Avanço evangélico
ameaça religiões afro em quilombos de Pernambuco
Entre
as imagens de Santa Luzia, Cosme e Damião, São Jorge, Nossa Senhora da Conceição,
Preto Velho, Iemanjá e da Cabocla Jurema, Abel José, 43 anos, sacerdote da
Umbanda, acende algumas velas, apanha suas guias de proteção e acomoda o seu
chapeu de palha na cabeça. Ele se prepara para atender quatro pessoas de
povoados vizinhos, que vieram à sua casa em busca de ajuda espiritual e para
tratar de problemas de saúde.
O
encontro acontece discretamente num quartinho construído nos fundos da garagem
da sua casa. Abel é morador do quilombo Sítio Bredos, comunidade onde vivem 135
famílias e que é uma das quatro certificadas pela Fundação Cultural Palmares
como remanescentes de quilombos no município de Betânia, no Sertão do Moxotó,
em Pernambuco. As outras três são os sítios Baixas, São Caetano e Teixeira.
Nesses
povoados, quase não há mais praticantes de religiões de matriz africana.
Solitários, Abel, Seu Joaquim Firmo (também do quilombo Bredos) e Dona Maura
Maria da Silva (do quilombo São Caetano), são os últimos umbandistas das
comunidades onde vivem. No Sítio Teixeira, já não há mais praticantes da
Umbanda.
Os
quilombos de Betânia têm sido tomados pela atividade missionária evangélica
desde a construção da primeira igreja da Assembleia de Deus no quilombo Bredos,
há aproximadamente 20 anos. De lá para cá, outras igrejas e congregações
evangélicas, pentecostais e neopentecostais, de diferentes ramificações, se
instalaram nos seus territórios. Hoje já são nove templos espalhados pelas
quatro comunidades, onde vivem aproximadamente 900 famílias.
Os
templos pertencem à Assembleia de Deus, à Adventista do Sétimo Dia e à Mundial
do Poder de Deus – do apóstolo e televangelista Valdemiro Santiago, que tem
mais de seis mil templos no Brasil e ficou conhecido por tentar vender feijões
abençoados para curar a Covid-19, durante a pandemia. Só a Assembleia de Deus,
maior denominação pentecostal do mundo, tem cinco igrejas construídas nos
quilombos de Betânia. Enquanto as igrejas evangélicas se multiplicavam dentro
dos territórios dos quilombos, as religiões de matriz africana foram perdendo
espaço. Os últimos praticantes da umbanda estão isolados e sofrem pressão para
abandonar seus rituais. Abel, Joaquim e Maura resistem.
Diferentemente
do que acontece num terreiro de umbanda, onde os seus adeptos se reúnem para
realizar as suas cerimônias coletivas, nos quilombos de Betânia os rituais são
feitos de forma individual, em cômodos escondidos nas casas. Os praticantes da
umbanda por lá temem o preconceito que sofrem por sua religião, muitas vezes
demonizada nas tradições cristãs. Dizem que são constantemente abordados por
pastores locais, que tentam evangelizá-los e pressionados até dentro de suas
famílias, onde muitos se converteram à religião evangélica.
Nenhum
deles frequenta um terreiro. Também não foram disciplinados com direcionamentos
a respeito da prática da umbanda e a sua ritualística. Tudo o que sabem sobre
suas crenças, aprenderam com os seus guias e seus ancestrais. Dona Maura Maria,
73 anos, é moradora da maior comunidade quilombola de Betânia, São Caetano, com
quase 400 famílias. Seus familiares e vizinhos evangélicos já tentaram
convertê-la algumas vezes e ela diz que considerou mudar de religião por causa
dos julgamentos que recebe. “Muita gente
não entende o que a gente faz. Não sabe do bem que a gente leva pra muitas
pessoas. Acham que é coisa ruim”, diz. “Em todo canto, tem quem use a sua fé
pra fazer o bem e fazer o mal. Isso é do ser humano. Uma vez, eu pensei em me
converter, mas a voz que eu escuto falou ‘não vá, não passe. A sua lei
[religião] também é lei de Deus’. E eu não fui. Já está com mais de 50 anos que
eu trabalho.”
No
quilombo Bredos, comunidade que tem quatro igrejas evangélicas, Abel mora com a
sua esposa e os seus dois filhos. Ele é sobrinho de dona Francisca,
ex-umbandista do quilombo Teixeira, que se converteu há pouco mais de um ano.
Abel
conta que desenvolveu a sua mediunidade ainda aos 14 anos e lamenta a conversão
da tia, mas diz que já pensou em se converter também. É que sua esposa e seus
dois filhos são evangélicos, frequentadores da Assembleia de Deus. “O pessoal
tem raiva de quem mexe com essas coisas [religiões de matriz africana]. Muito
do que as pessoas direcionaram pra mim, de julgamentos, de coisas ruins,
acabava respingando na minha esposa, na minha família. Ela passou pra lei de
crente por causa disso. E eu pensei em passar também, mas nunca fui adiante. O
povo e os meus guias não deixam”.
Acreditar que tem uma missão a cumprir na umbanda faz com que Abel
resista às pressões para que ele abandone sua religião. “Muitas pessoas vêm
aqui direto, pra eu rezar. De olhado, de ventre caído, de dor de dente, pra
parar de beber, com algum problema de saúde. Isso também é um motivo pra eu não
me converter, o que me faz ficar na religião”, conta. Os familiares dele já se
renderam aos apelos missionários evangélicos. “Minha esposa e meus filhos são
evangélicos, mas acredito que tenho uma missão aqui na terra”.
Além
das pessoas que Abel costumava receber em sua casa, há aquelas que são
encaminhadas por dona Francisca, que sucumbiu ao assédio de familiares e
vizinhos e se converteu há cerca de um ano. Ela mora no quilombo Teixeira e
ainda é procurada como umbandista, mas já não realiza mais trabalhos. “Graças a
Deus, eu recebo todo mundo, como já recebia o pessoal que costumava vir aqui”,
conta Abel.
• “Perdi o gosto das coisas. Já não faço
mais trabalho nenhum”
A
chegada dos templos evangélicos mudou a dinâmica de convivência entre religiões
nos quilombos de Betânia. Assim como em muitas comunidades rurais sertanejas,
por muito tempo, os praticantes da umbanda de lá conviviam com os praticantes
do dito catolicismo popular. Há três capelas da igreja católica presentes nos
territórios, onde se realizam novenas, encontros para rezar terços e rosários
e, esporadicamente, a celebração de missas. Agora, as comunidades passam a limitar
ainda mais o espaço para o culto e a prática de outras religiões,
principalmente as de matriz africana.
Maria
Helena dos Santos, 54 anos, quilombola líder da comunidade Bredos desde 2006 e
evangélica frequentadora da igreja Adventista do Sétimo Dia, afirma que nas
comunidades quilombolas de Betânia há lugar para a prática de qualquer
religião. “A igreja tem que entender que cada pessoa é livre para viver a sua
escolha. Nós sabemos que só existe um criador e que ele é pai de todos.
Independente de qualquer coisa, a gente tem que respeitar a vontade do outro,
independente da religião que ele queira seguir”.
Contudo,
seu Joaquim Firmo, 73 anos, diz que é comum os pastores das igrejas locais
passarem em sua porta para evangelizar. Ele deixou de fazer trabalhos de
umbanda depois que Dona Francisca, ex-umbandista do quilombo Teixeira, se
converteu. Ele conta que ela contribuiu com sua iniciação e que costumava andar
por cerca de duas horas, do quilombo Bredos até o Teixeira, para encontrá-la. “Perdi o gosto das coisas. Já não faço mais
trabalho nenhum. Se vier alguém em minha porta, eu passo um ramo de folha,
ainda rezo de olhado, mas, trabalho, não faço mais”.
Os
familiares evangélicos dele tentaram convertê-lo. Em algumas ocasiões, ele
cedeu e aceitou ir à Assembleia de Deus acompanhando uma das suas filhas. Mas
seu Joaquim diz que foi contra a sua vontade. “Meu coração não aceita. Uma vez,
pra não mentir, eu fui pra Serra Talhada, pra casa de uma filha minha que é
crente, e ela pediu pra eu me ajeitar pra ir pra igreja com ela. Eu fui, mas
não tem jeito, qual é o carneiro que não pode com sua lã? Do mesmo jeito, é com
o destino da gente. O cabra já nasce com esse negócio [mediunidade], não pode
parar de trabalhar”.
• Racismo religioso
A
liberdade de culto é um direito constitucional. Preconceito e desqualificação
de religiões afrobrasileiras é racismo religioso, segundo a Lei 14.532/23,
sancionada em janeiro deste ano, que equiparou a injúria racial ao crime de
racismo, com pena de dois a cinco anos de prisão.
No
ano passado, um levantamento da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e
Saúde (Renafro) sobre racismo religioso no Brasil entrevistou 255 lideranças
religiosas de terreiros em todo o país. Ao todo, 80% dos entrevistados
confirmaram que indivíduos das suas comunidades já tinham sofrido algum tipo de
violência, física ou verbal, por racismo religioso. Do número total, 24,4%
representam lideranças de estados do Nordeste.
Nos
quilombos de Betânia, embora não haja registros de agressões físicas a praticantes
de religiões afrobrasileiras, nem de ataques a terreiros, são comuns os relatos de insultos e de violências veladas
envolvendo as conversões de quilombolas. Os umbandistas ouvidos nesta
reportagem contaram que pastores e integrantes das igrejas evangélicas locais
fazem visitas de evangelização às casas dos quilombolas ainda não convertidos
para apresentar o evangelho. Depois da conversão, eles são aconselhados a se
afastar de tradições da sua ancestralidade que envolvem práticas religiosas que
a igreja desaprova, como por exemplo manter imagens de orixás em casa.
Doutora
em sociologia, historiadora, escritora e pesquisadora da UERJ (Universidade
Estadual do Rio de Janeiro) Carolina
Rocha, que estuda conflitos religiosos, explica que o apagamento, a perseguição
e a criminalização das tradições de matriz africana é histórica no Brasil.
“Hoje, as igrejas evangélicos são os grupos que levam o racismo religioso até
às últimas consequências com discurso de ódio, demonização e criminalização da
existência das tradições dos povos negros, mas a igreja católica também sempre
fez isso. Ela também é hostil, racista e
violenta com a população negra”.
De
acordo com a pesquisadora, o racismo e a intolerância religiosa não se
manifesta apenas no campo da crença, mas também é reproduzido por outras
estruturas de poder. “Não são só as igrejas que estão despotencializando essas
comunidades quilombolas. O Estado também é hostil e racista. O próprio sistema
judiciário, que tira filhos de suas mães ou pais porque são levados a
terreiros, é racista. A escola, espaço institucional que reforça
estereótipos, sem abertura para o conhecimento e discussão de outros saberes
religiosos além dos cristãos, é racista.”
Os
pastores das igrejas evangélicas presentes nos territórios quilombolas de
Betânia não quiseram conversar com a reportagem. Homem negro de ancestralidade
indígena que cresceu em uma família evangélica, o pastor da Igreja Batista em Pernambuco, que
integra o movimento interdenominacional “Nós na Criação”, Josias Vieira,
realiza encontros para diálogos inter-religiosos com povos tradicionais. “O meu
caminho tem sido o de fazer uma leitura do evangelho e saber de que forma isso
ajuda no diálogo inter- religioso, no diálogo com a cultura desses povos”, diz.
Para ele, “a religião apaga, intencionalmente, as características culturais e
os saberes desses povos negros e indígenas”. “Há um epistemicídio
[inferiorização e destruição de práticas e saberes da cultura de comunidades
como as quilombolas e indígenas]. Fui criado em uma família evangélica. Isso me
colocou, nos primeiros anos da minha vida, muito longe da minha ancestralidade.
Hoje, são muito caras, para mim, as manifestações culturais dos povos
tradicionais.
Fonte:
Por Géssica Amorim, da Agencia Pública
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