Guerra ou Paz? Os
protagonistas do conflito. De desafiadores a perdedores
Ante
a alternativa “Guerra ou Paz?” é
muito importante tentar entender a verdadeira natureza desta guerra. Cada vez
mais parece que não se trata de um acontecimento circunscrito, mas de um
capítulo de uma guerra constituinte que investe toda a ordem internacional e a
estrutura como um sistema de dominação
e de guerra,
cujos efeitos são imprevisíveis e podem ser devastadores para todos, para
a comunidade mundial.
Em
si mesma, esta guerra da Ucrânia é uma guerra
absurda. De fato, a guerra não só pode ser dulce inexpertis, não só
pode ser alien a ratione, não só é contra a lei, não só é brutal,
mas pode ser mais do que insensata, absurda. E é isso. Não custou nada evitá-la,
e poderia acabar logo, 15 dias depois, com os acordos de Antalia imediatamente rejeitados pela OTAN.
Como
isso não aconteceu, vejamos que papéis os diferentes protagonistas
desempenharam na guerra: o desafiante,
o inimigo, a vítima, os vencedores, os perdedores.
1. Os desafiantes são
os Estados Unidos que,
após a derrubada do Muro de Berlim,
pretendem estabelecer uma ordem mundial feita à sua imagem e medida e
conformada a um único domínio. Segundo os documentos estratégicos do governo
americano – a Casa Branca e o Pentágono – (os últimos de
outubro passado) deveria ser uma ordem fundada nos três pilares da democracia,
liberdade e livre iniciativa e deveria ser concretizada ainda nesta década com
a eliminação da Rússia e
o desafio final com a China.
Portanto,
a guerra ucraniana apresentou-se como uma boa oportunidade para começar
liquidando a Rússia, mesmo
sem ter que lutar. Segundo Biden,
era necessário reduzir a Rússia à condição de pária e eliminá-la da competição
estratégica pelo domínio global. Isso diz qual é a verdadeira alternativa pela
qual lutamos nesta guerra: ou um mundo unipolar e monocrático uniformizado a um
único modelo cultural e político, ou um mundo pluralista mas em paz com todas
as suas diversidades e dialéticas. E esta é também a escolha real que está
diante de nós.
2. O Inimigo é, claro, a Rússia. Nela, o Ocidente redescobriu o
inimigo que havia perdido graças à remoção do Muro de Berlim por Gorbachev.
O Ocidente precisava disso porque sem um inimigo o instrumento de guerra não
pode ser recuperado, pois, uma vez terminada a dissuasão, apressou-se a fazer
a Guerra do Golfo; ele precisava porque sem inimigo no Leste a OTAN não fica no Ocidente, e
porque sem o par amigo-inimigo, segundo a nossa cultura, a política, o
"critério" do político, também falha.
A
Rússia demorou a ser tomada como inimiga, ofereceu-se à recriminação universal,
porque se estava certa em se opor à OTAN na Ucrânia e
à repressão em Donbass,
ao fazer a guerra caiu no erro e deu um álibi ao frenesi antidominação russa no
Ocidente.
No
entanto, a Rússia de Putin manteve
sua força sob controle, optando por travar uma guerra pequena e de baixa
intensidade, em vez de invadir toda a Ucrânia e ocupar Kiev,
como poderia ter feito devido à disparidade de forças no campo. Não o fez não
porque falhou por despreparo militar, mas porque o que está em jogo não é a
Ucrânia, mas a ordem mundial.
E
Putin também fez uso controlado da força contra a revolta do grupo
Wagner;
poderia ter disparado e assim detido a marcha para Moscou, e não o fez, optando por uma solução política (portanto
trata-se de terroristas, ao contrário da ortodoxia em vigor em Itália!) e evitando uma guerra civil.
3. A vítima, como sempre diz o
Papa,
é a atormentada Ucrânia (além das populações pobres de meio mundo afetadas pela
crise alimentar e energética). Mas esta vítima ucraniana foi imolada não por
um, mas por muitos oficiantes do sacrifício. Putin foi o primeiro a
identificá-lo como o fulcro da contradição e causa da violência e lançou-o na
guerra, mas os amigos e aliados da Ucrânia imediatamente o assumiram como uma
vítima a ser levantada para uma solução salvadora para a crise, e fizeram
de Zelensky o herói
sacrificado aos valores e à identidade do Ocidente; Europa, América e OTAN alcançaram
magicamente a sua unidade, estabelecendo a sua comunhão nas armas
enviadas à
vítima e confiando os seus sonhos de glória à sua morte sacrificial, passada
como vitória.
Assim,
uma violenta unanimidade foi estabelecida em torno da Ucrânia, unindo amigos e inimigos. Por
sua vez, a Ucrânia, enganada pelos Aliados que
lhe prometiam a vitória sobre a Rússia,
ofereceu-se como vítima expiatória com a decisão
de proibir as negociações, não admitindo outro desfecho senão a recuperação das
terras perdidas, até a Crimeia.
Há
páginas perturbadoras de René Girard,
o grande revelador da ideologia do
sacrifício, que mostra como muitas vezes a própria vítima se torna cúmplice
de sua própria imolação. E em Zelensky o
sacrificador tornou-se sacrílego porque a carne de seu povo jogada na fornalha
é sagrada: mesmo ao custo de permanecer na guerra por anos, como disse o
chanceler ucraniano Kuleba em
entrevista ao "Otto e mezzo".
Na lógica do poder, como o próprio Girard demonstrou,
as instituições ocultam sua própria violência, projetando-a sobre sempre novas
vítimas.
4. Os vencedores desta guerra são, sem dúvida, os
fabricantes de armas americanos que entre 1996 e 1998 investiram 51 milhões de
dólares (94 milhões hoje) em atividades de lobby para convencer os
congressistas e a Casa Branca a
estender a OTAN para o
leste, para expandir o mercado de armas. Como disse o arcebispo Delpini na catedral
de Milão após a morte
de Silvio Berlusconi, quando fazemos negócios,
olhamos para os números e esquecemos os critérios. Esqueça os critérios, a
guerra na Ucrânia chegou
e pagou esse investimento com usura, já que 100 bilhões de dólares dos Estados Unidos foram em armas e lucros para sustentá-la.
E
quem é o perdedor? Derrotado é o projeto de um mundo todo absorvido no novo
século americano, porque o mundo não está aí para ser reduzido a um único
império. O mundo não é uma entidade amorfa, primitiva, disponível para a
dominação. Essa foi a arrogância do Ocidente, sua ascensão ao céu. Enquanto
outras civilizações floresciam, por muito tempo acreditamos que o mundo estava
todo na koiné greco-romana, então o incorporamos ao
cristianismo e agora o chamamos de Ocidente. Mas esta guerra marca o
fim do Ocidente,
a derrota de sua pretensão de possuir a história do mundo, de recapitular todos
os seus valores.
·
Qual foi o pecado capital do Ocidente?
O
Ocidente não reconheceu o outro, o estrangeiro, não o considerou igual a si
mesmo. Apesar da derrubada do cristianismo e de São Paulo, o
Ocidente trouxe consigo uma antropologia da desigualdade que de Aristóteles, da sociedade de senhores
e servos, de cidadãos e metecos, de escravos e livres, chegou até Hegel e Croce, passando através da descoberta
da América; só isso custou o desaparecimento de 100 milhões de indígenas, cujas
almas até os teólogos do Ocidente duvidavam.
O
medo atual da substituição étnica, a luta contra os
migrantes que
vêm do Sul, não os que vêm da Ucrânia, portos fechados, Cutro, são filhos dessa cultura de
seleção e exclusão. O estrangeiro não passa!
Mas,
como diz Carl Schmitt, no sentido mais
extremo, o estrangeiro não é apenas o outro, o estranho, mas é o inimigo. E o inimigo não é
necessariamente o maligno, o inimigo é simplesmente o outro de mim.
E,
finalmente, como o próprio Schmitt diria
mais tarde no fim de sua vida, graças à "sabedoria da cela" em que
foi preso devido ao seu passado com o nazismo, o inimigo é "aquele que me
questiona". Em certo sentido, portanto, o inimigo é algo que está dentro
de nós, porque nós mesmos somos continuamente uma questão para nós mesmos. Mas
isso significa que se o Ocidente não reconhece o outro, não o acolhe como outro
igual a si mesmo, rejeita-o como próximo, não se conhece nem a si mesmo, está
dividido até dentro de si, é um inimigo de si mesmo.
Há
poucos dias, o Corriere della
Sera, publicando um editorial de Angelo Panebianco sobre o estado do mundo, trazia a seguinte
manchete: "O Ocidente e o resto do mundo". Não, não há um Ocidente
que seja o mundo, e um resquício que seja o que sobra do mundo, o resíduo, o
lixo. O mundo é um, mas não para dominá-lo como um único império, nem para
dar-lhe um único direito, um único Nomos. Isso não é universalidade. O Ocidente
teve vocação para a verdadeira universalidade, gerou messianismos e profecias,
concebeu uma koiné que, na harmonia de diversas riquezas, se
estenderia até os confins da terra. É essa universalidade que o Ocidente traiu.
Mas nunca é tarde para recapturar o kairòs enquanto ele foge e
reabrir o futuro.
Estaria
na hora de o Ocidente recuperar sua vocação, evitar o fim e junto com todos os
outros se colocar em jogo por outra concepção do mundo, para salvar a Terra.
Ø
Guerra
como produto
O motim do [grupo
paramilitar] Wagner na Rússia terminou negativamente para o
soldado Prigozhin e para os
serviços de inteligência ocidentais que, se era verdade a gaba de que sabiam
tudo de antemão, não sabiam como se mover e o que fazer. Em vez disso, acabou
positivamente para Putin, que poderia ter
parado o comboio de mercenários na estrada para Moscou com tiros de canhão e, pelo contrário, calculou bem os
riscos, preferindo a solução política (portanto, é uma questão de terroristas!)
e evitando a guerra civil.
Contra as alegres profecias de um colapso da Rússia e sua derrocada militar, a contraofensiva ucraniana não tirou
nenhuma vantagem da crise e a guerra continuou como estava.
Em
vez disso, a aventura do grupo Wagner chamou
a atenção para o flagelo dos
exércitos mercenários e
dos "empreiteiros" que integraram ou até substituíram os exércitos
conscritos. O pacifismo no Ocidente saudou
a renúncia ao recrutamento obrigatório pelos estados como sua vitória, mas na
realidade foi a vitória dos belicistas que, queimados pela experiência do Vietnã (os cartões postais de
preceito queimados nos campi universitários) e pela legitimidade da objeção de
consciência, perceberam que não podiam mais confiar no exército popular e no
seu amor gratuito pela pátria e optaram pela prostituição, pela guerra e pela
compra de serviços militares por dinheiro.
Desta
forma, a guerra perdeu cada vez mais os seus álibis ideais (e os comportamentos
sonhados pelas Convenções de
Genebra) e tornou-se cada vez mais intrínseca ao dinheiro; como toda realidade
submetida pelo capitalismo, e antes pelo Nomos do Ocidente,
à lei da coisa, a guerra tornou-se um produto e os homens e mulheres de armas tornaram-se produtíveis, não apenas em benefício
das indústrias e do mercado de armas, mas também das guerras a serem travadas e
do saque e dos mortos a serem trocados entre as partes em conflito.
O
sistema de dominação e de guerra ao qual, a partir do grande acontecimento
político da derrubada do Muro de Berlim, a ordem
internacional foi conformada e a própria condição humana na Terra foi
escravizada (lembre-se do ministro que durante a Guerra do Golfo explicou na Câmara que já não era mais
possível distinguir tempo de guerra de tempo de paz), foi assim
institucionalizado e equipado com todas as garantias de não ser questionado e
contestado em democracia sobre as guerras individuais a serem travadas.
"Paradoxalmente,
se hoje queremos lutar pela paz e pelo
repúdio ao sistema de guerra, devemos lutar pelo restabelecimento do serviço militar obrigatório, mas de
forma a visar a criação de exércitos capazes de defender, de várias formas, não
apenas um, mas muitos municípios ativos de que consistem as Pátrias; e
estas Forças Armadas podem nem sempre estar
armadas, como foi o caso da missão militar italiana que, após a queda de Hoxha, saiu sem armas para ajudar
a Albânia e não por
acaso foi chamada de “Pelicano”.
E com o recrutamento obrigatório poderia até voltar a objeção de consciência
que na Itália, único país
do mundo, a lei reformada elaborada no Parlamento pelo Grupo Interparlamentar (e interpartidário) pela Paz (GIP) chama, positivamente, "a obediência à consciência".
Fonte:
Por Raniero La Valle, para IHU
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