Depois do TSE, a
pauta política tratou de apressar especulações sobre o suposto herdeiro do
bolsonarismo
Com
a decisão do Tribunal Superior Eleitoral, que considerou por 5 votos a 2 o
ex-presidente Jair Bolsonaro inelegível por oito anos, por seus sistemáticos
ataques ao processo democrático, com descrédito das urnas eletrônicas e da
Justiça Eleitoral, a pauta política tratou de apressar especulações sobre o
suposto herdeiro do bolsonarismo. Acho prematuro e falta de assunto abrir uma
campanha sucessória quando mal o governo Lula (e os governadores citados como
possíveis herdeiros dos ideários da extrema direita encarnados por Bolsonaro)
completam seis meses de administração. Como havia muita coisa a ser consertada,
é cedo marcar uma festa de inauguração. Antes é preciso consertar as goteiras
do telhado em dias de chuva, reparar os vazamentos (de dinheiro, sobretudo) e
que portas sejam desempenadas. Há muito o que fazer em 2023, 2024 e 2025, antes
de se pensar em 2026.
Após
explosão da direita no Brasil desde 2013 – que não impediu a reeleição de Dilma
Roussef, em 2014, mas criou a gênese do “impeachment” em 2016, seria primarismo
achar que Jair Bolsonaro foi um meteoro que cruzou os céus do Brasil pela
direita e encantou uma fatia radical do eleitorado. Isto inclui extratos
evangélicos, conservadores nas grandes cidades e no interior e o empresariado
do agronegócio – grupo que o elegeu em 2018, quando Lula foi impedido de
concorrer com a prisão. O mesmo grupo continuou apoiando o candidato da extrema
direita mesmo após sucessivos erros grosseiros e desprezo pela vida humana,
como ocorreu na pandemia da Covid-19, que ceifou a vida de mais de 700 mil
brasileiros (703.964) e no quase genocídio de etnias indígenas, com a abertura
das suas reservas florestais à exploração predatória do garimpo e à extração de
madeiras nobres na Amazônia.
Também
não cabe cair no Fla x Flu de interpretações jurídicas sobre a fatídica
convocação dos embaixadores acreditados em Brasília para a reunião, em 18 de
julho de 2022, no Palácio da Alvorada, com transmissão direta pela TV Brasil, a
emissora oficial do governo, e link direto para as redes sociais bolsonaristas,
que amplificou o discurso golpista com um chorrilho de “fake news”. Bem disse o
ministro do TSE, Floriano de Azevedo Marques, o 2º a votar após o extenso voto
condenatório do relator, ministro Benedito Gonçalves, que ganhou uma primeira
posição divergente do ministro Raul de Araújo Filho, que tentou minimizar as
atitudes do então presidente como “excessos da liberdade de expressão”. Azevedo
Marques trouxe o contexto eleitoral do ano passado para reavivar a dinâmica dos
fatos que levaram Jair Bolsonaro a radicalizar nos discursos antidemocráticos
para desacreditar as urnas eletrônicas justamente a partir de abril, quando a
escalada dos preços dos combustíveis (reflexo da invasão da Ucrânia pela
Rússia) alçou o ex-presidente Lula como líder das pesquisas.
De
fato, os ataques à democracia foram num crescente na proporção inversa ao avanço
de Lula nas pesquisas, como bem observou no seu voto Azevedo Marques,
culminando na reunião do Alvorada com os representantes das nações estrangeiras
no Brasil. Para o ministro Marques, o comportamento de Bolsonaro caracterizou
“o desvio de finalidade e abuso de poder”, crimes pelos quais ele era acusado
no processo. Como agente público valeu-se das atribuições de seu cargo para,
sob pretexto de atender ao interesse coletivo, atuar em benefício próprio,
extrapolando suas competências muito além das necessidades coletivas. Um troco
completo na postura de Raul Araújo de quase considerar as falas de então
presidente “uma incontinência verbal”. Mesma linha explorada pelo ministro do
Supremo Tribunal Federal, Nunes Marques, nomeado por Bolsonaro em novembro de
2020, que deu o 2º voto isentando o ex-presidente de abuso do poder.
Com
o placar em 3 x 2 contra Bolsonaro, coube à vice-presidente do TSE, a ministra
do STF Carmem Lúcia, dar um voto lapidar que selou a sorte política de
Bolsonaro. Preliminarmente, esclareceu a competência da Justiça Eleitoral para
julgar a ação de abuso de poder arguida pelo PDT, pois a reunião, praticamente
um monólogo do presidente da República a três meses das eleições, era uma
exposição basicamente sobre alguns temas, todos eles relativos à eleição. E ela
acrescentou que a convocação dos embaixadores, pelo estafe da presidência da
República e não pelo canal competente do Poder Executivo, o Itamaraty, como
determina a legislação, evidenciou desvio de finalidade. Em seguida, ela citou
o conceito de "consciência de perverter", descrito como a
"consciência de saber que não tem razão e ainda assim expor como se
tivesse, sabendo que não a tem", e afirmou que Bolsonaro agiu dessa forma
e que por isso colocou em risco a Democracia, sem a qual o país não desfrutaria
do Estado de Direito. E ainda lembrou que o presidente da República afrontou
ainda o processo eleitoral e atacou na reunião três ministros do Supremo
Tribunal Federal (STF), que na época também faziam parte do TSE — Alexandre de
Moraes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso —, e defendeu os colegas, dizendo
que a "notabilidade" deles é "óbvia". A defesa de Bolsonaro
questionou o fato de o caso estar sendo analisado pelo TSE. Entretanto, Carmen
afirmou que os temas tratados por Bolsonaro na reunião com embaixadores eram
todos relacionados à eleição.
Por
fim, a pá de cal foi dada pelo voto (o único não lido) do presidente do TSE, o
ministro Alexandre de Moraes. Moraes preside os inquéritos das “fake news” e
dos atentados contra a Democracia em 12 de dezembro (após a diplomação de Lula
e Geraldo Alkmin pelo TSE) e 8 de janeiro de 2023, quando houve invasão e
depredação das sedes do Poder Executivo (o Palácio do Planalto), do Legislativo
(as instalações da Câmara e do Senado) e do Judiciário (salas do STF e invasão
de gabinetes, sendo o mais visado o de Alexandre de Moraes), pelos apoiadores
de Bolsonaro, mobilizados desde a vitória de Lula no 2º turno em acampamentos
diante dos quartéis das Forças Armadas, invocando um golpe militar. O presidente
do TSE lembrou que em dois acórdãos do tribunal eleitoral, em 28 de outubro de
2021, alertaram que não seriam aceitas nas eleições de 2022 a divulgação de
desinformação sobre o sistema eleitoral. Os dois acórdãos envolveram a cassação
do deputado estadual Fernando Francischini (PSL-PR), por divulgar notícias
falsas sobre urnas eletrônicas, e a absolvição da chapa do próprio Bolsonaro na
eleição de 2018, por disparo em massa de mensagens. Tudo se cruzou no
envolvimento de Bolsonaro contra o processo eleitoral, pois, mesmo abrindo as
burras do Tesouro Nacional e baixando impostos de gasolina e energia para
“comprar” o voto do eleitor, as urnas não lhes pareciam favoráveis. Nem a ajuda
da PRF para dificultar a chegada dos eleitores pró Lula às zonas eleitorais do
Nordeste evitou derrota apertada. Resta saber agora se seu cacife político vai
resistir a outras dezenas de ações que correm nas varas de Justiça cível e
criminal.
·
Retrato do Brasil no Censo
Na
mesma semana em que o Brasil se debruçava sobre as investidas de Bolsonaro e
seus fanáticos contra a democracia e o processo eleitoral, o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgava os primeiros resultados
do complexo Censo Demográfico de 2020 (adiado para 2021 pela pandemia da Covid-19)
e depois para 2022, pelo prolongamento da doença, mas realizado sob cortes
expressivos de verbas pelo ministro da Economia Paulo Guedes, que levaram à
realização de um retrato mais restrito que o necessário do estado do país,
segundo o ex-presidente do IBGE, Paulo Rabello de Castro. O Censo é
superimportante para os governos, políticos e os empresários e gestores da
iniciativa privada conhecerem a realidade do país.
O
1º Censo – limitado, sem o levantamento efetivo da mão de obra escrava e dos
indígenas, foi realizado em 1872, no Império, por iniciativa de D. Pedro I. O
2º Censo já se deu na República, em 1890, ficando estabelecida a sua realização
no começo de cada década. Houve o de 1900, mas o de 1910 foi interrompido e o
de 1920 ocorreu depois da devastação da Gripe Espanhola. A crise financeira de
1929, que levou à derrocada da lavoura de café, já sob a mão de obra do
colonato, na qual as famílias de emigrantes dividiam com os donos das terras o
resultado das culturas realizadas nas “ruas” do café, tornou inviável o Censo
de 1930, quando o governo da República Velha, de Washington Luiz, foi derrubado
por Getúlio Vargas. O Censo voltou em 1940 e, desde então, aferia, a cada dez
anos, a evolução da sociedade brasileira.
Se
na iniciativa privada as empresas precisam controlar seus estoques, observar os
bens e serviços que são mais pedidos, e ajustar o fluxo financeiro para que a
produção/oferta atenda adequadamente a demanda, imagina-se o que é pilotar a
administração pública sem uma radiografia ou um levantamento das carências mais
urgentes. Quando se vai a um consultório médico, salvo os raros clínicos gerais
ainda atividade, que têm amplo conhecimento e, sobretudo, experiência, o
profissional especializado logo solicita uma bateria de exames para ele tomar
pé da situação.
No
setor privado, onde grandes empresas de capital aberto recorrem a auditorias de
renome para confirmar a contabilidade interna, ocorrem fraudes (o caso
Americanas é lapidar, mas há muitos casos no Brasil, como as do Banco Nacional,
que tinha balanços inflados artificialmente). O que já tinha ocorrido também em
gigantes empresariais dos Estados Unidos, como a Enron (de energia) e a
WorldCom (Comunicações), sem falar das “pirâmides” financeiras de Bernard
Madof. O que se pode esperar quando a administração pública tateia no escuro?
·
Sem diagnóstico, erros em penca
É
nas sombras que os agentes políticos manipulam as verbas para a corrupção. Os
casos recorrentes de Alagoas (no século passado era a Canapi, de apaniguados do
presidente Fernando Collor e de seu assessor financeiro e eminência parda Paulo
Cesar Farias); agora são mais de 50 municípios contemplados com a farra do
superfaturamento de robôs para escolas, que as investigações da Polícia
Federal, por requisição do Ministério Público de Alagoas, autorizada por juiz
federal local, descobriram o envolvimento do ex-assessor do presidente da
Câmara, Arthur Lira (PP-AL), Luciano Cavalcanti. Em uma busca a uma residência
de Cavalcanti, a PF encontrou R$ 4,4 milhões em reais e dólares escondidos em
um armário. Uma quantia de tal ordem só não está aplicada nas altas taxas de
juros do mercado financeiro porque há interesse claro de fugir do Coaf
(Conselho de Controle de Atividades Financeiras), que mapeia movimentações de
quantias superiores a R$ 5 mil e R$ 10 mil.
A
corrupção deve ser combatida pela atuação dos órgãos de controle e pelas
investigações da Polícia Federal (caso do setor privado, quando se trata de
bancos ou companhias de capital aberto, que lidam, portanto, com recursos de
terceiros, as investigações cabem aos “xerifes” do mercado: o Banco Central e a
Comissão de Valores Mobiliários).
Mas
o que fazer quando os políticos se valem de radiografias imprecisas da
realidade do país para solicitarem mais verbas para áreas que não são tão carentes
(mas estão sob sua órbita eleitoral), enquanto outras áreas efetivamente
carentes ficam desassistidas? O cobertor das verbas públicas (que é o somatório
dos impostos pagos de forma direta – sobre salários, lucros ou bens
patrimoniais – ou indireta, nos tributos embutidos nos preços dos bens ou
serviços consumidos pela população) é curto e sempre a cabeça ou os pés ficarão
a descoberto. No miolo, no entanto, estão bem abrigados os que pegam carona nas
verbas públicas. A reforma tributária é a oportunidade de corrigir algumas das
distorções que acentuam a concentração de renda e a desigualdade social no
Brasil.
Todas
as informações sobre o Censo de 2022 são de que ele ficou incompleto. Razão
pela qual a população encolheu muito em relação ao que o “relógio populacional”
do próprio IBGE chegou a marcar em agosto de 2022, quando foi retirado do site
do Instituto: então, havia 215,4 milhões de habitantes, com aumento de uma vida
(já descontando as mortes) a cada 19 segundos. No dia 28 de junho, o IBGE divulgou
que, em 1º de agosto de 2022, a população brasileira tinha “alcançado 203,1
milhões de habitantes, com aumento de 6,5% frente ao censo demográfico
anterior, realizado em 2010. Isso representa um acréscimo de 12,3 milhões de
pessoas no período”. Mas onde estariam os 12 milhões que “sumiram” do “relógio
populacional”? Demógrafos como José Eustáquio Diniz Alves, que foi coordenador
da pós-graduação da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE, já
apontaram em 2018 que os números do Instituto estavam inflados. Agora, como
faltaram cerca de 3% do universo pesquisado, isso seria algo como 6 a 7 milhões
de habitantes não contabilizados. É um número muito importante.
De
qualquer forma, os dados parciais do IBGE mostraram certa reversão no fluxo
migratório para as grandes cidades. Os brasileiros não apenas descobriram que a
agricultura nos campos do cerrado do Brasil Central, no Oeste de Minas Gerais e
da Bahia, no sul do Maranhão, do Tocantins e do Piauí (a nova fronteira do
MaToPiBa) gera muitas oportunidades de empregos que não mais existem nas
cidades, onde se exige mão de obra mais qualificada. A própria industrialização
e em particular a indústria automobilística, que há muito trocou as periferias
das grandes cidades (o ABCD de São Paulo e o Grande Rio deram espaço aos
serviços) pelo interior dos próprios estados ou outras regiões, são o exemplo
mais clássico da mudança. Ainda que a automação tenha reduzido a mão de obra
empregada.
O
país vive uma importante inversão do que tinha ocorrido na segunda metade dos
anos 70. Quando a geada matou os cafezais de São Paulo e Paraná, em 1975, sua
erradicação alterou profundamente o interior do país: as famílias dos colonos,
que plantavam milho, feijão, mandioca nas “ruas” do café e engordavam porcos e
galinhas com os produtos das lavouras, foram dispensadas (e acolhidas no
Funrural, o que gerou um desequilíbrio estrutural na Previdência Social, quando
deveriam ter sido bancados pelo Tesouro). O trabalho da mão de obra foi
substituído pela mecanização das lavouras de soja e milho, em regime de rotação
de culturas (sobretudo no PR), e pelas lavouras fixas de cana de açúcar e
cítricos em São Paulo. As famílias que antes produziam para o próprio sustento
acorreram às cidades. As crises no abastecimento de gêneros alimentícios (e a
inflação) dominaram os governos Geisel e Figueiredo. E o inchaço das cidades
agravou as carências de saneamento, habitação, transportes, educação, saúde e
segurança.
Hoje,
descontando a eventual imprecisão do Censo, o país enfrenta uma forte redução
do crescimento populacional (a média do crescimento era de 1,17% ao ano, no
Censo de 2010, e teria caído para 0,52% no Censo de 2022. Isso traz a uma nova
visão do futuro. A população brasileira está envelhecendo. O país desperdiçou o
“bônus demográfico” da virada do século. Isso vai gerar mais problemas
atuariais na Previdência Social (os aposentados tendem a crescer mais do que os
novos contribuintes). Haverá mais demanda pela medicina geriátrica do que pela
pediátrica e assim por diante. Tudo está na mesa, ou melhor, nas planilhas do
IBGE para ser repensado daqui para a frente.
·
Paolinelli e a conquista do Oeste
A
justiça tem de ser feita. Foi Juscelino Kubitschek quem redirecionou o Brasil,
que se abrigava essencialmente na sua imensa região costeira (as capitais de
São Paulo, Paraná, precisavam ganhar o planalto e Minas Gerais já estava
afastada do Oceânico Atlântico, embora tenha a cidade de Mar de Espanha, terra
de minha avô paterna, Alice, às margens do rio Paraíba do Sul, vizinha de Além
Paraíba (MG), terra de Zuenir Ventura, para ocupar seu imenso vazio interior,
com a criação de Brasília inaugurada no último ano de seu governo (1956-60) em
21 de abril de 1960. JK já vislumbrara as oportunidades da agricultura em Goiás
onde tinha uma fazenda que era seu xodó.
Mas
foi outro mineiro, natural de Bambuí, o engenheiro agrônomo Alysson Paolinelli,
que morreu esta semana, aos 86 anos, quem contribuiu, decisivamente, para a
conquista das terras do cerrado do Centro-Oeste e do MaToPiBa, com a criação da
Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), em 1973. Na época a
produção agrícola do Brasil era liderada pelos estados do Paraná e Rio Grande
do Sul, seguidos por São Paulo e Minas Gerais. Os problemas climáticos,
sobretudo as geadas, afetavam em muito o carro-chefe da economia brasileira, o
café. Delfim Neto ganhou reputação nos anos 60, com sua tese de mestrado em
Economia, sobre o café, quando mostrou que o país teria uma economia muito
vulnerável se ficasse dependente da receita cambial de atividade que era quase
bianual. Na Colômbia, os métodos de catação não fazem os pés de café sofrerem
tanto como na derriça. Essa prática, herdada da escravidão, retira grãos verdes
e maduros de uma puxada só. A colheita, sem seleção prévia, gera produtos de má
qualidade (e menor cotação). O pior é que as plantas sentiam e reduziam a
produção no ano seguinte. A entrada da soja, no começo dos anos 60, no governo
de Leonel Brizola, criou novas oportunidades na agricultura.
O
café, que chegou a representar, até o fim dos anos 60, 70% das receitas
cambiais do país, hoje responde por pouco mais de 3,5%. E a soja lidera as
exportações com mais de 19% das receitas. Somando o complexo soja, milho e
algodão (ambos plantados em rotação de cultura após a soja) e mais as carnes de
aves, suínos e bovinos (criados inicialmente nos pastos e depois terminados em
regime de confinamento com rações de sojas, milho e subprodutos de outras
lavouras), praticamente metade das receitas cambiais do Brasil vem do
agronegócio. O próprio café mudou para o Sul de Minas e usa novos métodos, com
avanço da colheita mecanizada que seleciona os grãos.
A
celebração de Paolinelli é muito justa. Ao criar a Embrapa e investir na
pesquisa de espécies adaptadas à agricultura tropical em solo mais árido e com
regime de chuvas bem definido do Cerrado, ele encontrou espaço para que as
próprias famílias de gaúchos e paranaenses, que já geriam minifúndios com baixa
produtividade em seus estados, se mudassem com armas e cuias para as novas
fronteiras do Mato Grosso do Sul, Goiás e Mato Grosso. Quando as geadas
desmontaram a agricultura do país em julho de 1975, Paolinelli era o ministro
da Agricultura do governo Geisel, que o escolheu, em fins de 1973, justamente
pelo seu trabalho na Embrapa, que completou 50 anos em 2023.
Conheci
Paolinelli no velho Jornal do Brasil, em 1974, quando ele foi convidado para um
almoço-entrevista pelo editor Noênio Spinola. Lembro que o ministro estava
entusiasmado com os projetos pioneiros de agricultura tropical no cerrado de Minas
Gerais e Goiás. Na ocasião, o alvo das futuras produções era o mercado japonês.
O Japão era o 2º PIB do mundo e a demanda das “tradings companies” japonesas
financiava boa parte dos projetos. A expansão da economia chinesa, após a
abertura do país para o Ocidente na década de 1980, acelerou as transformações.
O Japão segue um bom freguês, mas a China é hoje o maior comprador dos grãos,
minérios e petróleo brasileiros.
Houve
uma acelerada derrubada dos biomas do cerrado e do sul da Amazônia, no norte de
Mato Grosso, uma área de transição onde os donos de terras, com a devida
autorização do Ibama, poderiam derrubar até 35% das florestas (no resto da
Amazônia legal o percentual máximo é de 20%). Só que a fama dos gaúchos e
paranaenses, como destruidores de florestas, se fez mais uma vez presente.
Muita floresta foi derrubada de olho em lucros futuros das colheitas de soja e
milho. A produção de grãos brasileira passou a se concentrar no Centro-Oeste,
sobretudo em Mato Grosso, com crédito farto para a compra de máquinas agrícolas
modernas e pouco emprego de mão de obra, substituída por inovações da TI (5G),
como drones para pulverização e até pilotagem automática de uma bateria de
colheitadeiras. (o que falta nas lavouras de grãos, hortaliças, legumes e frutas
da agricultura familiar).
Na
última estimativa da safra de 2022-23, de 305,4 milhões de toneladas de grãos
(soja e milho lideram), estimada pelo IBGE em junho, 49,6% serão colhidos no CO
e Mato Grosso responderá por 31,1% da colheita. É mais do que o dobro dos 15,1%
do Paraná da soma com os 9,7% do Rio Grande do sul. Goiás é o 4º estado
produtor, com 9,6%, e a região do MaToPiBa produz o equivalente a 10,1%, o que
seria o 3º produtor do país. As pesquisas da Embrapa levaram à criação de
sementes de algodão adaptadas ao cerrado. Isso teve enorme impacto no MT e no
oeste da Bahia. Até os anos 70/80, o algodão brasileiro dependia da produção do
Paraná. Mas o excesso de chuvas dificultava a obtenção de fibras longas, usadas
na indústria têxtil. E a praga do “bicudo” arrasou as lavouras, tornando o
Brasil de exportador a importador nos anos 90 até o começo deste século, com
grande impacto na indústria têxtil e de confecções. Hoje, os municípios baianos
de São Desidério e Luiz Eduardo Magalhães são os maiores produtores do país,
junto com o oeste de MT.
As
benesses da Embrapa para a agricultura tropical atravessaram o Oceano Atlântico
e podem ser a redenção da fome em muitos países da África Equatorial, motivo
pelo qual Paolinelli, venerado pelos empresários do agronegócio, foi indicado
ao Prêmio Nobel da Paz, em 2022. Era parte da campanha eleitoral, mas isso não
apaga a grande contribuição do brasileiro.
Fonte:
Por Gilberto Menezes Côrtes, no Jornal do Brasil
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