece ser compartilhado por praticamente todos os presentes, tanto em relação aos discursos nos carros de som quanto nas palavras de ordem cantadas pelo chão do ato: Bolsonaro fascista ou neofascista (provavelmente o único ator que faria questão de não concordar com este diagnóstico seria o PSTU). O que efetivamente muda são os horizontes de derrota do fascismo: via eleições ou via socialismo –“a favor” ou “contra” a “democracia burguesa”. Assim, a linha geral no carro de som do segundo bloco era no sentido de defender que a vitória de Lula no primeiro turno seria o caminho mais seguro para derrotar o “neofascismo”.

Contudo, quero defender que estes não são os fenômenos mais interessantes e significativos do que estava sendo produzido e reproduzido no chão de ato neste segundo bloco. Desde o adesivo “PSOL com Lula” até as faixas portadas por diferentes coletivos do PSOL – “Juventude com Lula” (Afronte!), “Na rua com Lula” (RUA- Juventude Anticapitalista) e “Ele não, Lula sim!” (Bancada Feminista do PSOL) –, o mais relevante que pude observar foi o ineditismo do reposicionamento do PSOL em direção ao lulismo e ao campo democrático-popular, algo que ainda não tinha se cristalizado tão fortemente nas ruas paulistanas quanto neste 11 de agosto. A Frente Povo Sem Medo também ressurgiu nas ruas depois de ter perdido seu protagonismo nas manifestações de rua do ano passado, e o MTST compôs o fundo do ato.

A diluição de praticamente todo o PSOL no campo democrático-popular (com exceção do Juntos!) precisa ser interpretada como um realinhamento da maioria das tendências deste partido em direção à Lula e ao PT; este processo parece cumprir o papel de ampliar e renovar o campo democrático-popular, trazendo bases populares (MTST), feministas (Bancada Feminista do PSOL) e antirracistas (feministas antirracistas do PSOL), que interseccionam classe, gênero e raça de um modo que os antigos atores lulistas não conseguem no tempo presente, além de intensificar a legitimidade da hegemonia lulista sobre o campo progressista como um todo.

Fico me perguntando: qual é o grau de consolidação do realinhamento de setores juvenis, feministas, antirracistas, indígenas e ambientalistas do PSOL? Será que este processo tem um prazo de validade? Quem tem mais a ganhar? Será que a movimentação do PSOL vai ser capaz de puxar um Governo Lula 3 para a esquerda, reinstitucionalizando a força de públicos subalternos no interior do Estado brasileiro, ou estes serão alguns dos novos pilares de relegitimação do presidencialismo de coalizão, diante de todas as alianças que Lula está conseguindo tecer com setores do MDB e do PSD, não para as eleições, mas sim para governar? Quando chegarem as inevitáveis decepções com relação ao que pode ser feito em termos de políticas públicas em um contexto bem mais difícil do que o período 2003-2016, como estes atores vão se comportar?

Coloco-me também a questão: será que uma nova oposição de esquerda hegemonizada por – como se queira chamar – neostalinistas, comunistas ou marxistas-leninistas será capaz de dinamizar as lutas sociais dos grupos subalternos brasileiros? Mesmo com seus problemas e insuficiências, a antiga oposição de esquerda, composta por autonomistas e trotskistas, tinha um compromisso com a autonomia dos movimentos que me parece incompatível com o centralismo democrático, o vanguardismo e a estatolatria cultivados pelos novos atores que estão entrando em cena à esquerda do PT.

Em uma contagem artesanal do número de manifestantes, o tamanho dos blocos era, basicamente, equivalente: em torno de mil pessoas no primeiro grande bloco da nova oposição de esquerda compondo a frente do ato, e em torno de mil pessoas no segundo grande bloco do campo democrático-popular renovado e ampliado, no fundo do ato.

Independentemente da fragilidade desta quantificação, é inegável tanto o equilíbrio entre os blocos quanto o esvaziamento do ato, o que indica a total ausência de senso de urgência por parte de todas as frentes e organizações: se a perspectiva compartilhada é de “fascismo” e “golpismo”, como foi possível investir tão poucos recursos e energia em mobilização diante de tamanha ameaça?

Nada garante que a mobilização bolsonarista consiga colocar nas ruas um público similar ao do 7 de setembro de 2021: cerca de 1 milhão de pessoas na Av. Paulista. Contudo, é certo que a massividade do protesto no Bicentenário da Independência vai exceder largamente as poucas centenas de pessoas no 11 de agosto na mesma Av. Paulista.

Se a esquerda permanecer apostando todas as fichas na política institucional oficial (limitando-se a defender o sistema eleitoral e as urnas eletrônicas e a tecer alianças frágeis com setores do empresariado e economistas ligados ao establishment) e não fizer nenhum movimento em direção à política extrainstitucional (como a ocupação massiva das ruas) ou apresentar e desenvolver de forma central reivindicações antissistêmicas (com relação a: capitalismo, reprodução social, discriminação racial, genocídio indígena e destruição ambiental), a extrema-direita terá diante de si a reprodução de todas as condições sociais e culturais para continuar apresentando a si mesma como a encarnação do Antissistema e a esquerda (desde o centro até a extrema-esquerda) como a encarnação do Sistema.

E, mesmo que Lula tome posse em 1º de janeiro de 2023, o ano de 2026 vai estar logo ali, na virada da esquina.

 

Fonte: Correio da Cidadania

 

Nenhum comentário: