Autoridades dão
suas versões sobre 8 de janeiro
Dependendo
do observador, os acontecimentos de 8 de janeiro de 2023 podem ser vistos,
interpretados e mensurados de ângulos e maneiras diferentes.
Uma
constatação, porém, é inegável à luz dos fatos: a invasão e a depredação das
sedes dos Três Poderes passaram para a história como o dia em que a democracia
brasileira foi insultada e afrontada em sua essência por bárbaros agindo sob o
impulso de mentes perturbadas que se escondiam — e ainda se escondem — nas
sombras.
Foi
um domingo em que milhões de brasileiros acompanharam, atônitos, cenas
execráveis dentro do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo
Tribunal Federal (STF).
Seis
meses depois, as autoridades ainda divergem sobre o que exatamente teria
motivado os ataques.
Para
uns, foi o primeiro ato de um golpe de Estado que não se concretizou. Para
outros, uma baderna derivada do extremismo político.
Era
um fim de semana como outro qualquer em Brasília. O presidente Lula visitava
bairros atingidos por uma enchente em Araraquara (SP).
Com
o recesso parlamentar, o senador Rodrigo Pacheco, presidente do Congresso,
passeava em Paris. O presidente da Câmara, Arthur Lira, descansava numa praia
em Maceió. Rosa Weber, presidente do STF, era uma das poucas autoridades que
estavam na cidade, quando milhares de apoiadores do ex-presidente Jair
Bolsonaro deixaram um acampamento montado no QG do Exército em direção à
Esplanada.
No
dia anterior, a Polícia Federal havia advertido sobre a possibilidade de a
manifestação descambar para atos de violência. Não houve, porém, reforço algum
na segurança.
O
Congresso foi o primeiro prédio a ser atacado. Os vândalos quebraram os vidros,
destruíram equipamentos, depredaram obras de arte e, de lá, seguiram em direção
ao Planalto.
Sem
resistência, subiram a rampa do palácio e foram arrebentando tudo que
encontravam pela frente, até chegar ao gabinete do Presidente da República.
A
terceira e última escalada foi a que deixou o maior rastro de devastação.
Os
criminosos atearam fogo no plenário do Supremo, picharam as paredes e simularam
defecar sobre os móveis.
Foram
quatro horas de barbárie.
Vencida
a perplexidade, as instituições reagiram com vigor.
Mais
de 1 200 pessoas respondem hoje a processos, cerca de 250 estão presas desde
então e uma Comissão Parlamentar de Inquérito foi criada para apurar o caso.
VEJA
publica relatos exclusivos de um representante de cada Poder sobre os momentos
marcantes que ficaram na memória de quem esteve no epicentro de um dia triste
que não pode ser esquecido.
FLÁVIO
DINO: “TEVE DEDOS EM RISTE DE LADO A LADO”
Nervoso,
o ministro da Justiça discutiu com generais, diz ter certeza de que houve uma
tentativa de golpe contra o presidente Lula e afirma que os militares estavam
torcendo por uma virada de mesa
Eu
estava em estado de alerta elevado pelo extremismo daquele pessoal acampado nos
quartéis, mas tomei meu café da manhã naquele domingo com a certeza de que
todas as providências em relação aos protestos haviam sido garantidas.
Logo
cedo, recebi uma mensagem do governador do Distrito Federal com relatos de
absoluta calmaria.
Na
sequência, o ministro da Defesa me repassou informações semelhantes.
Fui
almoçar com minha esposa e meus filhos na casa de um parente a 40 quilômetros
da Praça dos Três Poderes. Mal tinha chegado ao local e recebi os primeiros
informes de que as coisas não estavam indo bem: vândalos não estavam
respeitando os pontos de contenção da Polícia Militar e haviam rompido uma
barreira de segurança. Percebi que a coisa poderia sair do controle e rumei
para o ministério.
Era
apenas o início de um dia que ainda não acabou.
A
invasão do Congresso aconteceu diante dos meus olhos. Da janela do meu
gabinete, vi quando a multidão derrubou as grades, jogou uma viatura no espelho
d’água e escalou o prédio.
Havia
uns poucos policiais tentando conter os criminosos. Entrei em pânico. Era
preciso falar com o presidente. Aquela invasão poderia incentivar protestos
similares em todo o Brasil. Lula estava vendo pela TV. Ficamos com medo de
perder o controle do país. Se aquilo se multiplicasse, não teríamos força para
superar.
O
golpe seria consumado.
Nervoso,
xinguei o Bolsonaro, o bolsonarismo, xinguei quem havia tramado aquilo e as
forças de segurança que permitiram aquele caos.
Invadiram
o Planalto e estavam quebrando tudo. Da minha janela vi uma fumacinha preta
subindo do prédio do Supremo. Estavam tocando fogo no STF. O caos havia se
espalhado. Era preciso agir rápido.
Minha
ordem era prender todo mundo. Mas nem isso foi possível de imediato.
Depois
da destruição, deu-se um embate com os militares.
Fui
ao Quartel do Exército e disse que a gente ia prender todo mundo que estava no
acampamento. Foi quando vi tanques saindo de uma ruazinha. Se alguém ainda tinha
alguma dúvida de que um golpe estava em andamento, ela se dissipou naquele
momento.
A
maioria do Alto-Comando torcia — e friso este verbo, torcia — para que o
levante tivesse dado certo.
Repeti
sem parar para o comandante do Exército: ‘General, nós vamos pegar todos, sem
exceção. É a minha ordem’. Ele tentou crescer para cima de mim. Teve dedos em
riste de lado a lado.
A
adrenalina estava a mil.
Eu
repetia: ‘Estão todos presos, estão todos presos’. Ele dizia: ‘Não, não, não’.
No
meio dessa discussão, outro general interveio e disse que a polícia nunca tinha
entrado no quartel para prender pessoas. Essa é uma evidência acima de qualquer
dúvida razoável de que havia a simpatia nas Forças por uma virada de mesa.
O
Exército estava dividido entre bolsonaristas golpistas e bolsonaristas
legalistas, mas sempre bolsonaristas.
Diante
de um confronto iminente, concordamos em efetuar as prisões dos golpistas
apenas no dia seguinte.
Vendo
hoje, seis meses depois, acho que foi o certo a fazer.
Se
fosse diferente, seria perigoso para as pessoas e talvez pior ainda para a
democracia. Imagina a PM de um lado e o Exército do outro…
Meu
pai era deputado estadual quando foi cassado em 64, depois do golpe militar.
Isso marcou a minha vida.
No
dia 8 de janeiro, testemunhei uma tentativa de golpe da minha janela. Alguns
negacionistas dizem que aquilo foi mera arruaça, coisa de baderneiros.
Não
foi.
No
auge da pandemia, quando não tinha mais vaga de hospital no Maranhão para
internar os doentes, irado, soquei a parede. Naquele dia não soquei a parede,
mas tive vontade de socar certas pessoas.
GILMAR
MENDES: “FELIZMENTE ISSO ACONTECEU EM JANEIRO”
Decano
do Supremo Tribunal Federal, que chorou ao ver os escombros, destaca a forte
reação das instituições e diz que o ataque teria desfecho imprevisível caso
tivesse ocorrido durante o governo de Jair Bolsonaro
Almoçava
com um amigo juiz em Portugal e, por coincidência, falávamos sobre como havia
sido relativamente pacífica a transição de governo no Brasil quando recebi pelo
celular as primeiras imagens da confusão.
Fiquei
em choque.
Logo
lembrei que tinha feito um prognóstico caso Bolsonaro ganhasse as eleições: o
conflito com o Supremo Tribunal aumentaria.
Pessoas
próximas afirmavam que, se ele vencesse, teríamos de deixar o país.
Tudo
que eu estava falando sobre o sucesso da passagem de poder tinha acabado de ser
revogado.
Desde
as comemorações do Sete de Setembro de 2021 eu temia que algo como aquilo
ocorresse.
Liguei
de imediato para os ministros Flávio Dino, Alexandre de Moraes, e para a
presidente Rosa Weber.
Todos
estavam tentando entender o que estava acontecendo.
Flávio
me descreveu pari passu a invasão dos prédios, a omissão da polícia e
discutimos o que poderia ser feito de imediato.
Depois
que me apossei da realidade, passei a pensar nos instrumentos que poderiam ser
usados para enfrentar aquela situação caótica: estado de defesa, intervenção
federal.
Quase
não dormi naquela noite. As imagens não saíam da minha cabeça. Era a
confirmação dos meus maus pressentimentos.
Consegui
antecipar minha passagem. Do aeroporto, fui direto para o tribunal.
Difícil
descrever a cena com a qual me deparei, embora já tivesse visto pela televisão.
In loco, era bem pior. Não resisti — e chorei.
A
sensação foi de chegar em sua própria casa e vê-la totalmente destruída.
Perambulei pelos andares. Eram só escombros. Os aparelhos quebrados, as obras
de arte no chão, as salas alagadas, os móveis queimados.
Consegui
sentir o nível de animosidade daquelas pessoas.
Lembrei
de um dia, no início da pandemia, em que o Bolsonaro me falou das dificuldades
da campanha, da facada e se pôs convulsivamente a chorar.
Fiquei
com a impressão de que ele era uma alma torturada. Não sei por que esse
encontro me vem agora à memória. O fato é que o presidente era muito dado a
teorias conspiratórias. Ele despertou esse sentimento em seus apoiadores.
Achava que nós queríamos derrubá-lo.
Por
quatro anos, as pessoas foram bombardeadas por notícias dessa natureza.
Durante
o voo de volta, muita coisa passou pela minha cabeça.
O
país enfrenta uma série de problemas, mas sempre achei que tínhamos maturidade
para driblar coisas assim, a despeito de toda a radicalização.
Ainda
existem detalhes obscuros nessa história.
Tenho
a impressão de que a maioria do Alto-Comando das Forças Armadas é legalista,
mas não foi por acaso que a polícia de Brasília não fez nada naquele dia.
É
preciso investigar a fundo e punir quem cometeu crimes.
Percebi
também que a canalização do ódio contra o tribunal foi muito maior do que com o
Planalto e o Congresso.
Acho
até elogioso porque, pelo menos na cabeça das pessoas que destruíram tudo, isso
mostra que fomos o órgão que mais guerreou, mais enfrentou, mais tentou colocar
limites a esse poder inabalável.
Enquanto
caminhava pelos escombros, procurei respostas para duas perguntas: o que
fizemos para chegar a esse ponto e o que devemos fazer para evitar que isso não
se repita.
Nenhum
avião cai por causa de um erro só e tivemos uma sucessão consorciada de
equívocos.
Aliás,
cometemos uma série deles desde que deixamos o populismo avançar, o que
resultou na eleição de Bolsonaro.
Repito:
não acreditava e continuo não acreditando que houvesse condições para um golpe.
Havia pessoas que alimentavam essa ideia maluca. Felizmente tudo ocorreu em
janeiro. Se tivesse sido antes, durante o governo anterior, muito provavelmente
teríamos a decretação da Garantia da Lei e da Ordem e, a partir daí, só Deus
pode responder.
ARTHUR
LIRA: “A DIREITA E O BOLSONARISMO PERDERAM”
O
presidente da Câmara avalia que os ataques foram consequência da polarização
política que ainda divide o país e defende o aprofundamento das investigações
para evitar a consolidação de narrativas falsas
Estava
descansando na minha casa de praia, na Barra de São Miguel (AL), naquela tarde
de domingo. O telefone, de repente, começou a tocar sem parar. Meus assessores
e o pessoal da Polícia Legislativa estavam preocupados com a manifestação, que
começava a se deslocar em direção ao Congresso. Telefonei para o governador Ibaneis
Rocha, que me garantiu que estava tudo sob controle.
‘Governador,
eu não estou vendo a polícia na televisão. Não sei onde ela está’, insisti. Ele
reafirmou que estava tudo normal. Minutos depois, entraram no Congresso. A
segurança começou a me enviar áudios terríveis: ‘Bum!’, bombas, muito barulho,
gente gritando. Não houve como conter a invasão.
O
Congresso é um prédio todo de vidro. Sem a proteção externa, torna-se
totalmente vulnerável. E, como havia advertido ao governador, não vi polícia do
lado de fora.
Decidi
voltar imediatamente a Brasília. Enquanto providenciava o voo, liguei para o
presidente Lula e disse que estava voltando. Ele estava nervoso, tinha uma
evidente convicção de que um golpe estava em andamento.
No
início da noite, quando cheguei, os manifestantes já haviam deixado a Esplanada
e o rastro de destruição.
O
problema naquele momento era outro.
O
presidente culpava o Exército por não ter desmontado o acampamento de onde
partiram os manifestantes. Queria que todos fossem imediatamente presos, mas os
militares resistiam a cumprir a ordem.
Minha
percepção é que o governo não tinha o apoio das Forças Armadas nem das Polícias
Militares.
O
clima era tenso.
Lula
estava revoltado e preocupado com a situação, como todos.
Por
volta de 1 hora da manhã, fui ver de perto o resultado da invasão. Era como se
o Congresso tivesse sido alvo de um bombardeio. Todos os vidros, todos os
móveis da chapelaria, as obras de arte, os documentos — tudo foi destruído.
O
Salão Verde estava encharcado.
O
pessoal entrou nos gabinetes, urinou em cima das mesas, danificou equipamentos
e ateou fogo nos computadores.
Vendo
aquilo, você vai sendo tomado por uma miríade de sentimentos que confundem.
Funcionários que me acompanhavam choravam. Ficou evidente para mim que as
forças policiais se omitiram.
A
Câmara não foi comunicada sobre eventuais riscos de uma manifestação anunciada
com antecedência.
Soubemos
depois que órgãos do próprio governo tinham alertado sobre os riscos. Os
criminosos portavam cassetetes, granadas, armas, bombas caseiras.
Ou
seja, estavam preparados para atacar e ninguém fez nada. Essas situações
precisam ser investigadas, e serão. É para isso que instalamos uma CPI. Ela
terá a oportunidade de esclarecer quem praticou esses crimes, quem incentivou e
também quem prevaricou.
Estou
no Congresso há doze anos e já vi diversas manifestações, mas nada pode ser
comparado ao que houve no 8 de Janeiro.
Ainda
não tenho uma convicção formada sobre o que de fato aconteceu.
Uma
coisa eu posso garantir: aquele movimento radical não representa o pensamento
médio da direita.
Apesar
disso, acho que a direita e o bolsonarismo perderam.
Uns
dizem que a depredação foi guiada por pessoas infiltradas, que nada tinham a
ver com o protesto. Outros afirmam que foi uma tentativa de golpe. As
narrativas reproduzem a polarização política no país.
O
que a gente pode afirmar é que houve um movimento organizado de desrespeito à
ordem, uma agressão inominável às instituições, uma tentativa de criação de um
Estado anárquico.
Para
um golpe, era preciso apoio bélico, militar, e não acredito que se chegou a
esse ponto.
Torço
e trabalho para que esse episódio seja completamente esclarecido, que passe
para a história sem versões de conveniência, com os responsáveis devidamente
punidos, para que isso nunca mais se repita.
Fonte:
Veja
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