Ministro
de Lula ressuscita projeto bolsonarista que enfraquece Petrobras e favorece
bilionário
O
ministro de Minas e Energia do governo Lula, Alexandre Silveira, resolveu
trabalhar pela implementação de um projeto idealizado durante o governo de Jair
Bolsonaro para obrigar a Petrobras a ceder parte do mercado de gás a seus
concorrentes privados.
A
proposta pode beneficiar diretamente o empresário Rubens Ometto, dono da Cosan,
maior doador eleitoral do partido de Silveira, o PSD. A Cosan tem empresas que
atuam na distribuição de gás, na produção de açúcar e álcool, de lubrificantes,
na gestão de terras e em logística.
O
projeto é conhecido como Gas Release – ou Liberação do Gás, em
tradução livre. Por meio dele, a Petrobras seria forçada a leiloar parte do gás
que ela extrai de seus poços para que outras empresas pudessem o arrematar a
preços abaixo do mercado e o revender a seus consumidores, lucrando com a
operação.
Essa
ideia entrou na pauta política nacional em julho de 2019, quando o ainda
recém-formado governo Bolsonaro lançou o Programa Novo Mercado de Gás.
Naquela
época, o então super-ministro da Economia, Paulo Guedes, via a Petrobras como
culpada pelo alto preço do gás e outros derivados no país. Ele decidiu agir
para que a estatal privatizasse parte de seus negócios, vendendo refinarias,
distribuidoras de combustíveis e infraestrutura para o transporte desses
produtos.
Para
Guedes, faltava concorrência na cadeia nacional de petróleo e gás. Reduzir –
mesmo que à força – a participação da Petrobras daria fôlego para que outras
empresas entrassem no negócio. Na cabeça de Guedes, isso derrubaria os custos.
Criaria o que ele batizou de “choque de energia barata” no Brasil.
“Daqui
a dois anos, o botijão de gás vai chegar pela metade do preço à casa do
trabalhador brasileiro”, propagandeava Guedes, na época em que ele
trabalhava pela criação de um novo marco legal para o setor. O projeto previa,
entre outras coisas, o Gas Release.
No
Congresso Nacional dominado pela direita, as palavras de Guedes soaram como
música. No início de 2021, os parlamentares aprovaram um projeto de lei baseado
nas ideias do ministro. Em abril, Bolsonaro transformou esse projeto em
lei.
Naquele
mês, um botijão de 13 kg de gás custava, em média, R$ 85 no país (cerca de R$
102 hoje, em valores corrigidos pela inflação), segundo a Agência Nacional do
Petróleo, a ANP. Bolsonaro deixou a Presidência em dezembro de 2022, o mesmo
botijão já custava mais de R$ 109 (cerca de R$ 114,40 atualmente, em valores
corrigidos).
O
fracasso retumbante da iniciativa, entretanto, não fez com que ela fosse
abandonada por bolsonaristas e outros políticos da direita. Para eles, o tal
novo marco legal não surtiu os efeitos esperados porque nunca foi completamente
implementado. O Gas Release, por exemplo, jamais saiu do papel por
falta de regulamentação. A queda de preços prometida por Guedes não veio, em
parte, por conta disso.
A
eleição de Lula, no entanto, criou um obstáculo para o avanço da proposta. O
petista contou com apoio massivo de petroleiros em sua campanha
de 2022 e prometeu enterrar qualquer iniciativa de enfraquecimento da
Petrobras.
Desde
que Lula assumiu, seu governo chegou a cogitar que a estatal
recomprasse refinarias vendidas no governo Bolsonaro para reverter parte das
medidas tomadas na gestão anterior.
Obrigar
a Petrobras a se desfazer do gás que ela extrai para beneficiar suas
concorrentes parecia impossível, principalmente considerando que a receita que
a estatal obtém vendendo o derivado é vista hoje como fundamental para que ela
possa realizar os investimentos que o governo tanto deseja para aquecer a
economia.
Eis,
então, que surge Silveira, o ex-senador do PSD nomeado pelo próprio Lula para o
Ministério de Minas e Energia, o MME.
- Novo ministro,
velhas ideias
Silveira
é um comerciante, advogado e ex-delegado de polícia mineiro que entrou para a
política em 2002. Em 2011, ele ajudou a fundar o Partido Social Democrático, o
PSD, presidido por Gilberto Kassab. Em 2022, virou senador após Antonio
Anastasia deixar o Congresso para ocupar uma vaga no Tribunal de Contas da
União, o TCU.
No
mesmo ano, Lula foi eleito com o apoio de uma frente ampla, da qual fizeram
parte membros do PSD. Após a eleição, Silveira foi convidado a integrar a
equipe da transição. Enquanto isso, no Senado, relatou a chamada PEC da
Transição, que abriu espaço extraordinário para gastos do novo governo. Em
janeiro de 2023, virou ministro.
Logo
após chegar ao ministério, tentou nomear Bruno Eustáquio como
seu secretário-executivo. Eustáquio havia ocupado cargos no governo Bolsonaro e
tido papel fundamental na privatização da Eletrobras, outra medida que Lula
prometera reavaliar se ganhasse a eleição. Eustáquio só não virou o número 2 de
Silveira no MME porque acabou tendo seu nome vetado pela Casa Civil, comandada
pelo petista Rui Costa.
Silveira,
porém, não se distanciou completamente dos bolsonaristas. Em outubro do ano
passado, ele recebeu em seu gabinete o senador do
Laércio Oliveira, do PP do Sergipe.
Durante
a campanha de 2022, Laércio chegou a desfilar em Aracaju
“escoltando” Bolsonaro. Em 2023, o senador declarou publicamente ser
opositor do governo Lula. Mesmo assim, conseguiu uma audiência com Silveira
para fazer com que o ministro declarasse publicamente ser favorável à inclusão
de tópicos do Gas Release numa emenda a um projeto de lei
relatado pelo próprio Laércio no Senado.
A
manobra de Silveira criou uma crise na casa legislativa. O projeto no qual
o Gas Release acabou incluído era o Programa de Aceleração da
Transição Energética, o Paten, tema consensual entre congressistas – ao
contrário de obrigar a Petrobras a vender seu gás a concorrentes.
A
Federação Única dos Petroleiros, a FUP, entidade que apoia o governo Lula, foi
a público denunciar as manobras de Laércio para
o avanço do Gas Release. O senador Rogério Carvalho, do PT do
Sergipe, encampou os argumentos dos
petroleiros e
acabou contrariando a posição do ministro do governo do seu partido.
Diante do impasse, Laércio desistiu de incluir o Gas Release no
Paten. Sem ele, o projeto acabou aprovado no Congresso e
sancionado por Lula. Silveira, porém, decidiu insistir.
Assim
que Laércio reconheceu sua derrota no Congresso, o ministro enviou um ofício à ANP para que a
agência regulamentasse o Gas Release citando a lei do gás de
Bolsonaro.
Segundo
Silveira, essa lei, de 2021, previa que a ANP atuasse para que o projeto saísse
do papel, o que de fato não aconteceu. O ministro pediu providência da agência
reguladora, que é um órgão independente do governo.
Escreveu
em seu ofício que “o Gas Release surge como uma demanda
relevante de diferentes agentes do setor — incluindo indústrias, produtores
independentes, comercializadores e distribuidores e demais produtores
nacionais” e que, portanto, precisa ser viabilizado.
O Intercept
Brasil pediu que o Ministério de Minas e Energia nominasse que agentes do
mercado estão interessados no projeto. O órgão não detalhou tal informação.
Para quem acompanha essa discussão de perto, Rubens Ometto está por trás da
iniciativa de Silveira.
- A salvação de um
bilionário
Ometto
é um megaempresário com negócios muito influenciados por decisões de governo. O
grupo Cosan é dono da Rumo Logística, por exemplo, empresa de transporte
ferroviário que opera em linhas concedidas pelo poder público. É dono também da
Raízen, que produz etanol, cujo preço é influenciado por impostos ou incentivos
governamentais.
Por
conta disso, o bilionário nunca foi tímido em fazer doações eleitorais. Em
2024, ele chegou a sua quarta eleição como maior doador do país para candidatos
e partidos.
Só em
2018, Ometto doou R$ 7,5 milhões. Um dos maiores beneficiados foi o ex-ministro
chefe da Casa Civil de Bolsonaro, Onyx Lorenzoni. Ele recebeu R$ 200 mil.
Durante
o governo Bolsonaro, a Cosan de Ometto comprou a Gaspetro,
ex-distribuidora de gás da Petrobras. O negócio foi realizado já considerando
a convicção de Guedes de que a Petrobras deveria vender parte de seus ativos
para que o setor privado os assumisse em prol da concorrência.
A venda
teve polêmica. A ANP chegou a tentar barrá-la por achar que
ela poderia ser prejudicial à concorrência no setor de gás. O Conselho
Administrativo de Defesa Econômica, o Cade, acabou o autorizando sem
restrições.
Com a
compra e outras aquisições, a Cosan criou uma das maiores distribuidoras de gás
do Brasil, a Compass. Sozinha, ela controla 26 mil km de rede para transporte
do combustível espalhadas pelo Brasil.
A
Compass, no entanto, não produz gás. Compra boa parte do que distribui da
petroleira francesa Total a preços de mercado. Caso a Petrobras seja obrigada a
leiloar parte de sua produção no mercado nacional, a empresa de Ometto teria a
chance de adquirir esse produto em condições mais favoráveis para revendê-lo
com mais lucro.
“A
Cosan possui uma posição estratégica no mercado de gás natural devido à
aquisição da participação da Petrobras na Gaspetro. Essa aquisição deu controle
sobre uma parte significativa das distribuidoras de gás do país, o que torna o
grupo diretamente interessado em reduzir os custos do gás comprado da
Petrobras”, pontua Kamaiaji Castor, economista, doutor pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro, e estudioso do mercado de gás.
A Cosan de Ometto, entretanto, anda mal. Em 2024, o grupo
teve um prejuízo de R$ 9,4 bilhões. No noticiário econômico, circulam notícias de que o grupo
estuda vender parte de seu patrimônio para recuperar sua rentabilidade.
A
crise, no entanto, não impediu que Ometto doasse outros R$ 19 milhões na
eleição de 2024. Os maiores beneficiados foram Fuad Noman, reeleito pelo PSD
prefeito de Belo Horizonte, cidade natal do ministro Silveira, e o diretório
nacional do partido. Eles receberam R$ 2 milhões e R$ 1 milhões de Ometto,
respectivamente.
A Cosan
declarou que “as doações eleitorais feitas por Rubens Ometto foram realizadas
em caráter pessoal e seguiram as regras estabelecidas pelo Tribunal Superior
Eleitoral e demais normas aplicáveis”. O grupo não comentou a eventual
influência do Gas Release sobre seus negócios e nem a relação
de Ometto com o PSD, de Silveira.
Silveira
também foi questionado pelo Intercept sobre sua relação com Ometto, mas não
respondeu.
- Governo dividido
e Petrobras calada
O
Intercept também procurou a Petrobras para saber o que a estatal acha do Gas
Release. A empresa não se pronunciou. Especialistas no mercado de
petróleo e gás acham que ela seria a prejudicada, como já foi quando acabou
levada pelo governo Bolsonaro a se desfazer de seu patrimônio.
“A
única prejudicada com isso é a Petrobras”, diz Eric Gil Dantas, do Instituto
Brasileiro de Estudos Políticos e Sociais, o Ibeps. Segundo ele, a estatal
produz cerca de 62% do gás do país. O Gas Release forçaria ela
a leiloar 12 pontos percentuais dessa produção, já que limitaria a 50% a
predominância de uma só empresa sobre o mercado.
Mahatma
Santos, diretor técnico do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, o
Ineep, também vê no Gas Release uma tentativa de tolher a
Petrobras em prol de interesses privados. “O projeto anuncia um objetivo de
ampliar a concorrência no setor do gás e rebaixar os preços. No entanto, esse
suposto aumento da concorrência, mais uma vez, não está baseado no aumento de
investimento de novos atores (nacionais ou internacionais) no segmento, mas na
restrição da participação da Petrobras no mercado de gás no Brasil.”
O Ineep
foi criado pela FUP. O instituto é contra o Gas Release. Defende o
fortalecimento da Petrobras. “Não acreditamos que essa seja a melhor opção. O
ideal seria fortalecer a estatal, um caminho público, para garantir que o
Estado tenha maior capacidade de regulação e atuação nesse setor estratégico
para ‘neoindustrialização’ do país e descarbonização da industrial nacional”,
afirma Santos, lembrando que gás é visto como fonte de energia estratégica para
o setor industrial.
Dantas
e Santos veem a posição de Silveira sobre o Gas Release como, no
mínimo, contraditória. O ministro chegou a defender publicamente a recompra de
refinarias privatizadas pela Petrobras. Ao mesmo tempo, age para, na avaliação
deles, prejudicar a empresa.
“A
posição de Silveira reforça o caráter de um governo de frente ampla, que, por
sua natureza, apresenta contradições internas”, disse Santos.
O
Intercept procurou o senador Rogério Carvalho, hoje líder do PT no Senado, e a
Secretaria de Relações Institucionais, órgão que organiza a relação do governo
com o Congresso, para entender a posição de Silveira acerca de Gas
Release. Nem Carvalho nem a SRI se pronunciaram sobre o assunto.
Fonte:
Por Vinicius Konchinski, em The Intercept
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