sexta-feira, 7 de julho de 2023

É a hora de preparar o novo ciclo geopolítico mundial

Immanuel Wallestein e Giovanni Arrighi trouxeram importantes insights para o campo das relações internacionais (O Declínio do Poder Americano, 2004) e a economia capitalista contemporânea (O Longo Século XX, 2007; e Adam Smith em Pequim: Origens e Fundamentos do Século XXI, 2008). O primeiro abordou, dentre outras coisas, a corrosão ideológica do poder norte-americano ao longo do tempo, ou seja, a capacidade de Os Estados Unidos da América ser um exemplo a ser seguido pelo chamado “mundo livre”; e o segundo na chegada do fim do Ciclo Sistêmico de Acumulação dominado atualmente pelos EUA. As relações internacionais estão passando por essas transformações.

Mesmo com algumas críticas pertinentes às abordagens e conclusões dos autores, seja pelas várias escolas analíticas das relações internacionais, o fato é que o mundo geopolítico e econômico de hoje não é mais o mesmo do final da Segunda Guerra Mundial e muito menos o herdado do fim da Guerra Fria. Podemos afirmar que a ideia de que o século XXI continuará a ser comandado pelo EUA e Europa perdeu o sentido totalmente.

A consolidação da China como uma grande economia capitalista, investidora global e com projeto geopolítico próprio ao lado do retorno da Rússia ao chessboard nos últimos anos, demonstram que os EUA e União Europeia (o “Ocidente”) não estão mais no controle da economia e da ideologia mundial ou, mais precisamente, da democracia liberal como um valor absoluto emanado de países comprometidos com Direitos Humanos ou Democracia. John Mearsheimer de algum modo, por exemplo, analisou tal processo (The Great Delusion: Liberal Dreams and International Realities, 2018). Mearsheimer (John Mearsheimer: We’re playing Russian roulette) sofre várias críticas por ter feito uma leitura lógica, realista e geopolítica da disputa Otan e Rússia. Um dos poucos analistas que não cederam ao stablishment ideológico bélico da Casa Branca. Aliás, não nos esqueçamos de Henry Kissinger que também viu como uma provocação a expansão da Otan para leste. Depois mudou de opinião (Henry Kissinger: Why I changed my mind about Ukraine) para seguir o mainstream de Washington. Nada mais correto do que manter a sua coerência histórica.

Retornando ao nosso argumento, a própria ideia de um compromisso eficaz dos EUA com os Direitos Humanos ou respeito ao Direito Internacional perde o sentido quando nos lembramos do Iraque, Abu Ghraib e Afeganistão para falar dos mais recentes fatos, são os exemplos mais claros de violações territoriais e dos direitos humanos.

Como já assinalamos (Guerra da Ucrânia: um novo mundo multipolar está surgindo), a invasão da Ucrânia (2014-2022) seria a linha divisória desse novo ciclo geopolítico de poder que está emergindo. Muito mais do que a invasão russa propriamente dita, o fracasso do Ocidente em tentar isolar a Rússia demonstrou que algo mudou completamente. A baixa influência dos EUA e da UE em arregimentar outras nações para seguir a estratégia de sanções contra Moscou demonstrou que é preciso muito mais do que a retórica da violação territorial da Ucrânia. A ausência de legitimidade global da política de Washington se evidencia quando os próprios EUA mantêm relações privilegiadas com Israel que ocupa ilegalmente a Cisjordânia e as Colinas do Golan desde 1967, por exemplo. Além disso, a suposta defesa da democracia como um pilar fundamental de sua política externa se torna objeto frágil quando se mantém relações diplomáticas de alto nível com a Arábia Saudita ou China, países com histórico de violações sistemáticas dos Direitos Humanos segundo as organizações que fiscalizam o tema ao redor do mundo e sediadas nos próprios EUA e UE.

Matias Spektor, na Foreign Affairs (May/June 2023), com o artigo In Defense of the Fence Sitters: What the West Gets Wrong About Hedging analisa as causas do chamado Sul Global não ter embarcado na adoção das posições ocidentais contra a Rússia. Trata-se de um bom roteiro para entender o que pode estar acontecendo nas relações internacionais e o seu futuro.

Outro sinal da mudança foi a chegada do Brics englobando países com grande projeção global em termos econômicos e posteriormente a criação do Novo Banco de Desenvolvimento como um órgão efetivo na democratização do acesso ao crédito internacional fora do tradicional centro criado no pós-guerra como o Fundo Monetário Internacional (FMI) ou Banco Mundial. Trata-se de um importante detalhe para esta nova configuração geopolítica e econômica, mesmo com as óbvias assimetrias existentes entre os seus membros fundadores. O próprio possível aumento do Brics para o Brics Plus com outros países postulando a entrada no grupo demonstra que algo está fora do tradicional padrão que conhecemos.

Cliff Kupchan, chairman do Eurasia Group em artigo no website da Foreign Policy intitulado 6 Swing States Will Decide the Future of Geopolitic, já visualiza que a nova dinâmica geopolítica está mudando para novos protagonistas como o Brasil, a Índia, a Indonésia, a Arábia Saudita, a África do Sul e a Turquia. Países que não estão na esfera de influência direta dos EUA e que deveriam receber mais atenção de Washington segundo o autor. São nações que não apoiaram as sanções promovidas pela UE e EUA contra Moscou e procuraram estabelecer linhas atuação própria com base nos seus interesses econômicos e geopolíticos.

Outra contribuição importante e coerente face a realidade da disputa geopolítica entre a Otan e a Rússia é o artigo de Samuel Charap, An Unwinnable War Washington Needs an Endgame in Ukraine também na Foreign Affairs. A lógica de extensão de uma guerra em que a Rússia pode até não vencer, mas dificilmente será derrotada, só serve os interesses (econômicos e geopolíticos, por exemplo) dos EUA. Além de aumentar os perigos de uma escalada militar e até mesmo nuclear. Europeus e ucranianos são meros peões dentro da lógica de Washington. É preciso reconhecer que Moscou terá que ter as reclamações ouvidas, mais cedo ou mais tarde. Mesmo que o bom senso não encontre eco em Washington, vários analistas já perceberem isso.

Tendo como base o atual cenário, o mundo está entrando em uma nova fase, que não terá o comando dos EUA e da UE. Aí está o maior problema para europeus e norte-americanos: reconhecer que o seu ciclo de poder está chegando ao fim, porém não aceitar esse fim de uma maneira coerente. O que queremos dizer como isso? A manutenção das mesmas linhas da atuação da Guerra Fria, ou seja, criando sistematicamente “inimigos comunistas” para arregimentar aliados e mantendo uma linha beligerante na política externa é uma falha grave que não mudará o resultado final: o declínio geopolítico e econômico dos EUA enquanto potência dominante e da Europa como uma região geopolítica importante.

Por outro lado, a UE ainda não percebeu que a linha ditada pelos EUA e seguida de maneira cega por Bruxelas promoverá ainda mais problemas para o bloco. Aliás, os resultados já são visualizados. A inflação e o desemprego são as pontas visíveis do iceberg que a UE precisa enfrentar. A perda de influência do eixo euro-atlântico é irreversível.

O que fazer? É a hora de preparar o novo ciclo geopolítico mundial.

 

Ø  Perguntas para um novo mundo. Por Almir Felitte

 

A turbulência política vivida pelo mundo de hoje já está longe de ser uma novidade. De golpes na América Latina à Primavera Árabe, da ascensão fascista na Europa à Guerra na Ucrânia, a crise do capitalismo liberal, desde 2008, parece ter desencadeado uma movimentação na geopolítica global como não se via há tempos.

Diante deste cenário, em parte por falta de visão, em parte por interesses privados, a mídia hegemônica tem se perdido em uma tentativa desastrosa de reeditar um discurso que remete à Guerra Fria. Para esta, todos os conflitos não passam de uma disputa entre duas grandes potências, China e EUA, pela hegemonia do capitalismo global.

Recusam-se a analisar de forma mais profunda os significados e as raízes dos atuais conflitos. Ao contrário da segunda metade do século XX, quando, de fato, dois grandes blocos com espectros ideológicos, sobretudo econômicos, bem definidos se opunham, hoje, o antagonismo político que se desenha envolve uma certa pluralidade.

Para chegar as questões que este artigo deseja, primeiro, precisamos quebrar um grande mito. Mesmo com todos os discursos de livre mercado, desde que o capitalismo conectou o mundo (violentamente na forma de colonização), ele nunca foi um sistema realmente multilateral. Na verdade, local ou globalmente, o capitalismo sempre se organizou em binômios: metrópole e colônia; casa-grande e senzala; proprietários e trabalhadores. Sempre uma relação de poder que emanou de um centro às periferias.

Essa bipolarização tipicamente capitalista não se refletiu apenas em aspectos econômicos, impactando, inclusive, as nossas próprias noções de Estado e democracia.

Berço da democracia liberal na Europa com sua Revolução no século 18, tão logo passou a perder boa parte de suas colônias na América, a França já confabulava pela “Partilha” do território africano enquanto ocupava parte da Ásia ao longo do século 19. A democracia liberal francesa foi o centro violento de poder para inúmeras colônias até a década de 1970.

Outro berço icônico do liberalismo, os já independentes EUA conviveram por 89 anos com a escravidão negra, no que Mbembe chama de “democracia de escravos”. Depois ainda viveriam outros 99 anos coexistindo com as leis de segregação racial. Ao resto da América, os EUA reservaram a Doutrina Monroe e a política do Big Stick, um intervencionismo imperialista que também não tardaria a cruzar oceanos.

Os exemplos francês e norte-americano são apenas uma amostra de como, de fato, o capitalismo global se organizou ao redor do mundo, não só no campo econômico, como também no político. Bipolarizado por essência, numa relação desigual entre centro e periferia. E eis que chegamos ao grande ponto deste artigo.

Os conflitos que se espalham pelo mundo hoje não são um mero choque de potências em disputa pela hegemonia global. Estão em jogo visões distintas de como países devem coexistir. Uma visão que se fecha em si mesma, e outra que se abre a uma vasta gama de possibilidades. Não é um conflito entre Ocidente e Oriente. Não é um conflito entre capitalistas e comunistas. É um conflito entre os que defendem a manutenção deste capitalismo bipolarizado que irradia do centro à periferia e outro grupo, formado por um conjunto de países bem diversos entre si, que deseja a multilateralidade.

Diante desta constatação de que o grande conflito global da atualidade se dá entre a manutenção da bipolarização e a construção de um mundo multilateral, algumas perguntas (talvez ainda sem resposta) podem nos ajudar a entender os novos tempos que se avizinham.

Quais os efeitos do enfraquecimento de órgãos centrais do capitalismo para a soberania dos países do chamado Sul global? Em palavras exemplificativas, o que aconteceria com um país periférico em crise que, ao invés de recorrer a submissão da agenda liberal do FMI, tivesse alternativas como o Banco do Brics? Caso a desdolarização continue a avançar, que peso continuarão a ter as sanções norte-americanas para países que rezem fora de sua cartilha? O que aconteceria se o lastro de confiabilidade de países não ficasse mais sujeito apenas ao Banco Mundial e a agências de risco de Wall Street? Como ficaria a autodeterminação dos povos por todo o mundo sem a ameaça da Otan?

Para além destes questionamentos que, à primeira vista, convergem para um pensamento mais econômico, podemos fazer alguns apontamentos ainda mais profundos. Não só o capitalismo, mas a própria democracia liberal também sempre sobreviveu deste sistema que irradia de um centro para suas periferias. Como Mbembe nos ensina, as democracias modernas sempre dependeram de “violências distantes”, de um estado de exceção permanente que ele chama de “face noturna da democracia”.

Violências que, da distância do colonialismo e do imperialismo, já explodem no centro das próprias autoproclamadas democracias nestes tempos de crise. Do Black Lives Matter norte-americano à Paris em chamas contra a violência policial, os problemas do Estado democrático de direito se desnudam no centro do capitalismo como sempre se desnudaram nas periferias do mundo. Enfim, com todos os seus problemas, a democracia em sua forma liberal, igualmente bipolarizada, tem sido colocada em xeque.

Neste ponto, poderia a multilateralidade representar novas formas de organização política e social para o mundo? A derrocada da democracia liberal em um mundo multilateral representaria a radicalização de conceitos verdadeiramente democráticos e populares ou o império de autocracias? De todo modo, pela primeira vez na história do capitalismo, parece que todas estas respostas não serão mais dadas apenas pelo Ocidente.

 

Fonte: Por Charles Pennaforte, no Le Monde/Outras Palavras

 

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