Luiz Marques: ‘A democracia cativa’
O cientista político
italiano Giovanni Sartori, no livro Teoria da democracia, diz: “A
eficiência da democracia depende antes de tudo e sobretudo da eficiência e da
habilidade de seus dirigentes”. O entendimento assenta-se na presumível
minoridade intelectual do povo. O cidadão é “incompetente” para ditar rumos à
cidade. Depreende-se então que a “profissionalização” é inevitável na
sociedade. A política se converte, de vocação, em “carreira” com aposentadoria
baseada no tempo de mandato. Tal é a matriz teórica da representação ocidental;
excetuando a Suécia, onde os deputados não têm assessores, dormem em
quitinetes, pagam pelo cafezinho e não podem aumentar os seus salários.
A Queda do Muro de
Berlim cimenta, de um lado, o liberalismo político e, de outro, a economia de
mercado na condição de teto intransponível ao progresso humano. Na terminologia
popularizada depois de 1989, esse é o “fim da história”. Uma conclusão precipitada,
tendo em vista a ascensão da extrema direita que aproveita as oportunidades no
Estado de direito para colonizar a democracia e impor um regime de exceção. A
fórceps, aos moldes da desventura argentina, o “anarcocapitalismo” (o prefixo é
injusto) procura garantir uma desregulamentação estatal para maximizar a
acumulação.
A infraestrutura
sacraliza o livre mercado e o laissez-faire; porém, a
superestrutura ainda pulsa. Se a economia está congelada; o futuro se mantém em
suspenso na política. A seleção dos “melhores” para ocupar os postos de
destaque no Executivo e no Legislativo faz a roda da incerteza girar. As
rivalidades ideológicas entre competidores a cada quadriênio não arrefeceram;
forjaram inimigos.
Na acepção de Robert
Dahl, a “poliarquia” (governo de muitos) explica a autonomia da política. “A
democracia é um sistema em que os dirigentes escutam, mais ou menos, o desejo
dos liderados e pode funcionar com um nível fraco de participação dos cidadãos”.
Não supõe uma arregimentação forte. Aliás, quanto menos intromissão houver,
mais facilidade as “elites” têm de deliberar. Mesmo a inspiradora democracia
participativa das ágoras em Atenas, no século V a.C., abrange
apenas uma pequena minoria da população (demos) em causa própria. Entre
nós, a situação guarda semelhanças.
Em A
democracia e seus críticos, para a Conference for the Study of
Political Thought uma obra icônica da doutrina liberal e/ou
democrática, o cientista político estadunidense avalia a democracia como “um
processo sem igual para a tomada de decisões coletivas vinculativas”. Uma
entidade com laços “no conjunto das instituições e práticas políticas, um corpo
particular de direitos, uma ordem socioeconômica, um sistema que assegura
certos resultados vantajosos”. O problema reside em que a “substância” é apropriada
por uns poucos, alertam os atentos defensores do “governo do povo”.
Via de regra, só
indivíduos politicamente ativos são consultados sobre as decisões, com o
agravante de pertencer às categorias sociais privilegiadas. A maioria queda na
passividade, o que vira uma espécie de “calcanhar de Aquiles” do modelo – a
brecha para o questionamento de sua legitimidade. Vide os juros de lesa-pátria
da Taxa Selic do Banco Central, no Brasil. Nos escritórios da avenida
Brigadeiro Faria Lima, o poderoso epicentro comercial e financeiro de São
Paulo, os bacanas sabem o porquê. A trama é urdida na mesa, aos olhos de velhos
comensais. Os “segredos de Estado” são um tabu para as comunidades periféricas.
A desinformação é consumida pelos pobres e remediados.
·
A perfeição é uma meta
No quarentão Partido
dos Trabalhadores, os lutadores por mudanças na organização social eram
assertivos – “trabalhador não vota em patrão”. No entanto, a agrura que
desconjunta a constelação do trabalho na produção econômica e a importância
assumida por temas ligados mais à reprodução social acarretam novas
incumbências: o combate aos efeitos da necropolítica, a disseminação do
desemprego, o desalento, a fome. O discurso absorve a linguagem abstrata para
se aproximar dos setores sem experiência sindical e identidade classista.
Atendo-se à propaganda no rádio e televisão, o PT não evoca a radicalidade
renovadora das origens, conquanto integre a trincheira resiliente dos oprimidos
e dos explorados. O vermelho recebe nuances de outras cores, necessidades e desafios.
Entre as sociedades
democráticas, com certeza, os Estados Unidos são mestres na arte de perpetuar
as classes dirigentes no topo da pirâmide. Os embates presidenciais são
montados para impedir o sufrágio universal, desde a saga dos líderes das
colônias (seus “pais fundadores”) para elaborar a Declaração de Independência
em 1776 e a Constituição em 1787. Um filtro elitista unge ou recusa os
“aspirantes” à Casa Branca, nos Partidos Democrata e Republicano. Ao barrar os
aventureiros, a vigilância dá estabilidade interna para a hegemonia
imperialista. Donald Trump fura o bloqueio.
A derrota de Hillary
Clinton, em 2018, apesar de haver conquistado as cédulas majoritárias, deve-se
à aritmética confederativa dos delegados nas prévias. O princípio de uma
cabeça, um voto não vale na grande potência do Norte para auferir a vontade
geral; por paradoxal e aristocrático que isso soe em uma nação definida como
República. A paradigmática (sic) democracia falha em um quesito básico e
consensual. Qual a canção de Gilberto Gil, Meio-de-campo: “A
perfeição é uma meta / defendida pelo goleiro / que joga na seleção / e eu não
sou Pelé / se muito for / eu sou um Tostão”.
Os marqueteiros
conhecem a arquitetura do poder e os mecanismos decisórios modernos. O roteiro
acha-se no romance de Tomasi di Lampedusa; tido o primeiro best-seller mundial,
com 250.000 exemplares vendidos nos meses seguintes à edição, em 1958. O atual
figurino do marketing político reforça a ideia de
“competência” (técnica), de “eficácia” (rendimento), de “liderança”
(persuasão), de “habilidade” (diálogo amplo) e de “dissimulação” como se
aprende com a leitura de O leopardo.
Os valores destacados
coincidem com o que se exige do gerente de loja em um Shopping center,
na entrevista para contratação. O mercado prognostica inclusive o perfil
psicossocial a ser selecionado para a arena de disputa política. Vultuosos
recursos potencializam o sucesso nas urnas, não uma compreensão programática. A
polissemia dos sentidos subjaz na repetição de conceitos idênticos. As siglas
parecem oferecer sempre mais do mesmo. O lusco-fusco oculta a alteridade. Where’s
Wally?
·
Retrocesso
civilizacional
Todos compartilham os
ideais do “desenvolvimento”, da “segurança”, da “educação”, da “saúde”, do
“aperfeiçoamento dos serviços públicos”, da “geração de empregos com
distribuição de renda”, da “liberdade de imprensa”, dos “preceitos
constitucionais”. Na democracia de massas, as palavras se adaptam a
interpretações contraditórias. Diferenciações no conteúdo são domesticadas na
forma. Deliberadamente a finalidade não é propiciar qualquer discernimento
cognitivo; é realimentar a pluralidade de manifestações que por caminhos
transversos, ou não, deixem intacto o status quo.
Para o extremista, a
solução é travestir-se de outsider sistêmico, romper a
civilidade e desqualificar a circunspeção dos oponentes sob a aparente
normalidade institucional, ensina Olavo de Carvalho, o guru do bolsonarismo,
em O imbecil coletivo. Ao exacerbar as emoções com trejeitos e
deboches, os critérios racionais de comparação pegam carona no foguete de Elon
Musk, e vão para o espaço. No impeachment da presidenta
honesta, o miliciano homenageia um torturador da ditadura militar, “o terror de
Dilma Rousseff”. O acinte testemunha o grau de degeneração ética a que levou o
golpe.
Hoje, a convite
indecente da mídia corporativa, o coach espetaculariza
momentos eleitorais; zera os projetos partidários e, impune, desfila a
meritocracia no cativeiro nevrálgico da política brasileira. Prevalece o gozo
sádico. A dignidade é redimida na cadeirada, que une a torcida do Corinthians e
a do Palmeiras na comemoração uníssona de um gol, literalmente, “de placa”. A
efeméride recuperou o respeito ao protocolo do debate no confronto de posições.
Ninguém frequenta igreja, sem rezar.
Para o progressista, a
solução está em superar a percepção empírica para transcender a armadilha que
confina a crítica à clausura do establishment. Os postulantes a
“gestores”, para usar o léxico neoliberal que anula a dimensão política das
escolhas, empatam nas intenções; o horário eleitoral desempata. A decifração da
demagogia ideologiza e politiza o enfrentamento, contrapondo a sua substância autoritária
e totalitária ao princípio organizativo democrático de sociedade e cidade.
Não à toa, em 2016,
o Dictionary Oxford indicou a “pós-verdade” como o símbolo de
nossa era. O jornalista britânico Matthew D’Ancona classifica a “guerra contra
os fatos” e “a difusão contagiosa do relativismo pernicioso disfarçado de
ceticismo legítimo” como provas do “valor declinante da verdade como moeda de
reserva”. O retrocesso civilizacional navega na crise da democracia. Que a
derrubada da estátua do negacionismo não demore, e as imagens invadam os bunkers da
reação, os tradicionais e os digitais. “E a chuva amanhã corra de baixo para
cima”, profetiza o poeta alemão.
·
Democratizar o
processo
No Rio Grande do Sul,
o Conselho de Reconstrução formado pelo governador após as enchentes exclui as
associações ambientalistas. O prefeito de Porto Alegre contrata empresas
estrangeiras (da Holanda, no caso) para estudos preventivos cujas respostas já
foram dadas pela inteligência local. A submissão ao eurocentrismo é vergonhosa.
O ditado se confirma, “santo de casa não faz milagre”. A decolonização tem uma
longa estrada a percorrer, para que a brasilidade respire autodeterminação.
Para “eles”, Eduardo
Leite e Sebastião Melo respectivamente, não importa a opinião dos moradores
mergulhados nos bairros do sinistro; ou a expertise dos funcionários do
Departamento de Esgotos Pluviais (DEP), extinto para acelerar a privatização do
saneamento básico; ou o conhecimento do Instituto de Pesquisas Hídricas
(IPH/UFRGS) sobre o Guaíba (em tupi-guarani, Gua-ybe é a “baia
de todas as águas”). O que importa é servir o capital financeiro, imobiliário e
agrícola. Não militam pela abolição das hierarquias, mas por um posicionamento
superior na escala social. A intervenção modelar do governo federal sai em
notas de rodapé obscuras, longe das manchetes e dos aplausos.
Para “nós”, em
contrapartida, o povo não deve ser tratado como um objeto ou uma massa inepta,
senão sujeito das ações reconstrutivas. O empoderamento popular não nega a
ciência e a técnica; e sim incorpora-as ao exercício político da soberania dos
comuns, que rejeita transformar todas, todos e todes em mercadorias. Sem a
participação social, a felicidade pública é uma caricatura. A pedra de toque é
a democratização do processo de decisão para desprivatizar o poder e derrotar a
concepção de governabilidade, equiparada a um bisturi para cortar a alma e
administrar pessoas como coisas.
Os responsáveis pela
destruição patrimonial e as sequelas psíquicas do suplício são poupados da
execração merecida, por interesse das elites vira-latas que, de outra maneira,
fariam um escândalo da tragédia que soma duzentos óbitos nos municípios gaúchos,
afora os corpos desaparecidos. A cobertura midiática da hecatombe climática
nunca menciona os mortos. Em silêncio, os inocentes esperam por justiça. A
omissão de notícias é a variante sutil da manipulação grosseira e cínica.
As contribuições
antiecológicas para o desequilíbrio ambiental e a eliminação dos biomas são
empurradas para trás da fumaça tóxica, do jornalismo venal, para não atrapalhar
a alienação. As finanças, as megaconstrutoras e o agronegócio extrativista são
donos das informações, e das fake news. A cumplicidade dos
governantes é uma vergonha. A reforma moral e cultural do país depende da luta
ideológica pela emancipação das consciências subjugadas e subestimadas pelo
pensamento conservador, na democracia cativa. O lema do Iluminismo cobra
responsabilidades – “Ouse saber”.
No “pseudomundo”, a
unidade do real é fragmentada em esferas paralelas. O mentiroso mente para si
próprio e se orgulha de uma Weltanschauung (cosmovisão)
invertida, que ora destila o ódio, ora a sedução extorsiva da miséria. Vê-se na
loteria do “Familião”, no domingo global, que consagra um fetiche para
os indivíduos se libertarem da pobreza, o dinheiro; não o engajamento em
movimento social ou partido político. O “valor como espetáculo” exprime a pura
essência do rentismo, o não trabalho. É hora de botar o bloco na rua, com garra
e esperança. O lema agora é – “Ouse vencer”.
Fonte: A Terra é
Redonda