“Lobby poderoso” e precarização, o que diz o novo estudo sobre empresas
de aplicativo
Realizado em 38 países, o estudo coordenado pelo
Oxford Internet Institute e pelo WZB Berlin Social Science Center analisa o
desempenho de plataformas digitais em uma escala de princípios do trabalho
justo. Em sua segunda edição no Brasil, além de avaliar plataformas como Uber,
iFood e Parafuzo, a pesquisa aborda os mecanismos de lobby utilizados pelas
empresas de aplicativo para influenciar a opinião pública.
O relatório assinala que as empresas ainda estão
longe de oferecer padrões mínimos para condições justas de trabalho, mas
reconhece avanços em relação à primeira edição, feita no ano passado. Em
paralelo aos padrões de trabalho decente, avaliados em cada empresa, o estudo
alerta para o poder das plataformas de influenciar instituições, governo e
opinião pública, destacando que o peso do lobby é um diferencial do contexto
brasileiro.
A Agência Pública acessou a íntegra do relatório,
lançado em 25 de julho, e detalha nesta reportagem alguns dos apontamentos da
pesquisa. Das dez empresas pesquisadas, somente três demonstraram cumprir ao
menos algum princípio do trabalho justo. A maioria das empresas não pontuou em
nenhum parâmetro mínimo do trabalho decente. Equipamentos ou treinamentos para
segurança no trabalho e a liberdade de representação política são as áreas mais
críticas – segundo o estudo, nenhuma empresa demonstrou oferecer essas
garantias aos trabalhadores.
“Notamos alguns pontos de melhoria em relação ao
ano passado, mas o que vemos ainda é muita permanência, pouca coisa mudou.
Ainda estamos em busca de um trabalho decente na economia de plataformas no
Brasil”, resume Rafael Grohmann, pesquisador do Fairwork Brasil.
• Notas
baixas
Segundo o relatório, nenhuma plataforma alcançou
mais de 3 pontos, na escala que vai até 10, na avaliação baseada em cinco
princípios – remuneração, estrutura para o trabalho, contratos, gestão e
representação justas. Os cinco parâmetros são usados como uma medida para
quantificar o nível de “trabalho decente”, seguindo a definição do termo criado
em 1999 pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Com 3 pontos alcançados, o AppJusto, plataforma de
entregas que opera na capital paulista, ficou com a maior nota. O iFood manteve
a mesma nota do ano anterior, atingindo 2 pontos, e a plataforma de serviços
domésticos Parafuzo alcançou um princípio da escala do trabalho justo. As
outras empresas avaliadas – 99, Americanas Entregas Flash, GetNinjas, Lalamove,
Loggi, Rappi e Uber – não pontuaram em nenhum quesito.
As notas baixas das plataformas que operam no
Brasil repetem um padrão comum em outros países da América Latina, mas há
empresas em outros países que alcançam notas altas quando avaliadas sob os
mesmos parâmetros. Na Índia e África do Sul, por exemplo, existem plataformas
com notas que chegam a 7 e 8. “Na América Latina, temos uma exceção, que salta:
uma plataforma cooperativa de trabalho doméstico no Equador que pontuou 8”, diz
Grohmann.
A metodologia do estudo, replicada nos 38 países
onde a pesquisa é feita, confere pontos às plataformas na medida em os
pesquisadores conseguem comprovar e checar como os critérios de cada princípio
são cumpridos pelas empresas.
No critério remuneração justa, por exemplo, os
pesquisadores encontraram evidências de que somente duas empresas garantem que
todos os seus trabalhadores ganham, ao menos, o valor de um salário-mínimo
líquido – atualmente R$ 6 por hora. Nesse princípio, o AppJusto e a Parafuzo
foram as únicas que pontuaram, o que significa que, seguindo a metodologia do
projeto, tanto os dados fornecidos pela empresa quanto entrevistas com os
trabalhadores e pesquisas documentais comprovaram a remuneração.
Já no critério gestão, outras duas empresas
conseguiram pontos: iFood e AppJusto. De acordo com a análise dos
pesquisadores, isso significa que foi possível comprovar que somente essas
plataformas têm termos e condições claras de trabalho, proporcionando
transparência de seu funcionamento para os trabalhadores. Nesse critério, o
grupo de pesquisadores notou um avanço em relação ao ano anterior. “O iFood,
por exemplo, após diálogos com o projeto e processos internos, melhorou cláusulas
em seus contratos”, conta Grohmann.
No cenário brasileiro, nenhuma plataforma conseguiu
pontuar nos princípios condições de trabalho e representação. “Essas são as
questões mais frágeis atualmente”, avalia o pesquisador. Nenhuma das
plataformas foi capaz de demonstrar que fornece equipamentos e treinamentos
adequados para proteger a saúde e a segurança dos trabalhadores – o que é
avaliado no parâmetro focado nas condições de trabalho. Na mesma linha, nenhuma
plataforma apresentou evidências de que assegura a liberdade de associação e a
expressão da voz de seus trabalhadores.
O relatório descreve que “a não obtenção de um
ponto não significa necessariamente que uma plataforma não cumpra o princípio
em questão. Significa que os pesquisadores não conseguiram – por quaisquer
motivos – comprovar sua conformidade”. Durante cerca de um ano, a equipe de
mais dez pesquisadores buscou evidências para avaliar cada princípio por três
caminhos: entrevistaram dez trabalhadores de cada empresa, estudaram documentos
das empresas e se reuniram com gestores das plataformas para dialogar e
solicitar mais documentos. Nesta edição da pesquisa, Uber, 99, GetNinjas,
Lalamove e Loggi optaram por não fornecer informações para o projeto, após
contato.
• Foco
no lobby
Na edição do estudo deste ano, à diferença do ano
anterior, o relatório dedica um capítulo exclusivo para abordar o que os
pesquisadores chamam de “conjunto de práticas de influência”, operadas pelas
empresas. O documento aponta que parte do poder das plataformas analisadas vem
da capacidade de pressionar instituições, imprensa, governos e opinião pública.
“A sofisticação das formas de influência na opinião
pública parece ser um diferencial do contexto brasileiro em relação ao mundo”,
diz Grohmann. O estudo aborda as estruturas internas criadas pelas empresas
para influenciar o debate público e tomadores de decisão.
O setor comumente chamado de “área de políticas
públicas” dentro dessas empresas – às vezes, nomeado com termos em inglês como
área de public policy ou de advocacy –, que em geral reúne profissionais do
mundo da comunicação e do direito, é assinalado no documento como responsável
por promover a agenda das plataformas com governos e reguladores. O estudo
alerta para a necessidade de a sociedade entender como funcionam essas áreas,
que recebem vultosos orçamentos e contam com equipes numerosas na estrutura
dessas empresas.
“Esse setor de lobby é um elemento importante da
economia de plataforma ao redor do mundo”, diz Grohmann. “Nós percebemos que é
necessário ter uma compreensão mais aprofundada dos mecanismos de poder das
plataformas. Não estamos falando só do poder macroeconômico, mas do poder
midiático, comunicacional, político, em diferentes dimensões.”
Junto com os setores das empresas que trabalham com
a influência direta nas políticas públicas, o estudo destaca também a relação das plataformas com
thinks tanks específicos, como o Instituto Ethos. Representando a Uber, iFood,
Mercado Livre e Natura, o think tank lançou uma pesquisa sobre o que seria trabalho
decente em plataformas digitais e, no ano passado, produziu um manifesto “para
uma iniciativa empresarial de promoção de trabalho decente”, convocando outras
empresas a aderir.
Em um momento no qual os objetivos de
desenvolvimento sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU) ganham
escala e importância no mundo corporativo, acompanhados das metas de governança
ambiental, social e corporativa – reunidas sob o guarda-chuva das chamadas ESGs
(“Ambiental, Social e Governança”) –, os discursos das plataformas atraem a
atenção dos pesquisadores do trabalho decente.
No contexto brasileiro, o estudo menciona as
campanhas publicitárias em que as plataformas se colocam como portadoras de
valores de diversidade, inclusão e responsabilidade ambiental, em discursos que
buscam mobilizar para elas próprias esses princípios. “Historicamente, as
empresas têm promovido uma ‘lavagem de imagem’ em relação a ‘ética’ e ao que é
‘justo’ ou ‘decente’” – destaca o texto.
“Existe uma indústria de consultoria, inclusive
para temas como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU e para ESG”,
diz Grohmann. “Apontamos que é necessário observar a força disso no atual
contexto do Brasil.”
A versão do estudo, publicada agora em português e
inglês, integra o arquivo geral do projeto Fairwork, que destaca os melhores e
os piores exemplos de como as novas tecnologias estão sendo usadas nos locais
de trabalho, em 38 países, espalhados pelos cinco continentes. “Contar para o
resto do mundo o que está acontecendo no Brasil, da realidade dos
trabalhadores, mas também do poder das empresas aqui, é falar sobre a economia
de plataformas do mundo”, considera o pesquisador.
Fonte: Por Clarissa Levy, da Agencia Pública
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