quarta-feira, 5 de julho de 2023

Os problemas com a dolarização da economia argentina

A dolarização da economia argentina pode parecer um debate meramente conjuntural, um sucesso na determinação da agenda pública por parte de um personagem que, em um país normal, não seria nada mais do que um marginal, como é o caso do novo emergente da extrema direita construído sobre uma pilha de milhares de horas na mídia, o candidato libertário Javier Milei. Esse é o problema da criação de “frankensteins”: eles podem ganhar vida e se tornar difíceis de controlar. No entanto, não é apenas pela imaginação das figuras (já não tão) novas e grotescas da política que a dolarização volta a estar na agenda pública. Não é uma ideia nova, mas sim um novo capítulo da eterna montanha-russa na qual a história econômica argentina parece ter caído, com problemas que ressurgem repetidamente e aos quais se tenta combater, também repetidamente, com fórmulas que já falharam no passado. 

·         Antecedente: a convertibilidade 

Embora os mais velhos possam pensar que a convertibilidade aconteceu ontem, aqueles com menos de 40 anos dificilmente se lembrarão da evolução cotidiana da década de 1990. A memória do adulto médio alcança nitidamente talvez a crise de 2001-2002. Desde o estabelecimento da convertibilidade, sancionada como lei em março de 1991, já se passaram 32 anos. Como acontece com outros períodos históricos, são recordadas socialmente apenas as porções escolhidas de acordo com o gosto do consumidor. Lembra-se, por exemplo, que após dois períodos de hiperinflação, a fixação da taxa de câmbio, o 1 para 1 que resultou da conversão de 10.000 austrais = 1 peso conversível = 1 dólar, funcionou como um “programa de estabilização de choque” moderadamente bem-sucedido. As classes médias provavelmente sentem falta daqueles tempos dourados em que os dólares baratos permitiam que viajassem pelo mundo. 

Ao mesmo tempo, tende-se a esquecer as consequências negativas e o longo período de esgotamento dessa fase, uma recessão iniciada em 1998 que durou até a crise final de 2001-2002, com alto desemprego, destruição da estrutura produtiva, alto endividamento, inadimplência e o que então era um fenômeno novo: a exclusão social generalizada que deu origem, entre outros fenômenos, aos atuais movimentos sociais. No final da convertibilidade, a preocupação dos trabalhadores não era mais com o nível de salários e condições de trabalho, mas sim em não ficar de fora do sistema. 

Recordar hoje a convertibilidade é fundamental: a fixação por lei da taxa de câmbio, fazendo com que um peso valha legalmente um dólar, com a obrigação de respaldar a emissão de cada peso com moeda estrangeira, buscava os mesmos objetivos que a dolarização busca hoje e, para completar os paralelismos, em um contexto social também muito semelhante, com o descontentamento provocado pela persistência da alta inflação. Em 1991, após duas hiperinflações, a sociedade estava disposta a sacrificar qualquer coisa por um pouco de estabilidade. Hoje há ecos daquela “doutrina do choque” que facilitou a aplicação do programa. 

Certamente, com base na experiência da convertibilidade, cujo imaginário ainda persiste, o que muitos economistas fizeram nas últimas semanas ao analisar a dolarização foi identificar os dólares atualmente disponíveis nas reservas internacionais e dividir esses valores por diferentes agregados monetários [valores quantitativos que representam o estoque total de dinheiro em uma economia]. As contas foram feitas alternando diversos níveis de reservas, reais e potenciais (dependendo se mais moeda estrangeira for obtida ou não) e com diferentes alcances dos agregados monetários, levando à definição de diferentes níveis de taxas de câmbio possíveis para a conversão. 

O cálculo é simples: se tivermos tantos dólares e a quantidade de dinheiro necessária para a economia funcionar for tantos pesos, o preço do dólar será o resultado da divisão de uma quantidade pela outra. O próximo passo foi mais estranho. Os salários nominais atuais foram divididos pelo suposto novo nível da taxa de câmbio e se disse que, em uma hipotética dolarização, os salários em dólares diminuiriam tantos por cento. Como as quedas resultantes eram estratosféricas (até 98%!), a conclusão lógica foi que a dolarização é impossível em razão do nível de desvalorização que exigiria. 

Embora todo o raciocínio descrito tenha sua lógica interna, ele peca pelo que poderia ser chamado de “monetarismo simplista”. São raciocínios puramente quantitativos que parecem não levar em conta a natureza do dinheiro – uma relação social bastante complexa – e seu processo de criação. E, acima de tudo, não percebem que o verdadeiro problema de uma dolarização não está em seu ponto de partida, mas em seu desenvolvimento. É nesse aspecto, o desenvolvimento de uma dolarização, que vale a pena considerar – à luz do exemplo histórico – a convertibilidade. Isso permite entender o que implica tentar fixar a taxa de câmbio, seja por lei ou substituindo diretamente o instrumento que atua como moeda. 

O problema, então, não é quantitativo, mas qualitativo. O primeiro ponto a ser lembrado é que o dinheiro não funciona como nos tempos do padrão ouro, nem é uma “mercadoria de equivalência universal”, como ensinava Karl Marx. O dinheiro é uma simples promessa de pagamento que, nos tempos modernos, também se torna, embora não exclusivamente, “uma criatura do Estado”. A promessa de pagamento pode se transformar em um instrumento de curso legal [documento reconhecido pela lei que pode ser aceito como pagamento ou cumprimento de uma obrigação em um determinado país ou jurisdição], a moeda, aceita para o pagamento de impostos, o que garante sua demanda. Assim, o que o antigo “senhor” emitia como moeda em seu feudo e respaldava tanto em dinheiro como com seu poder, passou a ser patrimônio do Estado. O “senhorio”, ou seja, ser dono dos 1.000 pesos da nota de 1.000 pesos posta em circulação, pertence ao Estado. A promessa de pagamento continua garantida por um poder superior. Porém, não se trata apenas de poder, mas também de credibilidade na solvência do instrumento, que não é outra coisa senão a solvência do erário. 

Além disso, há o processo completo de criação de dinheiro. Não muitas pessoas sabem disso, talvez nem muitos economistas, mas a criação de dinheiro não se limita apenas à produção das notas que são impressas para circulação, aquelas que surgem da mítica “máquina de dinheiro”. A maior parte do dinheiro em uma economia é dinheiro creditício, dinheiro bancário. Quando, por exemplo, um banco concede um empréstimo, está criando dinheiro que antes não existia e do qual só precisa ter uma “reserva” (uma porcentagem mínima) no Banco Central. Não é, como comumente se acredita, que o banco empresta o dinheiro da captação de depósitos. Isso é assim desde que os bancos descobriram que os depositantes não retiram todos os seus depósitos ao mesmo tempo, algo que aconteceu até mesmo antes da existência do respaldo de um banco central como credor de última instância. 

O mesmo ocorre quando se paga com cartão de crédito. O pagamento com o cartão é uma “promessa de pagamento” que está sendo criada naquele mesmo momento e que muito provavelmente será saldada mais tarde, total ou parcialmente, por meio de uma nova promessa de pagamento, com uma transferência eletrônica entre contas. A maior parte do dinheiro, então, é criada pelo sistema financeiro, e uma parcela considerável só circula dentro dele. Por isso se diz que a quantidade de dinheiro é “endógena” e dependente do nível de atividade, pois quanto maior a atividade, maior o crédito, e vice-versa. 

Entretanto, o objetivo destas linhas não é aprofundar sobre a teoria monetária, mas sim entender que, em um contexto de dolarização, a maior parte dos dólares no sistema não será em espécie, notas com a imagem dos líderes estadunidenses, mas sim “argendólares”, dinheiro bancário criado por bancos argentinos. Por que a experiência da convertibilidade é relevante? Porque na história argentina já foi tentado afirmar que os depósitos em pesos são respaldados por dólares ou até mesmo que são dólares. Isso aconteceu quando, no final de 2001, o sistema financeiro já estava em crise. Após a decisão do governo de garantir que os pesos depositados estavam respaldados por dólares, muitos poupadores correram aos bancos para retirar “seus dólares”, o que levou ao “corralito”, a impossibilidade de retirar os depósitos acima de um determinado valor diário. Foram muito poucos os que conseguiram retirar “dólares em espécie”. Naquela época, todos os mitos caíram, como o que afirmava que os depósitos nas filiais locais dos bancos internacionais eram respaldados pelas matrizes. 

O que se quer dizer é que, para dolarizar a economia, não é necessário ter todos os dólares em espécie, pois a maioria dos dólares seria “argendólares”. Portanto, avançar em direção à dolarização seria uma operação complexa, mas não impossível. O problema não seria a dolarização em si, mas sim o dia seguinte. 

·         As consequências 

Suponha-se que, para dolarizar, seja determinada uma taxa de câmbio de consenso após uma desvalorização e que todos os preços da economia passem a ser em dólares de acordo com a cotação de partida. Foi exatamente o que aconteceu no início da convertibilidade, apenas o nome do instrumento não era dólar, mas “peso conversível”. A inércia inflacionária certamente será contida, como aconteceu naquela época, mas não desaparecerá. A dolarização não significará o fim do conflito distributivo. O que ocorrerá é que haverá uma “inflação em dólares”. Isso fará com que, depois de certo tempo, os preços locais se tornem caros quando medidos em moeda estrangeira. Ou seja, haverá o equivalente a uma valorização cambial. Isso vai significar duas coisas: que o custo das exportações locais será mais alto e o das importações será mais baixo. O processo resultará em uma calamidade para a estrutura produtiva, mas também permitirá manter satisfeitos os setores médios que possuem renda e certamente voltarão a viajar pelo mundo. 

O que está sendo descrito não é uma mera especulação. Novamente, isso já aconteceu na década de 1990. Manter uma taxa de câmbio valorizada não é mágica, não é o resultado de uma “manobra monetária” ou de uma genialidade instrumental. Para manter a taxa de câmbio sobrevalorizada, são necessários dólares. Durante a convertibilidade, os dólares chegaram primeiro com as privatizações, ou seja, com a venda do patrimônio público acumulado por gerações, e depois com endividamento externo enquanto era possível, ou seja, até que a dívida se tornou impagável, momento em que a convertibilidade entrou em colapso, derrubando o governo que tentou sustentá-la a todo custo. 

Agora, suponhamos que ninguém esteja preocupado com a criação de um sistema de desincentivo das exportações com valor agregado e incentivo das importações de todos os tipos. A pergunta que resta é de onde viriam, dessa vez na nova economia dolarizada, as divisas para manter os preços internos altos em dólares, o equivalente ao dólar barato. Ao contrário do início dos anos 1990, as oportunidades de privatização são escassas e o endividamento externo está praticamente fechado. Hoje é até o oposto: precisa-se de dólares para pagar o megaendividamento. 

Talvez o leitor esteja adivinhando a nova fonte de dólares. Efetivamente, o novo modelo poderia se basear exclusivamente na exploração dos recursos naturais. Afinal, esse é o papel que é atribuído à Argentina na divisão internacional do trabalho: ser fornecedor de recursos naturais sem grande transformação. Os ventos internacionais são favoráveis a seguir esse caminho. O mundo está avançando em direção a uma transição energética que, independentemente de sua velocidade, ocorrerá. Os recursos nos quais a Argentina pode aumentar as exportações são, entre outros, além do setor agropecuário, os hidrocarbonetos (até que a transição seja concluída), o cobre e o lítio. A menos que as coisas deem muito errado, os investimentos para esses desenvolvimentos chegarão. Na verdade, o processo já começou. No próximo ano, o gasoduto Néstor Kirchner permitirá, para começar, acabar com as importações de energia e possivelmente também passar a exportar. 

A entrada futura de dólares por exportações de recursos naturais poderia permitir a manutenção de uma dolarização “com dólar barato” e sustentar os pagamentos aos credores estrangeiros. Por sua vez, o dólar barato é uma das chaves para manter a harmonia social, especialmente das classes médias, cujas demandas os governos tendem a tentar atender. 

Para uma parte da grande burguesia local, a dolarização sempre foi um sonho. A ideia surgiu pela primeira vez no final da convertibilidade. O debate na época era entre “desvalorizadores” e “dolarizadores”. Os primeiros estavam cientes do esgotamento do regime de conversibilidade, os últimos entendiam que dolarizar era uma espécie de “convertibilidade plus”, um ponto de não retorno. Entre os defensores da dolarização estavam as empresas privatizadas, interessadas em manter o valor nominal em moeda estrangeira das tarifas de serviços públicos. 

O poder econômico tende sempre a ser anti-Estado, embora muitas vezes faça negócios com o setor público. É anti-Estado em termos de política e intervenção, porque é o Estado que cobra impostos e regula, sendo seu antagonista. Por isso, sua filosofia sempre foi menos Estado. 

Para os setores dominantes, por exemplo, voltar ao FMI não foi uma má notícia, mas uma boa, pois consideram suas condicionalidades uma garantia de manutenção das políticas ortodoxas. Deve-se lembrar que os anos 1990 facilitaram transformações irreversíveis na economia, transformações que não foram apenas locais, mas globais, como o aprofundamento da transnacionalização do capital. 

Hoje, a maioria das principais empresas que conduzem o dia a dia da economia local são companhias multinacionais, o que, é claro, influencia as preferências políticas. Não se trata apenas de girar divisas, mas da livre mobilidade de capitais e mercadorias e de impor limites às políticas monetárias e fiscais. 

·         O papel do Estado 

Do ponto de vista do Estado, as coisas são vistas de forma diferente. Além da perda do “senhorio”, a dolarização impede a desvalorização. Isso significa que, diante de choques externos, por exemplo, a única maneira de fazer um ajuste é reduzindo os preços nominais. Aqui também deve ser lembrado o corte de 13% nos salários públicos e aposentadorias no final do governo da Aliança, com Domingo Cavallo como ministro da Economia e Patricia Bullrich como ministra do Trabalho. Os “planos de competitividade”, que basicamente eram desvalorizações setoriais por meio fiscal, também são outra consequência da impossibilidade de desvalorizar. 

A dolarização também anula a possibilidade de colocar em prática políticas monetárias expansionistas. Sob a dolarização, não será possível expandir a quantidade de moeda à vontade, por exemplo, para superar recessões, algo que também aconteceu durante a convertibilidade. Ao contrário do que costuma ser divulgado pela mídia hegemônica, o peso mais significativo dos gastos correntes do setor público não são os salários da “casta política”, mas principalmente os salários do pessoal da saúde, educação, administração, forças de segurança e seguridade social. 

Na década de 1990, quando, após anos de recessão, as províncias e, posteriormente, a nação ficaram sem acesso a mais “pesos convertíveis”, começou-se a emissão de diferentes “quase-moedas”. A mais lembrada, mas não a única, foi a da província de Buenos Aires, o patacón, que acumulava juros e era usado para pagar impostos, o que garantiu sua circulação. Em outras palavras, não se pode forçar o impossível: se os Estados precisam criar promessas de pagamento diante de situações de escassez, eles as criarão. Sob um regime de dolarização, a “pataconização” será uma das possíveis consequências. Não é especulação, já aconteceu. 

Resumindo, a dolarização é um instrumento que limita as capacidades da política econômica, especialmente a política monetária. É uma ferramenta que, de fato, poderia contribuir para a estabilização de preços no curto prazo, mas apenas no curto prazo. No médio e longo prazo, teria efeitos desastrosos sobre as possibilidades de desenvolvimento da estrutura produtiva. 

No entanto, não é impossível que aconteça, pois não é verdade que sejam necessários dólares físicos para cobrir a totalidade dos agregados monetários. O resultado provavelmente seria um esquema híbrido, combinando dólares e “argentólares”, altamente instável para lidar com choques externos e recessões, o que abriria a porta para a criação de moedas provinciais: o caminho para os patacones. No meio disso, seria gerada uma economia cara em dólares, que, embora contribuísse por alguns anos para a harmonia social e, consequentemente, para a estabilidade política, seria sustentada pelo consumo do aporte de dólares “único” proveniente do potencial boom dos recursos naturais, ou seja, os dólares que poderiam ser usados para ingressar no trem do desenvolvimento. 

 

Fonte: Por Claudio Scaletta, no Le Monde

 

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