Paulo Kliass: A economia e as torcidas uniformizadas
Às vésperas de completar o 7º mês de seu terceiro
mandato, o presidente Lula tem conseguido apresentar uma série de resultados
positivos para um balanço inicial. Em primeiro lugar, é fundamental ressaltar a
importante vitória de superação das várias tentativas de golpe militar que a
extrema direita e a cúpula das Forças Armadas vinham tentando articular em
nosso país, desde antes mesmo da realização do pleito em outubro passado. A
reação ao intento terrorista de 8 de janeiro talvez tenha sido a resposta mais
expressiva que o governo operou para impedir o golpe em marcha e isolar
politicamente as forças mancomunadas com o projeto fascista.
Por outro lado, o governo tem apresentado quase que
diariamente novidades de reafirmação do Estado democrático e de recuperação das
políticas públicas voltadas à maioria da população. Este tem sido o movimento
em diferentes áreas das políticas sociais, onde as novas equipes ministeriais
têm apresentado programas, projetos e soluções para setores como saúde,
assistência social, educação, previdência social, meio ambiente, ciência,
tecnologia e inovação, segurança pública, esportes, cultura e outros.
Mas a economia segue sendo o domínio em que as
questões ainda não tomaram o rumo tão aguardado desde antes mesmo da transição
do final do ano passado. As decisões mais relevantes de política monetária, por
exemplo, se mantêm sequestradas pelo presidente do Banco Central (BC) e pela
maioria de sua diretoria. Graças à independência do órgão, votada pelo
Congresso Nacional ainda em 2021, Lula segue impossibilitado de contar com um
Comitê Política Monetária (Copom) que tivesse promovido a tão aguardada quanto
necessária redução da Selic desde que o novo programa de governo foi
reconhecido há 10 meses atrás. Pelo contrário, os diretores nomeados por
Bolsonaro patrocinam uma verdadeira sabotagem às promessas de Lula de realizar
40 anos em 4.
·
Lula e a economia: livrar-se
da austeridade
No comando da economia, o ministro da Fazenda
mantém uma estratégia bastante conservadora quanto às mudanças esperadas para
viabilizar a recuperação do protagonismo do Estado. Essa foi a estratégia desde
a PEC da Transição, passando pelo arcabouço fiscal e terminando na Reforma
Tributária. Em todas estas etapas as propostas apresentadas pelo governo
priorizaram o atendimento dos interesses do sistema financeiro, reforçando a
natureza da austeridade fiscal de novo tipo e relegando a um segundo plano a
necessidade de introduzir medidas de justiça tributária. Assim, Lula deixa de
contar a seu favor com o poderoso instrumento da política fiscal expansionista,
elemento fundamental para uma retomada do crescimento das atividades na
perspectiva do desenvolvimento social e econômico com redução das
desigualdades.
No entanto, mesmo assim alguns sinais positivos
surgem no horizonte dos preços. Os índices oficiais já apresentam tendência de
queda no curto prazo. No entanto, esse movimento não guarda quase nenhuma
relação com a estratégia adotada pela ortodoxia do financismo encastelada no
interior do BC. O acumulado de 12 meses do IPCA chegou a se aproximar de 6% na
virada do ano, mas agora já está em torno de 3%. Roberto Campos Neto,
presidente do BC, gosta de encher a boca para proferir autoelogios. Segundo a
abordagem monetarista pela qual se guia, tal queda nos preços seria o resultado
da correta dosagem da política monetária, que mantém até o presente momento a
taxa referencial de juros nos níveis estratosféricos de 13,75% anuais.
·
A torcida do financismo pró
Roberto Campos Neto
Ocorre que a realidade da dinâmica da economia parece
apontar em outra direção. O processo que atravessamos atualmente não se
enquadra nos casos típicos de uma inflação de demanda, como caracterizada nos
manuais de macroeconomia. Aumentar a taxa Selic de 2% para o patamar atual,
como fez o Copom em pouco mais de um ano, provoca recessão, aumenta o
desemprego e impacta as despesas orçamentárias. Mas não faz nem coceguinhas nos
índices de inflação, pois o seu crescimento deriva de setores, bens e serviços
que respondem a movimentos como o preço do petróleo determinado pela Opep, as
cotações das “commodities” no mercado internacional, as tarifas de energia
elétrica estabelecidas pela ANEEL e os preços de produtos agrícolas internos
sujeitos a variações sazonais ou impactos climáticos.
A tendência mais recente de redução da inflação
ocorre também nos países mais ricos, como demonstram as tabelas abaixo de
Estados Unidos e União Europeia. São fenômenos semelhantes ao nosso, os
chamados casos de inflação de oferta. Não foi a manutenção da Selic nas
estrelas o responsável pela recente redução nas taxas de inflação na economia
brasileira.
·
A torcida pró-Lula olhando
para o ano passado
Por outro lado, é igualmente necessário reconhecer
que nem todas as melhorias de melhoria no cenário econômico devem-se a
inciativas tomadas pelo governo recém-empossado. Mais uma vez, a dinâmica mais
geral da economia internacional tem colaborado para a elevação nos preços das
“commodities” no mercado global. Esse processo tem seus problemas pela elevação
de preços de alguns produtos importados pelo Brasil, a exemplo do trigo. No
entanto, de uma formal geral, essa recuperação de preços da soja, das carnes e
do minério de ferro, por exemplo, provoca um impacto bastante positivo sobre
nossas exportações. Mas isso não guarda nenhuma relação com a chegada de Lula
ao Palácio do Planalto, à exceção da confirmação de sua tão comentada sorte.
Os gráficos abaixo evidenciam que os preços atuais
estão voltando ao patamar de 2015. Mas ainda muito abaixo dos níveis de 2003/8,
quando a acumulação de saldos sucessivos na Balança Comercial permitiu ao
Brasil acumular as reservas internacionais. Elas estão na faixa de US$ 370
bilhões e conferem a necessária segurança e autonomia em relação à dinâmica
especulativa do sistema financeiro internacional.
Outro fato relevante refere-se à produção agrícola,
com destaque para a safra recorde de grãos a ser colhida em 2023. As
estimativas iniciais divulgadas pelo IBGE apontam para um total de 305 milhões
de toneladas, representando um importante crescimento em relação à média dos
anos anteriores. O gráfico abaixo nos mostra a evolução dos dados desde 2006. A
serem confirmadas essas informações, o total do presente ano terá sido quase 3
vezes maior do que o do início do período, que registra 117 milhões de
toneladas. No entanto, apesar de toda a disputa de narrativa em torno das boas
notícias a serem anunciadas por Lula, é inegável que as condições dadas para
tal safra não podem ser creditadas a seu terceiro mandato. Trata-se de um
resultado aportado por condições climáticas, plantio e financiamento que foram
iniciadas ainda no governo anterior.
O desempenho do setor exportador como um todo
também apresentou valores recordes em 2022. Tendo em vista o papel relevante
ocupado pelas “commodities” na composição das nossas exportações, é
compreensível que o conjunto ofereça um quadro semelhante. Afinal, dos 15
principais itens da pauta, 14 pertencem a esse grupo de bens primários de baixo
valor agregado. O gráfico abaixo ilustra o movimento observado para o total das
vendas ao setor externo desde 1997. O primeiro ponto de mudança simbólico foi
2005, quando pela primeira vez na história foi ultrapassado o patamar de US$
100 bi. Em seguida, a nova marca expressiva é alcançada em 2010 com US$ 200 bi.
Finalmente no ano passado a faixa da centena seguinte foi superada, com
exportações totais de US$ 334 bi em 2022.
·
Superar as amarras e se
orientar para o desenvolvimento
As notícias boas na economia são sempre bem-vindas.
No entanto é importante não cair no conto de sereia dos representantes do
sistema financeiro, que buscam vender a imagem de que tudo se deve ao coquetel
do austericídio que eles sempre sugeriram e implantaram. Juros elevados e
austeridade fiscal é uma combinação que deve ser evitada e abandonada por
qualquer governo que se pretenda progressista e com projeto de redução de
nossas desigualdades sociais econômicas.
Por outro lado, surfar apenas com as importantes
marcas na safra agrícola e no desempenho exportador tampouco é suficiente para
as imensas tarefas que se colocam no horizonte. Não basta contentar-se com os
louros de marcas que foram atingidas por medidas e circunstâncias anteriores ao
início do novo governo. Tampouco será correta qualquer tipo de acomodação com
eventual redução da Selic de apenas 0,25% ou 0,50% na próxima reunião do Copom.
É sempre bom lembrar que, mesmo se o anúncio às 18h do dia 2 de agosto for
neste sentido, continuaremos a ostentar a maior taxa real de juros do planeta.
As medidas necessárias para um sucesso efetivo
deste mandato apontam para a consolidação de raízes profundas para um outro
país. Queremos uma sociedade menos desigual, mais industrializada, com maior
capacidade de geração de empregos e oferecendo à maioria da população serviços
públicos de qualidade. Mas para tanto é fundamental livrar-se das amarras de
qualquer abordagem conservadora da economia e superar as barreiras da
austeridade fiscal ainda presente na proposta do novo arcabouço. O Brasil
precisa urgentemente promover a recuperação das despesas governamentais e a
retomada dos investimentos do setor púbico. Este deve ser o modelo do jogo para
empolgar a torcida em torno de um projeto de futuro.
Ø Pochmann: Depois das jornadas de 2013
As jornadas de rebeldia progressista ocorridas no
ano de 2013 colocaram o Brasil numa encruzilhada histórica decisiva.
Confrontaram, de um lado, a trajetória econômica da estabilização capitalista
administrada pela integração neoliberal na globalização em 1990 como um país
primário-exportador associado ao poder do rentismo de altos juros e de outro
lado, a orientação política pactuada na Constituição de 1988 pela viabilidade
do desenvolvimento nacional.
Isso porque a longeva estagnação secular na qual a
economia brasileira se encontra em marcha desde o final dos anos 1980, salvo
períodos excepcionais, produziu a insuportável ruína da sociedade
urbano-industrial, cujos sinais de regressão socioeconômica parecem inegáveis.
Com isso, o descontentamento social se tornou
crescente e explosivo, não fossem as providenciais medidas de emergência
governamentais, operando como se fossem uma espécie de compra do tempo a
postergar os riscos crescentes da catástrofe e desintegração nacional. Desde
então, ocorre, de tempos em tempos surtos de rebeldia e motins, como os
determinados por setores específicos associados ao sistema prisional, polícias
militares, estudantes, trabalhadores, entre outros.
Mas os eventos de natureza política que apresentam
caráter geral no interior da sociedade foram mais significativos a partir da
década de 2010. Tomando como referência o cenário de insatisfações que
produziram a explosão de manifestações no ano de 2013, percebe-se o salto
inicial das greves de trabalhadores que foram multiplicadas por quase cinco
vezes entre 2010 (446) e 2013 (2.050), segundo o Dieese.
Da mesma forma, ocorriam as tensões e disputas por
terras indígenas, as desocupações em solos urbanos, a carestia nos transportes
públicos; enfim, uma série de demandas que apontavam para a piora das condições
gerais de vida e trabalho. Paralelamente, as denúncias de custos dilatados
impostos pela padronização de equipamentos esportivos às arenas futebolísticas
da Copa do Mundo de 2014, que se contrapunham ao discurso oficial de
austeridade fiscal por superávit primário e às demandas coletivas por melhora
nos transportes coletivos, educação e saúde públicas, trabalho e renda, e
outros a serem comparados ao “modelo Fifa” fundado na realidade de países do
norte global.
O choque produzido por horizontes de expectativas
distintas terminou por revelar o problema da legitimação e dominação na segunda
década do século 21, o que levou à inflexão substancial do ciclo político da
Nova República (1985-2014). A contradição crescente entre as vítimas e os
beneficiários do processo de modernização consumista neoliberal gerada pela
forma rebaixada e subordinada de adesão do Brasil na globalização havia
produzido um antagonismo político de complexa solução pacífica.
Por um lado, porque a modernização no padrão de
consumo posta em marcha com a estabilização monetária alcançada pelo Plano
Real, em 1994, alcançou o limite destrutivo dos postos de trabalho da classe
média assalariada e o endividamento das famílias de menor renda. Além disso, a
viabilidade da estabilização monetária dependia de juros reais elevados,
necessários para internalizar capitais externos, em geral especulativos, e
permitir a valorização cambial (doença holandesa) fundamental à inundação de
bens importados no mercado interno a preços inferiores.
De outro lado e, por consequência, ocorreu a
artificial elevação na taxa de juros promovida pelo Banco Central que, ao
onerar as finanças públicas promoveu o déficit público a ser financiado pelo
maior endividamento do Estado e/ou austeridade fiscal, a elevação da maior
carga fiscal, a privatização e o teto de limite aos gastos públicos não
financeiros. Ao mesmo tempo, o patamar da taxa de juros reais passou a inibir
os investimentos produtivos internos, alimentando o rentismo e a “maquiagem” da
montagem e empacotamento de insumos e componentes importados, travestidos de
bens finais comercializados no mercado interno.
O resultado era o cortejo do sepultamento da
industrialização nacional, com a crescente dependência externa, sobretudo de
ingresso das divisas internacionais de caráter especulativo, bem como o
alastramento do modelo econômico primário-exportador. Com isso, o emprego
possível da mão de obra se assentou sobre a dimensão produtiva nos pequenos
negócios e pejotização, cuja contida produtividade tornou dependente da
flexibilização social e trabalhista, capaz de evitar o esmagamento da taxa de
lucro empresarial.
Não só as ocupações de nível intermediário foram
sendo cada vez mais asfixiadas, como o emprego de classe média assalariada
encolheu, não compensado pelo avanço da pejotização da classe média
proprietária. O estreitamento do horizonte das melhores ocupações, próprias da
sociedade urbana e industrial ficou para trás, acrescido da intensa competição
instalada no interior do mundo do trabalho frente à ampliação da oferta de mão
de obra qualificada exposta à inflação das certificações no ensino superior e
de pós-graduação.
Neste contexto nacional de insatisfações
generalizadas ocorridas há dez anos, o aparato de dominação política perdeu
legitimidade, passando por significativa racionalização, própria da reação de
sobrevivência e de autodefesa da ordem, com o fechamento do sistema de
representação popular. Assim, o impulso rebelde e democratizante das jornadas
de junho de 2013 foi sendo submetido ao requisito autoritário e asfixiante que
o neoconservadorismo de extrema direita soube muito bem canalizar.
Para tanto, houve a urgente e necessária contenção
do poder executivo federal às demandas populares. Movido pela inovação de uma
espécie de parlamentarismo sem partidos, o poder legislativo inchou e se
debruçou sobre o governo central. Em sequência, ocorreu a convergência das
ações de intermediação do exercício da “função de poder moderador” da República
em disputas entre as cúpulas do judiciário e das forças armadas. Como expressão
disso, três ações basilares terminaram por rapidamente impor o novo patamar da
dominação política que resultou no esvaziamento dos progressistas na cena
política nacional.
A primeira delas ocorreu no âmbito das emendas
parlamentares, seguida da ampliação dos fundos públicos a irrigar
substancialmente determinados partidos e as disputas eleitorais e, por fim, da
cláusula de barreira partidária introduzida desde as eleições de 2018. O
resultado disso tem sido o esvaziamento da militância partidária, acompanhado
da queda dos filiados. Entre os anos de 2018 e 2023, por exemplo, o conjunto
dos partidos oficialmente legalizados no Brasil perdeu um milhão de filiados, o
que equivaleu ao declínio na taxa de filiação de 11,4% para 10,1% no total dos
eleitores do país.
A compensação veio pelo fundo público no financiamento
da campanha eleitoral de 2022, multiplicada por 2,9 vezes em relação ao valor
do ano de 2018, bem como o aumento de 33% no recurso público direcionado ao
fundo partidário. No mesmo sentido, o valor do orçamento público executado por
emendas parlamentares pagas foi multiplicado em quase 12 vezes, saltando de R$
2,3 bilhões, em 2017, para 27,5 bilhões, em 2022 (Luciana Timm, Alocação
do gasto público via Poder Legislativo: a visão do TCU sobre as emendas
parlamentares, 2023). Para o ano de 2023, o total do recurso orçamentário
autorizado para emendas parlamentares atinge R$ 36,5 bilhões.
Fonte: Outras Palavras
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