Igreja Universal
driblou a lei e contratou policiais militares como seguranças
Não são apenas reuniões nos templos e visitas aos
batalhões – mas também empregos. Ou melhor: bicos. Além de oferecer assistência
espiritual a soldados em 24 estados, como revelou o Intercept, a Igreja
Universal também montou uma força de segurança à sua disposição integrada por
policiais militares. Processos trabalhistas e policiais – que correm risco de
punição – detalham como a igreja liderada por Edir Macedo driblou a lei e o regulamento da PM
para contratar, de forma irregular, soldados na ativa para atuarem como
seguranças das empresas do grupo.
A Igreja Universal respondeu a
um inquérito em São Paulo e a uma ação civil pública em Rondônia e a outra em
Goiás por conta da terceirização de sua segurança e também pela prática de
contratação de PMs. O inquérito aberto em São Paulo correu em segredo de
justiça e terminou com um termo de ajustamento de conduta, um TAC, firmado com
a Procuradoria Regional do Trabalho. Nele, a Universal se comprometeu a não
mais contratar seguranças como “bico”, entre eles policiais. Segundo o acordo,
a igreja, daí em diante, passaria a manter os seus serviços de vigilância
patrimonial e de transporte de valores por meio de empregados próprios,
devidamente registrados ou por meio de empresas terceirizadas e legalmente
constituídas.
O
procurador do Trabalho Marcelo Sampaio Costa determinou, naquele momento, que a
Polícia Militar do Estado de São Paulo fosse notificada sobre o acordo. Lá,
o Regulamento Disciplinar da
corporação, em seu artigo 13, item 26, proíbe “exercer ou administrar, o
militar do Estado em serviço ativo, a função de segurança particular ou
qualquer atividade estranha à Instituição Policial-Militar com prejuízo do
serviço ou com emprego de meios do Estado”. Apesar de vedada, essa atividade,
chamada de “bico”, não é crime. As punições podem variar entre advertência,
repreensão e detenção. Outros estados têm regras semelhantes.
Nas
ações civis públicas em Rondônia e Goiás, a Universal também foi obrigada a
interromper a contratação de policiais no trabalho informal. Na decisão de 2020
do Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região, em Rondônia, a igreja foi
condenada a pagar uma multa que chegou a R$ 380 mil.
No
Tribunal Regional do Trabalho da 18ª Região, em Goiânia, a igreja também foi
condenada, em 2016, a pagar uma multa de R$ 4 milhões. A penalidade, no
entanto, acabou revogada. Depois de um recurso da igreja, que argumenta que a
lei e o regulamento se aplicam aos policiais e não aos contratantes, o
tribunal, na decisão final, entendeu que o serviço do PM “não configura
trabalho ilícito, mas sim trabalho proibido, que no caso dos policiais
constitui infração administrativa a ser eventualmente apurada e punida no
âmbito da corporação”.
A
decisão citou uma jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, a súmula
386, que reconhece a relação de emprego entre policial militar e empresa
privada, independentemente do eventual cabimento de penalidade disciplinar
prevista no Estatuto do Policial Militar.
O
TST reconheceu a relação de emprego entre policial militar e empresas privadas
nos casos em que os PMs foram contratados como “bico”. Nesse caso, o policial
passa a responder pelas eventuais penalidades disciplinares, e a empresa é
condenada a pagar os direitos trabalhistas. O trabalho do policial nas horas de
folga, no entanto, apesar de irregular, não chega a se configurar uma “ofensa à
população” a ponto de gerar um dano moral, de acordo com o TST.
As
contratações para a área de segurança da Igreja Universal são feitas hoje por
meio de uma empresa do grupo, a Centurião Segurança Patrimonial Ltda, sediada
em Santo Amaro, na zona sul de São Paulo, e com filiais em vários estados. O
grupo Universal possui ainda outra empresa na área de segurança, a Armada Real
Segurança Patrimonial, em Salvador. A Centurião tem como sócios, entre outros,
o bispo da Universal Adilson Higino da Silva e o presidente da Rede Record,
Luiz Cláudio da Silva Costa, que também aparece no quadro societário da Armada
Real.
Os
profissionais de segurança atuam na proteção de templos, na segurança de Edir
Macedo e familiares, de bispos e de empresas do grupo Universal, como TV
Record, banco Digimais, Hospital Moriah e plano de saúde Life, entre outras. Em
uma audiência de 2019, o policial Carlos, que fazia segurança para o filho
de Edir Macedo, Moysés, afirmou que não tinha horário nem para almoçar, e comia
quando era possível.
No
inquérito aberto para apurar a contratação de seguranças terceirizados pela
igreja, a Procuradoria Regional do Trabalho da 2ª Região, em São Paulo,
constatou que a Centurião Segurança Patrimonial possuía, em novembro de 2021,
mais de 3,5 mil seguranças contratados, alocados em suas diversas sedes. O
procurador Costa explicou que, como o foco era a terceirização, não foi
detalhado quantos desses 3,5 mil seguranças seriam policiais. O inquérito
tramitou em segredo de justiça. A Universal informa possuir 12,3 mil templos em
cinco continentes.
A
Centurião, no entanto, só contratava PMs, disse a advogada Márcia Cajaíba, que
atuou em casos de 80 policiais que trabalharam na informalidade para a igreja e
empresas do grupo. Segundo ela, ao menos outros 20 escritórios espalhados pelo
país teriam movido ações de PMs contra a Universal reivindicando direitos
trabalhistas. A advogada diz que o número de policiais contratados pela igreja,
até 2013, seria bem maior do que os 3,5 mil seguranças detectados pelo
Ministério Público do Trabalho, segundo os relatos que ela ouvia
dos policiais para quem advogou.
Na
época, segundo os PMs, era mais comum o transporte em carros-fortes de altas
somas de dinheiro recolhidas nos templos, vindas dos dízimos e ofertas, o que
exigia um número bem maior de seguranças. Líderes importantes da Universal já
foram flagrados em trânsito com malas de dinheiro, como foi o caso do bispo e
então deputado federal João Batista Ramos da Silva, detido em um avião Cessna
525 Citation, em 2005, com R$ 10,2 milhões, em valores da época. O bispo disse
que o dinheiro vinha para São Paulo e teria sido arrecadado em templos do
Amazonas e Pará. No mesmo ano, o pastor George Hilton, então deputado estadual
e que depois viria a ser ministro do Esporte no governo Dilma Rousseff, foi
flagrado no aeroporto de Pampulha, em Belo Horizonte, com R$ 600 mil em espécie
distribuídos em 11 caixas de papelão.
Depois,
com a era digital e com a compra do Banco Renner – hoje Digimais –, adquirido oficialmente em 2020, a
necessidade de um efetivo gigantesco nas ruas e no ar diminuiu.
Um
dos policiais ouvidos pelo Intercept, Rogério, disse que quando se desligou da
igreja, em 2018, havia 1,8 mil PMs trabalhando de “bico” e outros 200
registrados em carteira, por meio da Centurião, só no estado de São
Paulo.
Um
ex-PM, Leonardo, que pediu exoneração em 2021 afirmando que era perseguido pelos
superiores devido às suas posições políticas e ao seu comportamento pessoal, me
disse ter informações, por meio de colegas, que o trabalho de bico continuaria
normalmente hoje na igreja. Segundo ele, há PMs que recebem ainda “por fora”,
policiais reformados que continuam prestando serviços e outros atuando
supostamente como voluntários, em troca de promessas de benefícios como
transferências ou indicações políticas, que seriam feitas por meio do
Republicanos, o partido político ligado à Universal. De acordo com Leonardo,
alguns PMs integram uma espécie de conselho, que busca integrar esses policiais
que trabalham na segurança às atividades religiosas.
Em
nota enviada ao Intercept, a Polícia Militar de São Paulo afirmou que instaurou
um procedimento para “apurar os fatos” sobre denúncia de que PMs estariam sendo
doutrinados. Sobre o Termo de Ajustamento de Conduta, a instituição afirma que
“foi notificada, mas não há registro de novos casos de PM atuando para a Igreja
Universal, nem de possível cobrança de direitos trabalhistas”.
“Cabe
ressaltar que toda e qualquer denúncia de trabalho de integrantes das forças de
segurança do Estado de São Paulo fora das instituições policiais, mesmo que nos
horários de folga, são rigorosamente investigadas pelas respectivas
corregedorias”, disse a PM. “Aos policiais Civis e Militares é vedado o
exercício de qualquer atividade comercial ou participação em sociedade
comercial, salvo na condição de acionista ou cotista”.
O
Intercept enviou uma série de perguntas à Igreja Universal. A instituição
afirmou que tem contrato de prestação de serviços com a empresa Centurião, “que
é uma empresa de segurança privada, devidamente autorizada pela Polícia
Federal”, e que as questões deveriam ser enviadas à empresa. Mandamos as perguntas
à Centurião, mas não houve resposta.
·
Dupla jornada
Um ex-pastor da Universal, que se identificou como
J.A.R. e evita dar o nome completo por ser parente de um bispo da igreja,
também garante que os policiais militares continuam atuando nos templos. Segundo
ele, dos 3,5 mil seguranças contratados pela Centurião até 2021, 2 mil seriam
PMs – 700 trabalhando em São Paulo, outros 700 no Rio e 600 pelo Brasil afora.
Os demais seriam apenas “seguranças-porteiro”, afirmou.
De
acordo com o ex-pastor J., há a preferência pela contratação de policiais
por eles já possuírem arma pessoal (além da arma da corporação) e terem
autorização para utilizá-la. O simples vigilante, não policial, não pode, por
exemplo, utilizar arma em área pública, em frente aos templos, só em seu
interior. Para J., isso faria com que locais como o monumental Templo de
Salomão, sede da igreja no bairro do Brás, em São Paulo, tivessem a sua
segurança comprometida.
A
contratação de PMs para a segurança privada como “bico” diminuiu, segundo
a advogada Márcia Cajaíba, após as ações civis e inquéritos e decisões da
Justiça do Trabalho. “Quando ganhamos uma ação e a igreja foi obrigada a
depositar R$ 700 mil na justiça, a rádio-peão [expressão usada em empresas para
designar mensagens não oficiais que circulam nos corredores] espalhou, e outros
PMs passaram a nos procurar”, contou. “Para diminuir ações na justiça, a
contratação pela Centurião passou a ser priorizada, e a empresa de segurança
ganhou força”.
A
decisão de priorizar a contratação de PMs para a segurança tem uma outra forte
motivação: o treinamento específico necessário, o que significa uma substancial
economia de custos.
“Não
é uma mão de obra que está aí, da própria empresa, da formação de vigilância. É
a mão de obra do estado, que está na mão do Edir Macedo”, criticou Cajaíba. Ela
ainda apontou outros problemas. “Os policiais têm jornadas de 12 horas e folga
de 36 horas, pois precisam estar descansados. Mas não descansam, pois vão
trabalhar para a igreja e outras empresas. Eles têm a expertise do treinamento,
que não devia ser explorada pela iniciativa privada. Além do mais, têm acesso a
informações privilegiadas. O policial sabe quais são os locais com maior
incidência de crimes, quais problemas existem em cada local. É uma concorrência
desleal com outras empresas de segurança”.
·
Vista grossa
Por ser uma atividade vedada, mas não ilícita – além de
muitas vezes necessária como complemento de renda, já que o salário médio de
policiais no Brasil é de R$ 5 mil –, esse tipo de bico dos PMs passou a ser, de
certa forma, tolerado por governos, secretários de Segurança e chefes de
batalhões.
“O
policial não pode fazer segurança privada em lugar nenhum. Mas já desistiram de
controlar isso há muito tempo. Tanto que a escala do policial é de 12 horas de
trabalho e 36 de descanso, e têm um dia de folga e pode fazer a segurança”,
constatou o cientista político Guaracy Mingardi, ex-investigador de polícia e
membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “O policial não poderia
exercer outra função a não ser a de professor, como é regra no funcionalismo
público. Mas a verdade é que o policial vende proteção”.
Quando
um PM é denunciado por fazer bico ele pode pegar cadeia de até três dias em
presídios militares. “Mas, para as empresas, como é o caso também da igreja,
não acontece nada. Governos também procuraram não criar dificuldades para
grandes redes de supermercados ou multinacionais de produtos eletrônicos”,
disse a advogada Cajaíba.
Em
São Paulo, nos anos 1990, quando houve um aumento de violência e casos de
sequestro, tornou-se comum empresários e grandes empresas contratarem policiais
para sua segurança. Para as empresas, no entanto, hoje o risco de contratar o
PM informalmente é depois ter de pagar indenizações na justiça.
Empresas,
então, estariam contratando agora com registro. Mas um outro PM ouvido, Manoel,
que trabalhou para a Universal e se desligou em 2015, disse não acreditar nessa
hipótese, pois quem aceitasse o registro na carteira teria problemas com a
Corregedoria da Polícia Militar.
“Mas,
para a iniciativa privada, essa solução é boa, pois se houver problema, quem
vai responder ou ser punido é o policial”, afirmou Marcia Cajaíba. “O Tribunal
Superior do Trabalho também colocou o seguinte: se você explorou essa mão de
obra, você vai pagar todos os direitos como empregado. E, se existe
ilegalidade, cabe ao estado que tem um decreto sobre o tema aplicar a punição”.
Por
conta do risco de prisão, os PMs na ativa procurados pelo Intercept evitaram
dar seus nomes e revelar outros detalhes. Mesmo aqueles já reformados ainda
estão sujeitos a penalidades, pois podem ser alijados da corporação e perderem
benefícios caso cometam algum ilícito. O policial Rogério falou com a
reportagem por cerca de 15 minutos, mas alegou ter um compromisso e propôs
continuar a conversa três dias depois. Em dois novos contatos, a seguir,
recuou. “Eles são muito violentos. Se souberem quem falou, vão fazer tudo para
prejudicar”, justificou. Outros policiais contatados também evitaram se
manifestar.
O
cientista político Guaracy Mingardi considera grave o fato de policiais se
tornarem dependentes de uma instituição religiosa. “Isso é um problema maior.
Tem muita gente hoje dependente dessa instituição. E eles podem pressionar para
isso. É complicado. Quando uma instituição tem muita penetração na outra, elas
acabam se confundindo. E você vai ver religião misturada com política e
segurança. Não podemos misturar essas coisas. Temos de lembrar que o estado é
laico”, argumentou. “Pagar 3 mil policiais para fazer segurança de uma
instituição não é a mesma coisa que fazer segurança de uma padaria”.
O
procurador Marcelo Costa disse ao Intercept que, havendo denúncia de que o
acordo firmado em São Paulo para a não contratação de terceirizados – entre
eles eventualmente PMs –, não esteja sendo cumprido, o Ministério Público do
Trabalho “vai aguardar a notícia e vai agir como deve agir”.
As
contratações de PMs se somam ao fato de a igreja prestar, por meio de seu
programa Universal nas Forças Policiais, o que chama de “assistência
espiritual” para forças de segurança. O Intercept mostrou que, só neste ano,
aconteceram mais de 70 encontros, sem nenhum tipo de convênio, que envolveram
altas autoridades de várias forças policiais diferentes pelo Brasil. São Paulo,
estado governado por Tarcísio de Freitas, do Republicanos, partido ligado à
Igreja Universal, foi o estado com o maior número de reuniões.
Para
o deputado petista Paulo Reis, da Assembleia Legislativa de São Paulo, a
Universal pode estar formando uma milícia religiosa. Ex-PM e policial civil
licenciado, o parlamentar encaminhou representações ao Ministério Público
Federal e ao Ministério Público de São Paulo pedindo a apuração e providências
sobre o deslocamento de PMs, em horário de serviço, aos templos da igreja.
A
Polícia Militar de São Paulo disse ao Intercept que não mantém qualquer
convênio com a Igreja Universal ou com outra entidade religiosa.
“Esporadicamente, a Instituição realiza operações de revista à tropa, ações de
orientação e reuniões para apresentação de indicadores criminais da região em
áreas externas aos batalhões de modo a acolher e alocar adequadamente todo o
público presente. Esses espaços são cedidos voluntariamente por clubes,
igrejas, universidades e prefeituras. Tais reuniões são pontuais e promovidas
de acordo com a necessidade de cada unidade, que entra em contato com alguma
instituição próxima que possa ceder o espaço”.
Fonte:
Por Gilberto Nascimento, em The Intercept
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