Cacau orgânico muda
a vida de assentados no sul da Bahia
De
bandidos aos olhos de quem não entendia a luta pela reforma agrária a exemplo
de produção sustentável de cacau. Agricultores do assentamento Dois
Riachões, em Ibirapitanga, no sul da Bahia, produzem amêndoas
orgânicas cujo valor de mercado ultrapassa duas vezes e meia a média do
cacau convencional.
Na
década de 1990, a queda dos preços do cacau devido à entrada da África no
mercado internacional e o surto de vassoura-de-bruxa, doença causada pelo
fungo Moniliophthora perniciosa, geraram uma grave crise na Bahia. A
produção do Estado caiu de 400 mil para 100 mil toneladas.
A
situação levou muitos produtores e meeiros — agricultores que trabalhavam em
terras de outros em troca de uma parte da colheita — a migrar para centros
urbanos, deixando para trás cacaueiros infectados e pastagens. No entanto,
alguns trabalhadores foram para os acampamentos de lona preta, ligados a
movimentos sociais.
“As
pessoas nos chamavam de vagabundos e perigosos”, afirma Luciano Ferreira, que
se juntou a um desses acampamentos, às margens da BA-652, em 2001.
·
Títulos
de terras
O
caminho não foi fácil. Passaram-se cerca de 17 anos até as famílias
conquistarem os títulos das terras, em 2018. Nesse ínterim, além da batalha
jurídica, Luciano e alguns vizinhos travaram uma luta para melhorar a produção
de cacau e descobriram um caminho na agroecologia. A virada de chave, no
entanto, não foi tão simples.
"Houve
um conflito de gerações, mas a gente trabalhou com a pedagogia do exemplo, em
áreas experimentais. Precisávamos mostrar que era possível produzir sem veneno
[agrotóxicos] e sem queimar a terra"
—
Luciano Ferreira, agricultor
Hoje,
o estatuto do Dois Riachões proíbe o uso de produtos químicos no assentamento.
Das 40 famílias do assentamento, 34 são certificadas como produtoras de
orgânicos pela Rede de Agroecologia Povos da Mata, o segundo maior
Organismo Participativo da Avaliação da Conformidade Orgânica (Opac) do país,
atrás apenas da Ecovida.
·
Produção
orgânica
Nesse
modelo de certificação, pelo menos três produtores associados à rede e que não
fazem parte do assentamento visitam as propriedades a cada seis meses ou um ano
para verificar as condições dos cacaueiros. A vantagem é a redução dos custos
em relação a auditores tradicionais.
Atualmente, toda
a produção de cacau do assentamento ocorre em sistemas agroflorestais, sendo
que o modelo cabruca é 70% do total. Nele, os cacaueiros crescem à sombra das
árvores nativas da Mata Atlântica, com incidência de luz suficiente para
produzir.
Nos
sistemas agroflorestais que não são no modelo cabruca, os produtores do
assentamento plantam pelo menos cinco culturas de ciclo curto para agregar
valor à área enquanto o cacau não está dando lucro.
O
piar dos pássaros é sinal de uma produção em consonância com o ambiente.
Luciano mostra uma caixa d’água usada para guardar a biocalda — uma mistura de
esterco, melaço de cana, micro-organismos e outros produtos — que tem ajudado a
garantir a sanidade das plantas sem uso de químicos.
·
Manejo
para conter o fungo
De
acordo com o agricultor, a maior parte do cacau do assentamento é das
variedades Pará e Parazinho, propícias ao desenvolvimento da doença. Porém, o
manejo constante das árvores diminui a proliferação do fungo.
Além
do manejo diferenciado, os produtores do assentamento buscaram obter
um retorno melhor com a amêndoa a partir da construção de
uma estrutura de beneficiamento do cacau, que ocorreu em 2018. Luciano e
outros três agricultores tomaram um empréstimo com prazo de três anos para
construir uma casa de fermentação, uma estufa solar e um armazém de cacau.
“Era
dinheiro para caramba naquele momento, e topamos fazer o que ninguém queria”,
conta, com um sorriso largo no rosto, reforçando que todos os assentados do
Dois Riachões utilizam a estrutura. Um ano depois, implantaram uma pequena
fábrica de chocolate artesanal.
O
crédito para a estrutura de beneficiamento veio da organização
não-governamental (ONG) Tabôa, braço de fortalecimento de comunidades
do Instituto Arapyaú, criado por Guilherme Leal, sócio-fundador da
Natura. Nas próximas semanas, os assentados vão solicitar um novo financiamento
para transformar a fábrica de chocolate artesanal em um negócio com mais
escala.
“Fizemos
ovos de Páscoa e vendemos para pessoas em Salvador e também no Paraná, São
Paulo e Rio de Janeiro. A demanda é muito grande, precisamos de recursos para
comprar todos os insumos. É investimento que em menos de um ano deve se pagar”,
estima.
·
Chocolate Dengo
O
trabalho dos produtores do Dois Riachões só teria sentido se houvesse alguém
que o valorizasse. Por isso, ao mesmo tempo, Guilherme Leal criou a empresa de
chocolates Dengo, que paga um adicional pelas amêndoas com base na
qualidade.
“Nós
nos propomos a ser um negócio com impacto social, com meta de dobrar a renda de
3 mil agricultores que preservam a floresta”, afirma Roberto Teles, co-líder do
hub de inovação que fica dentro da Fazenda Conduru, em Ilhéus. Na propriedade,
a Dengo estuda o manejo do cacau e recebe turistas que querem conhecer os
processos por trás do chocolate de qualidade.
Enquanto
uma arroba (15 quilos) de cacau commodity é vendida a R$ 210, a Dengo paga R$
450 a R$ 525 pela arroba da amêndoa produzida no Dois Riachões.
Fonte:Globo
rural
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