quinta-feira, 27 de julho de 2023

Bolsonaro diz que o 8 de janeiro não foi tentativa de golpe, então o que foi aquilo?

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) tem deixado uma bola picando nas entrevistas que merece a atenção dos colegas repórteres. No meio das conversas, ele tem dito, referindo-se às pessoas que quebraram tudo que encontraram pela frente em 8 de janeiro nos prédios do Congresso, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília (DF): “Estão chamando de golpe de estado um bando de pessoas idosas enroladas na bandeira do Brasil e com a Bíblia na mão”. Alguém precisa perguntar ao ex-presidente o que ele considera um golpe de estado. Somando a vida parlamentar com o mandato de presidente, Bolsonaro já está na estrada da política há quase 40 anos. Durante todo esse tempo tem elogiado as Forças Armadas, que articuladas com parte da direita e com o governo dos Estados Unidos da época, deram o golpe militar de 1964, derrubando o então presidente da República João Goulart, o Jango, do antigo PTB gaúcho. Foi o chamado “golpe civil-militar de 64”, que durou até 1985.

Em 1964, o ex-presidente tinha nove anos e vivia com os pais no interior de São Paulo. Há um vasto material na internet sobre o golpe. Vou resumir o que aconteceu para contextualizar a nossa conversa. A tomada do poder pelas tropas militares foi uma operação rápida, porque o país era pobre e carente de estradas e telefones. Dos seus 79 milhões de habitantes, quase a metade (33 milhões) vivia no campo, sendo que a maior parte deles eram pobres e sem terras. Para se manter no poder durante 21 anos, os militares prenderam ilegalmente civis e torturam e mataram muitos políticos. Entre os torturadores, um deles merece destaque. O coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), que várias vezes foi citado como herói por Bolsonaro. Lembro que, em 2016, como deputado federal pelo Rio de Janeiro, mencionou Ustra quando votou pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT). Toda a carreira parlamentar de Bolsonaro foi ancorada entre os militares saudosistas do golpe de 1964. Mais ainda. O ex-presidente não considera a tomada do poder em 1964 um golpe de estado. Mas sim um movimento político legitimado pelo fato do posto de presidente estar vago, porque Goulart fugira para o Uruguai e o país não tinha vice-presidente desde que o próprio Jango, que havia sido eleito para o cargo em 1960, assumira a Presidência com a renúncia de Jânio Quadros, em 1961 – a história toda é encontrada na internet. Bolsonaro vem dando essa explicação sobre 64 através dos anos. O quebra-quebra que aconteceu em 8 de janeiro em Brasília é descrito por ele como um episódio praticado por gente da esquerda infiltrado entre idosos com bandeiras do Brasil amarrada no corpo e uma Bíblia na mão. Um acontecimento que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que havia assumido o governo uma semana antes, teria deixado acontecer para se beneficiar dele politicamente. Não é essa a história que contam os depoimentos de 1,4 mil pessoas que foram presas na ocasião e a investigação da Polícia Federal (PF) – há matéria na internet.

Portanto, é o seguinte. Tudo o que aconteceu em 1964 e em 8 de janeiro de 2023 é fartamente documentado por investigações policiais, historiadores e pesquisadores. Antes de seguir em frente com a nossa conversa vou dar uma explicação que considero necessária. O que aconteceu em 1964 é impossível se repetir hoje por vários motivos. O Brasil não é mais um país rural. A maioria dos seus mais de 200 milhões de habitantes vive nas cidades. E grande parte dos agricultores, pequenos, médios e grandes, formam uma classe média rural, graças às novas tecnologias que usam nas lavouras e à globalização dos mercados de grãos, carnes e outros produtos agropecuários. A questão da reforma agrária, que era a principal pauta das lutas sociais no campo, vem sendo resolvida por pressão de organizações como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e outras. A grande questão nos dias atuais é a preservação do meio ambiente, em especial da Floresta Amazônica. Aqui é o seguinte. O governo do ex-presidente Bolsonaro propositadamente desmontou todo o aparato de fiscalização dos órgãos ambientais e, com isso, facilitou o avanço do desmatamento e dos garimpeiros ilegais nas terras indígenas. Concluindo a minha explicação. O país tem dimensões continentais e uma razoável rede de estradas, comunicações e outros serviços. A sua economia se perfila entre as 10 maiores do mundo. Neste cenário, tentar um golpe militar ao estilo 1964 ou ao tentando em 8 de janeiro é o mesmo que soltar um dinossauro dentro de uma loja de cristais. Ele vai quebrar muitos cristais. Mas a loja permanecerá em pé. No caso aqui, a loja é democracia brasileira, que é jovem. Mas tem demonstrado ter musculatura forte o suficiente para resistir a conspirações golpistas.

Voltando a nossa conversa. Seja lá o que for que o ex-presidente da República defina como golpe de estado, a atual situação econômica, política e social do Brasil é por demais complexa para se preocupar com o que Bolsonaro pensa sobre o assunto. Há uma série de assuntos no Congresso, como a reforma tributária, que interessam a todos os brasileiros. E outros problemas em várias áreas governamentais, como a enorme fila de espera pela aposentadoria e por perícias médicas no INSS, que precisam ser equacionados e resolvidos logo. Se perguntarem para o ex-presidente, baseado só nos fatos que vêm acontecendo, ele dirá que não considera tentativa de golpe de estado o 8 de janeiro. Portanto, existe a possibilidade de tentarem novamente. Inclusive, há boatos sendo publicados como se fossem matéria de jornal sobre a possibilidade de movimentos contrários ao governo atual se manifestarem no próximo 7 de setembro, Dia da Independência. Não haverá problema se as manifestações forem feitas dentro da lei. Considero importante o ex-presidente definir o que é golpe de estado.

 

       O golpe da tentativa. Por Guilherme Scalzilli

 

As investigações sobre as origens do “8 de janeiro” podem seguir duas linhas. A primeira, mais ortodoxa e confortável, reside em tratá-lo como evento único e irredutível: uma tentativa de golpe. Os indiciados seriam personagens que atuaram com o objetivo claro de interromper o governo Lula. Jair Bolsonaro e seus asseclas diretos protagonizam esse enredo.

A segunda abordagem começaria distinguindo as ilicitudes que geraram o vandalismo. De um lado, a tramoia golpista. De outro, a cumplicidade e a omissão de agentes públicos. Divididas as parcelas individuais de responsabilização, o ônus maior recairia sobre as pessoas que participaram de ambas as etapas, mantendo-as compatíveis com o resultado final da aventura.

Bolsonaro tem o perfil de quem acreditaria na sobrevivência de um governo gerado por uma sublevação militar. Seria fácil iludi-lo com essa bobagem, num teatro clandestino que explorasse as suas vaidades e seus limites cognitivos. Não surpreenderia descobrir que ele tinha de fato a ingênua esperança de que Lula viria a solicitar uma intervenção fardada.

Mas os organizadores dos ataques a Brasília não compartilhavam os planos de Bolsonaro. Sabemos disso porque Lula continuou presidente, algo que jamais ocorreria, naquele cenário, se o projeto golpista recebesse um mínimo de apoio dos comandos militares. E foi decisão tomada com antecedência, para evitar improvisos ou surtos de rebeldia das tropas.

O entorno bolsonarista seria incapaz de orientar evento de tamanha complexidade. Não me refiro apenas à mobilização de milhares de bandoleiros, mas também, principalmente, ao delicado equilíbrio imposto pelo propósito de liberar a destruição sem que ela resultasse numa tragédia ou num sequestro efetivo das instâncias governamentais.

Não culminando em ruptura, sequer efêmera ou iminente, os ataques expuseram a vigência de um controle mais amplo, necessário para antecipar e garantir a facilidade da ocupação e o recuo “pacífico” depois da baderna. Tudo isso envolve altas patentes, pois demanda centralização operacional, superioridade hierárquica e acesso privilegiado a informações.

No entanto, apesar das evidências, cozinha-se uma anistia velada para os mentores da conspiração vitoriosa, aquela que chamamos de “8 de janeiro”. Com endosso da mídia, o desfecho do caso pende para o caminho fácil, de usar bolsonaristas como bodes expiatórios. Surgem até ensaios de glorificação dos militares por terem supostamente abortado o tal golpe.

Não, as Forças Armadas não salvaram a democracia. Na melhor das hipóteses, negaram-se a protegê-la. Na pior delas, atiçaram bandidos para desestabilizar e acuar um governo legítimo. Talvez seja impossível distinguir juridicamente essas atitudes, mas com certeza quem devia obedecer obedeceu e quem podia mandar mandou. Não houve falha ou insubordinação.

A narrativa da “intentona” é uma receita de pizza. Com muita sorte, atinge Bolsonaro e meia dúzia de assistentes, livrando a poderosa estrutura militar que os manipulou. Reduz o “8 de janeiro” a um gigantesco mal-entendido, onde milhares de lunáticos teriam acreditado nas promessas, nos blefes e nas apostas furadas que, para estupefação geral, ninguém fez.

Depois de negarem os golpes que realmente ocorreram, os conciliadores se escandalizam com uma tentativa frustrada. Ela deve ser punida, claro, mas seu modelo obsoleto e inviável de ruptura não explica o sucesso dos ataques em Brasília. Tampouco reflete a verdadeira ameaça fascista que borbulha nos bastidores institucionais. Naturalizá-la é uma forma de capitulação.

 

Fonte: Por Carlos Wagner, em Histórias Mal Contadas/Jornal GGN

 

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