domingo, 2 de julho de 2023

Deputado da peruca usa estudo falso para defender armas

O deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) apresentou um projeto de lei em fevereiro para facilitar o acesso a armas em que utiliza um artigo publicado em um jornal de estudantes de Harvard.

O texto, no entanto, foi refutado por um diretor da própria instituição norte-americana. A informação foi noticiada pelo site The Intercept Brasil e confirmada pelo UOL Confere.

O projeto foi apresentado pelo deputado à Câmara em 11 de fevereiro deste ano, pouco mais de um mês após o presidente Lula derrubar os decretos do antecessor, Jair Bolsonaro, que facilitavam o acesso a armas.

Dois trechos do suposto estudo são citados na justificativa do projeto de lei pelo parlamentar —apoiador do ex-presidente.

Na primeira menção, o deputado apresenta o texto como um “estudo da universidade de Harvard com o título ‘o controle de armas é contraproducente'”. Em seguida, destaca um trecho que afirma que “o assassinato por estrangulamento, esfaqueamento ou espancamento é muito mais frequente.”

Na segunda menção, cita os autores, Don Kates e Gary Mauser, e define o trabalho como “estudo minucioso acerca da temática sobre leis de armas e violência nos Estados Unidos e Europa”.

No projeto de lei, o deputado omite a informação de que o suposto estudo foi veiculado em uma publicação organizada por estudantes, o “Harvard Journal of Law e Public Policy”, em 2007.

O site do próprio jornal afirma que a publicação é produzida por estudantes e tem como objetivo “estudos jurídicos conservadores e libertários”.

Nikolas também não informa que o artigo foi refutado dentro da própria universidade.

Em 2009, o diretor do Centro de Pesquisa de Violência de Harvard, David Hemenway —no cargo desde 1998—, descredibilizou o artigo. Hemenway é graduado em Harvard, além de ter um doutorado pela instituição. Ele recebeu dez prêmios de ensino pela Escola de Saúde Pública de Harvard.

Não parece ser um jornal revisado por pares, ou um que busca a verdade em vez de apresentar uma certa visão de mundo.

O artigo em si não é científico, mas uma polêmica, afirmando que a disponibilidade de armas não afeta homicídio ou suicídio” - David Hemenway, diretor do Centro de Pesquisa de Violência de Harvard.

O verdadeiro título do suposto estudo também não é o citado pelo deputado no projeto. “O controle de armas é contraproducente” é o título de um texto publicado em um site que cita os mesmos trechos do artigo que constam no projeto de lei.

O site é da ACRU, uma organização norte-americana pró-armas, fundada em 1999, que se define como protetora dos “direitos concedidos por Deus descritos na Constituição dos EUA”.

O título original do texto citado no projeto de lei é, na verdade: “Proibir armas de fogo reduziria assassinatos e suicídios? Uma revisão de evidências internacionais e algumas domésticas”.

Em consulta no dia 30 de junho ao artigo original, o UOL Confere identificou que ele estava fora do ar.

Nem a página da ACRU, nem o PL do deputado citam a fonte dos dados mencionados no artigo ou fornecem o link para o texto original.

Don B. Kates Jr (1941-2016) e Gary Mauser, autores do artigo citado por Nikolas Ferreira, não estudaram ou lecionaram em Harvard. A única relação dos dois com a instituição é a publicação de artigos no jornal organizado por estudantes, como mostram suas biografias publicadas em sites de institutos que atuaram como colaboradores.

Procurada, a assessoria do deputado Nikolas Ferreira não se manifestou. Caso haja resposta, o texto será atualizado.

LEIA A REPORTAGEM DE PAULO MOTORYN NO THE INTERCEPT

•        PROJETO DE LEI DE NIKOLAS FERREIRA É BASEADO EM 'ESTUDO DE HARVARD' QUE HARVARD REFUTOU EM 2009

No dia 5 de janeiro, o jovem bolsonarista Nikolas Ferreira, do PL, ainda não havia tomado posse como deputado federal. Mais votado de Minas Gerais nas eleições do ano passado, naquele dia, ele disse a uma rádio mineira qual seria sua primeira medida no Congresso: desburocratizar e facilitar o acesso de armas a civis.

 “No primeiro dia, eu já quero protocolar um projeto de lei a respeito do armamento civil. A gente teve aí a derrubada dos decretos anteriores do Bolsonaro pelo Lula”. Dito e feito. No dia 11 de fevereiro, o recém-empossado deputado protocolou o tal projeto de lei na Câmara dos Deputados.

O que chama a atenção é que a principal fonte de informação utilizada pelo parlamentar no Projeto de Lei nº 456/2023 é um suposto “estudo de Harvard”. No rodapé da justificativa do projeto, apontado como referência bibliográfica em duas passagens do texto, um link direciona para um site de uma organização dos Estados Unidos que não tem qualquer relação com a renomada Universidade de Harvard. Na página, porém, é mencionado o título do suposto estudo, intitulado “Would Banning Firearms Reduce Murder and Suicide? A Review of International and Some Domestic Evidence”, que teria sido publicado no “Harvard Journal of Law and Policy”, em 2007.

O problema é que essa publicação, de autoria de dois ativistas pró-armas, o norte-americano Don B. Kates e o canadense Gary Mauser, foi refutada há mais de 14 anos, em junho de 2009, pelo atual diretor do Centro de Pesquisa de Controle de Lesões de Harvard e Centro de Prevenção de Violência Juvenil de Harvard. Na época, David Hemenway publicou um texto no próprio site da universidade – esse, sim, no ar até hoje –, desmentindo e classificando o suposto estudo como “desinformação”.

Depois de refutar o estudo citado por Nikolas em oito aspectos diferentes, utilizando como referência 16 artigos acadêmicos, Hemenway conclui: “é simplesmente uma polêmica parcial, geralmente enganosa, e não merece muita atenção”, disse o acadêmico em 2009.

Nada disso impediu Nikolas de basear seu projeto no artigo. Como se não bastasse a desinformação promovida pelo próprio estudo, o deputado brasileiro foi além: segundo ele, o artigo de Kates e Mauser tem o título “Contraproducência do controle de armas”. O título mencionado pelo deputado, nunca foi adotado, nem mesmo de forma abreviada – e seria “um estudo minucioso acerca da temática sobre leis de armas e violência nos Estados Unidos e Europa”, conforme define.

•        Nem ‘estudo’, nem ‘de Harvard’

Mesmo refutado há mais de uma década, o suposto “estudo de Harvard” também é usado de forma fraudulenta por defensores do movimento armamentista nos Estados Unidos. Em 2018, o projeto de jornalismo investigativo The Trace, que apura as consequências da violência por arma de fogo em território norte-americano, publicou uma detalhada checagem do material mencionado no PL de Nikolas Ferreira.

O título da reportagem diz o seguinte: “Estudo de Harvard abraçado pelos defensores do direito às armas não é nem um ‘estudo’, nem de ‘Harvard'”. O subtítulo, por sua vez, afirma: “Ao contrário das afirmações de seus autores, ele não prova que mais armas resultam em menos crimes”.

A checagem do The Trace aponta que o estudo não foi conduzido por pesquisadores vinculados à Universidade de Harvard, como Nikolas Ferreira sugere. Na verdade, Don B. Kates, que morreu em 2018, foi um advogado e ativista pró-armas apoiado pela NRA (National Rifle Association). Gary Mauser, por sua vez, é um defensor conhecido de armas de fogo no Canadá, que nunca estudou ou deu aulas em Harvard. A única relação do suposto estudo com a universidade norte-americana é que ele foi, de fato, veiculado na revista Harvard Journal of Law & Public Policy – mas a publicação não segue os padrões acadêmicos convencionais e não possui revisão por pares, tampouco ficou  hospedada no site da universidade.

Além disso, o The Trace destaca que o trabalho de Kates e Mauser não atende aos critérios mínimos de um estudo acadêmico, pois não apresenta uma análise estatística adequada. Em vez disso, os autores realizam comparações subjetivas e duvidosas de dados suspeitos, sem construir um único modelo estatístico. A checagem também expõe outras várias falhas graves no estudo. Por exemplo, os autores comparam países com condições socioeconômicas e culturais muito diferentes, o que compromete qualquer conclusão significativa sobre a eficácia do controle de armas. Além disso, eles baseiam parte de sua análise em dados incorretos de um país pequeno, Luxemburgo, e ignoram evidências que mostram que reduzir o acesso a armas de fogo salva vidas, especialmente em relação ao suicídio.

O estudo citado por Nikolas também faz referência ao trabalho de John Lott, que defende a teoria de que mais armas levam a menos crimes. No entanto, o The Trace aponta que cinco importantes críticas ao trabalho de Lott foram ignoradas ou minimizadas por Kates e Mauser.

A checagem conclui que o artigo de Kates e Mauser não pode ser considerado um estudo acadêmico válido e que suas conclusões são inconsistentes com a evidência existente – ou seja, falsos – e pretendem promover a violência.

Como aponta o The Trace, apesar de fraudulento, o artigo de Kates e Mauser inevitavelmente será recirculado repetidamente – além de aparecer no PL de Nikolas. De forma paradoxal, isso acontece porque bolsonaristas e trumpistas, lá e aqui, acreditam que ele é um “estudo de Harvard”. O curioso é que ciência, universidade e academia são, invariavelmente, o foco dos ataques da extrema direita. Como diziam os eleitores de Bolsonaro após a vitória do Trump, em 2016, “acontece nos Estados Unidos, acontece no Brasil”.

 

       STF anula trechos do decreto pró-armas de Bolsonaro

 

O Supremo Tribunal Federal (STF) invalidou, por unanimidade, a eficácia de trechos de quatro decretos editados por Jair Bolsonaro (PL) que flexibilizam as regras para aquisição e porte de armas de fogo. O julgamento, feito em plenário virtual, terminou nesta sexta-feira (30).

Entre os dispositivos estão o que afasta o controle do Comando do Exército sobre a aquisição e registro de alguns armamentos e equipamentos e o que permite o porte simultâneo de até duas armas de fogo por cidadãos.

As regras já tinham sido suspensas pela ministra Rosa Weber em 2021, e os decretos foram revogados. O tema, porém, ainda precisava ser analisado pelos demais ministros para servir como base para análise de possíveis futuros casos.

Na ocasião, Rosa afirmou que havia necessidade da análise imediata dos pedidos cautelares em razão da iminência da entrada em vigor dos decretos (60 dias após sua publicação).

As normas também diminuíam a fiscalização do Exército sobre a circulação de armas. Elas chegaram a ser criticadas no Congresso sob o argumento de que as alterações deveriam ser feitas por lei, e não por decisão individual do chefe do Executivo.

Rosa considerou que as regras são incompatíveis com o sistema de controle e fiscalização de armas instituído pelo Estatuto do Desarmamento e ultrapassam os limites do poder regulamentar atribuído ao presidente da República pela Constituição.

“Tenho por suficientemente evidenciado, pelo menos em juízo preliminar, fundado em cognição sumária inerente aos pronunciamentos judiciais cautelares, que os decretos, ao reformularem a Política Nacional de Armas, excederam aos limites constitucionais inerentes à atividade regulamentar do chefe do Poder Executivo”, disse.

Além disso, afirmou que os regulamentos executivos servem para dar aplicabilidade às leis, devendo-lhes observância ao seu espaço restrito de delegação.

“Em uma ordem jurídica, fundada nos pilares da democracia constitucional e do Estado de Direito, o respeito ao espaço legislativo é requisito de validade constitucional.”

A relatora apontou, ainda, vulneração a políticas públicas de proteção a direitos fundamentais e que é dever do Estado promover a segurança pública como corolário do direito à vida.

A ministra também revogou diversos trechos que facilitavam a compra de armas e munições dos CACs, abreviação dada aos caçadores, atiradores e colecionadores.

Rosa Weber suspendeu, por exemplo, a autorização para prática de tiro recreativo em clubes voltados para isso sem que haja registro prévio dos praticantes.

A ministra suspendeu a redução da idade mínima para praticar tiro de 18 para 14 anos e invalidou a autorização para escolas de tiros comprarem munição em quantidade ilimitada.

Em outro ponto, ela manteve a necessidade de credenciamento na Polícia Federal do psicólogo que comprova aptidão psicológica dos CACs para compra de armas, o que não era mais exigido pelo decreto de Bolsonaro.

 

Fonte: UOL/Valor Econômico/Fórum

 

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