segunda-feira, 3 de julho de 2023

André Márcio Neves Soares: Presidente do BC - o mal-amado

No Brasil de hoje, se existe alguém que deve ser mal-amado, este é o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. É bom frisar minha expressão na condicional “deve”, pois não tenho acesso a informações particulares dele. Entretanto, só uma pessoa de mal com o país, pirracenta e atrelado a interesses privados pode ser responsável por essa ignomínia que foi a manutenção da taxa de juros em 13,73% ao ano na reunião de junho do Copom. Uma das mais altas taxa de juros do planeta, diga-se de passagem. E, no entanto, a atitude dele de afronta aos interesses do país, especialmente das camadas menos favorecidas da população brasileira que lutam diariamente pela sua sobrevivência, não foi surpresa.

Nesse sentido, penso ser oportuno fazer uma breve digressão sobre essa questão do Banco Central independente. Com efeito, apenas para as principais economias do planeta, a saber, as que compõem o G-7 e as que fazem parte do Banco Central Europeu (alguns países estão nesses dois grupos) faz algum sentido a discussão sobre ter ou não um Banco Central independente. O próprio Japão tem sofrido com esse tipo de agência, sendo ela uma das causas de uma estagnação monstro de mais de três décadas.

Para as demais, especialmente os países considerados de capitalismo tardio, um Banco Central independente não faz sentido. O motivo? Bem, são vários, e não apenas um só. Para começar, não existe evidências empíricas de que um país incrementou seu desenvolvimento econômico apenas por ter um Banco Central independente; além disso, o Banco Central independente possui a capacidade de restringir o papel empreendedor do Estado, como atualmente ocorre no Brasil, por não permitir o financiamento de seus gastos, justamente por não financiarem grandes déficits; uma outra questão que depõe contra, essa estritamente política, refere-se à questão democrática.

De fato, o cargo de presidente do Banco Central deveria ter, prioritariamente, um perfil técnico. Contudo, ele também é um cargo político, na medida em que quem o indica foi eleito pelo povo. Logo, no final das contas, é ao povo, e não aos rentistas, que o presidente do Banco Central deve satisfações.

Por conseguinte, se por um lado a independência do Banco Central pode ser boa para evitar casuísmos políticos, também pode ser muito ruim se na cadeira mais importante de lá estiver um técnico aterrado até os últimos dentes a uma ideologia contrária aos interesses do país, como no nosso caso.

Se considerarmos, hipoteticamente, que os técnicos que sentam na cadeira de presidente do Banco Central são todos de alto gabarito, eu gostaria de saber o que é mais danoso a um país como o Brasil: um excelente quadro, das mais respeitáveis universidades do mundo, mas que, ao tomar um rumo diferente em termos de política monetária da que o país realmente precisa, por convicções técnicas, por ideologia ou mesmo por mera teimosia, e, por isso, precisa (e pode) ser afastado do cargo; ou esse mesmo quadro que, por alguma das razões acima, ou por todas, adota uma política monetária contrária aos interesses soberanos do país, mas que não pode ser retirado do cargo por um mandato “imexível”?

Nesse ponto, imagino ser importante afirmar que não se trata apenas de colocar as ressalvas quanto à independência do Banco Central em relevo, como se só existissem desvantagens. É óbvio que também existem inúmeras vantagens para qualquer país ter um Banco Central independente, ao alcance de qualquer leitor que quiser ir mais a fundo. Trata-se, isso sim, de buscar entender, criticamente, a diferença entre o Banco Central independente dos EUA, por exemplo, e o Banco Central independente de algum país de economia capitalista tardia, como o Brasil.

O primeiro não precisa adentrar tanto na esfera política, na medida em que a economia do país, ainda a maior do mundo, é financiada pelo endividamento externo dos países periféricos em sua moeda, o dólar, principalmente as economias do Sul global, mas também por outras potências regionais, especialmente a segunda maior potência econômica da atualidade, a China.

Já o segundo, o Brasil, não pode (e não deve) ter um Banco Central independente, ainda não, pois é justamente a política econômica ditada pelo governo que deve ter a capacidade de alavancar todos os recursos necessários para o desenvolvimento nacional. Ademais, se o pais tem uma autarquia federal autônoma que tem total autonomia frente aos outros órgãos do público, mas que utiliza essa autonomia para maximizar ao extremo apenas o funcionamento do sistema financeiro, é cristalino o conflito de interesses.

Ora, se um pais como o Brasil, onde a classe do 1% mais rica, eu diria até mesmo a fração de classe do 0,1% mais rica, detém metade de toda a riqueza nacional, é mais que evidente que uma taxa de juros de 13,75% ao ano, sendo que o juro real (descontada a inflação) de 6,82% ao ano é o maior do mundo, inviabiliza qualquer tentativa macro e microeconômica de novos investimentos por parte das empresas e de um aumento significativo do consumo das famílias.

Pelo contrário, não à toa na semana passada a montadora alemã Volkswagen parou suas atividades de produção de novas unidades até segunda ordem. Quem viu as imagens do mar de carros estocados na fábrica ficou impressionado.[1] E não será só a Volkswagen, mas a GM também já anunciou que vai parar. Pelo lado dos consumidores menos abastados, como pagar suas dívidas para limpar seus nomes na praça e poder voltar ao comércio capitalista do consumo fetichista? Como financiar um veículo, um bem qualquer da linha branca ou mesmo um imóvel no país da maior taxa real de juros do mundo? Inviável né, cara leitor?

Realmente, a coisa está tão feia que até o Senado brasileiro, na pessoa do seu presidente Rodrigo Pacheco (PSD-MG), deu uma indireta bem robusta essa semana contra a política monetária suicida dos sabujos do mercado que estão entrincheirados no Copom.[2] Oxalá o governo Lula consiga defenestrar logo esses burocratas, autoproclamados doutores na ciência econômica, mas que são na verdade especialistas em como deixar um país à míngua, de pires não mão junto aos principais organismos internacionais de financiamento da dívida nacional – interna e externa -, como o FMI e o Banco Mundial, entre outros, como na época do avô dele, Roberto Campos, ministro da área econômica no período militar.

 

Ø  Sinais da mudança de época. Por Marcio Pochmann

 

O governo da Argentina pagou ao Fundo Monetário Internacional (FMI) em yuans (moeda chinesa), com base no Direito Especial de Saque (DES), a quantia referente a 2,7 bilhões de dólares. O acontecimento, ademais de inédito desde a criação do FMI em 1944, anuncia a profunda mudança de época em curso na Ordem Mundial.

Isso porque não se confirmou a expectativa trazida pelo fim da Guerra Fria (1947-1991) de um novo ciclo de expansão econômica com inclusão social, estabilidade política e paz. Com o desmoronamento da União Soviética, não se concretizou o anúncio de um “novo século estadunidense”, assentado no retorno aos anos de ouro do capitalismo, como na experiência passada no fim da Guerra Mundial, diante da derrota do nazifascismo.

Após quase quatro décadas da globalização liderada pelos Estados Unidos, a ilusão foi desfeita. A prevalência da unipolaridade e unilateralidade como governança neoliberal do mundo fez valer o crescente poder das altas finanças e das grandes corporações transnacionais.

Com isso, uma espécie de neocolonização financeira e extrativa da natureza foi posta em marcha no mundo com elevada expropriação do trabalho humano. Pelo Consenso de Washington (1989), por exemplo, a desindustrialização no Ocidente avançou de forma compatível com o esvaziamento da capacidade de governança interna em grande parte dos países, cada vez mais subordinados aos ditames dos donos do dinheiro.

As próprias instituições multilaterais do sistema das Nações Unidas foram enfraquecidas e desconectadas da atuação para a qual foram constituídas ainda no segundo pós-guerra mundial. Ao mesmo tempo, deu-se o reaparecimento de uma outra Divisão Internacional do Trabalho amplamente apoiada na precarização do mundo do labor.

Simultaneamente, a generalização da combinação das dívidas financeiras com a difusão das privatizações tornou os EUA uma economia de elevado custo. O resultado foi a própria desindustrialização interna, o que lhe retirou a posição de liderança industrial, comparável ao declínio do Reino Unido ocorrido desde o final do século 19.

Assim, o encerramento da fase de expansão produtiva foi sucedido pelo ciclo de ganhos financeiros (juros, lucros de investimentos estrangeiros e créditos dos bancos centrais a inflar ganhos de capital). Sem gerar riqueza assentada no trabalho pelo complexo industrial, coube à globalização unipolar e unilateral operar com a forma financeira neocolonial em paralelo ao uso recorrente de forças militares e dos esquemas de cancelamentos e sanções econômicas.

Para além das questões econômicas, financeiras e comerciais referentes à gestão conjuntural e emergencial no conjunto dos países da atualidade, emergiu como centralidade a estruturação de uma nova Divisão Internacional do Trabalho em plena Era Digital. O avanço do processo de digitalização das economias e sociedades conduz à separação do mundo em dois agrupamentos distintos de países.

De um lado, as nações que produzem e exportam bens e serviços digitais. De outro, os países que dependem fundamentalmente das importações de bens e serviços digitais, pois os consomem sem produzi-los internamente.

Na maior parte das vezes, as economias importadoras de bens e serviços digitais terminam financiando o consumo moderno com a produção e exportação de commodities minerais e vegetais. Isso muitas vezes é combinado à pobreza e baixos salários de ampla parcela da população com a intensa agressão ao meio ambiente.

Por ser de maior valor agregado e conteúdo tecnológico, a produção de bens e serviços digitais tem concedido aos países exportadores maiores vantagens comparativas no comércio internacional. Isso tem ocorrido, muitas vezes, devido à deterioração dos termos de troca que impulsiona o deslocamento de renda e riqueza gerada pela estrutura produtiva primário-exportadora dos países importadores aos exportadores de bens e serviços digitais.

Com isso, o curso da Divisão Internacional do Trabalho se assenta no retomo às condições de produção e reprodução do subdesenvolvimento. Pelo deslocamento do antigo centro dinâmico do Ocidente para o Oriente, acontece a reconfiguração periférica dos países em novas bases, permeada pela desigualdade econômica e pela emergência climática.

Nos dias de hoje, contudo, a prevalência do enorme desequilíbrio relacionado à repartição da renda, riqueza e poder se relaciona ao avanço da própria desordem em dimensão global. O seu enfrentamento, ademais de urgente, precisa ocorrer em nova base geopolítica e econômica mundial.

Isso dificilmente ocorrerá de forma espontânea. A redefinição geopolítica é parte das tarefas que o BRICS pode e deve perfeitamente conduzir neste final do primeiro quarto do século 21. Para tanto, o desenvolvimento deve ser alcançado sem que se reproduza de forma desigualmente combinada.

 

Fonte: A Terra é Redonda/Terapia Política

 

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