Angela Davis
defende feminismo abolicionista e que justiça não seja vingança
Sentenças
com penas longas não resolvem o problema estrutural da violência e não garantem
justiça. A ideia de que a justiça pode e deve ser alcançada por meios
alternativos está no centro do conceito que une o abolicionismo penal e o
feminismo, defendido pela filósofa norte-americana e professora emérita da
Universidade da Califórnia Angela Davis, com quem a Agência Pública conversou.
“O feminismo abolicionista está sempre olhando
para um tempo em que a justiça não seja vingativa. Para um tempo em que a
justiça seja sobre a construção de harmonia e bem estar. Mas nós estamos convivendo
com essa justiça vingativa. Essa é a forma de justiça que existe em
praticamente todos os sistema judiciários no mundo, no momento”, disse Davis,
que está no Brasil para lançar o livro “Abolicionismo. Feminismo. Já.”. A obra
foi escrita por ela em colaboração com as autoras Gina Dent, Erica Meiners e
Beth Richie, referências em estudos de gênero e raça. Editado no Brasil pela
Companhia das Letras, o livro será lançado em Salvador, nesta terça-feira (11),
no XVIII Congresso Internacional da ABRALIC (Associação Brasileira de
Literatura Comparada). A Agência Pública
entrevistou Davis e Dent durante evento para jornalistas, no último domingo
(9), em Salvador (BA).
Segundo
Davis, essa justiça vingativa, que a maioria das pessoas tem internalizada,
afeta as emoções. Por isso, “muitos não acreditam que a justiça foi feita, a
não ser que ela tenha sido promovida a partir de um número de anos de sentença
muito longa, incluindo, nos EUA, onde há a pena de morte”, explica. O conceito
proposto pelas autoras também fala sobre prática e um exercício afrotuturista,
ou seja, de criação de um futuro melhor para a população negra. “O feminismo
abolicionista precisa abraçar essas duas formas de justiça, essa com a qual
convivemos atualmente e a que queremos para o futuro”, pontua a professora.
Nos
Estados Unidos, o encarceramento em massa não chegou nem perto de resolver as
raízes da violência na sociedade, argumenta Davis. O país ocupa o primeiro
lugar no ranking mundial dos que mais encarceram, onde 1,7 milhão de pessoas
estão presas, segundo dados do World Prison Brief. A população americana é de
aproximadamente 330 milhões. O Brasil figura há anos no terceiro lugar nesse
ranking, com uma população carcerária de 820 mil pessoas, segundo dados de 2022
do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Destes, 67,4% são negros.
Davis
diz que tem acompanhado a situação política do Brasil que, para ela, deu um
passo à frente do seu próprio país com relação ao combate ao fascismo.
“Independente
das semelhanças políticas do Brasil e dos Estados Unidos, é importante
enfatizar que os brasileiros impediram a reeleição de Bolsonaro e ao invés
disso elegeram um candidato progressista e socialista. Nos Estados Unidos, nós
conseguimos aquilo que chamamos de expulsar o fascismo da Casa Branca, mas a
pessoa que nós elegemos é uma pessoa que não tem desenvolvido suas funções da
maneira que muitos de nós gostaríamos”, pontua.
O
papel do feminismo abolicionista, tanto no cenário brasileiro quanto no
norte-americano, argumenta Davis, é ser crítico até mesmo de políticas
supostamente progressistas.
“O
feminismo abolicionista nos leva a pensar sobre aquilo que nós poderíamos
considerar uma política contraditória e, às vezes, até abraçar as contradições.
De tal maneira que possamos apoiar o governo progressista no Brasil e ao mesmo
tempo temos que desafiar e sermos críticas. Em vez de abraçar essas políticas
voltadas para a questão da segurança, que são de cunho racista, de violência
racista, podemos então reivindicar outras formas melhores de estabelecer a
segurança, com moradia, assistência de saúde, especialmente saúde mental,
educação e outras”, defende.
O
simples ato de chamar a polícia pode sujeitar comunidades negras a serem
violentadas também pelo Estado, comenta Gina Dent, coautora do livro e professora
associada nas áreas de estudos feministas, história da consciência e estudos
legais na Universidade da Califórnia.
As
autoras dizem que é preciso reconhecer os danos causados pela violência do
Estado em relação a pessoas negras e não investir novamente em um sistema que
causa essa violência. “São formas de alcançar justiça na sociedade e
restabelecer o equilíbrio reconhecendo os danos, mas não reforçando de novo o
sistema [de justiça penal] que causou e causa tanta dor. O feminismo
abolicionista resiste à individualização dos danos causados, nós resistimos a
participar de uma sociedade que só nos convida a fazer parte dela se
participarmos desse sistema”, reforça Dent.
“Precisamos
compreender porque as pessoas sentem a necessidade de penas mais pesadas, mais
longas. Isso não significa que nós não possamos refletir sobre como a justiça
deve ser desdobrada”, acrescenta Angela Davis. “E precisamos refletir sobre a
necessidade de punir os policiais que se envolvem em violências. Nada vai mudar de maneira fundamental, nada
vai mudar em termos da estrutura.”, propõe.
• Objetivo do feminismo abolicionista é
fim das prisões
O
objetivo final do feminismo abolicionista é o fim das prisões, da justiça
vingativa e das forças policiais. Essas metas podem parecer utópicas, mas Davis
e Dent defendem que na verdade eles são práticas que podem ser construídas e
aperfeiçoadas no agora.
“Desde
que houve a implementação, a invenção do sistema carcerário, as chamadas em
prol de reformas dizem respeito a ‘prisões melhores’. Esses chamados por
reformas têm tornado, na verdade, esse sistema carcerário cada vez mais
poderoso e cada vez mais permanente”, explica Davis.
Em
suma, elas defendem o abolicionismo carcerário como uma “metodologia flexível”
e uma linha de chegada, que também pode envolver as reformas necessárias, ao
longo do percurso. “Queremos, em última instância, que sejam observados
determinados problemas como problemas carcerários. Queremos eliminar as
prisões, a polícia, as forças policiais, as forças de segurança no formato em
que existem atualmente. Mas há reformas que nós apoiamos, quando tornam a vida
das pessoas que estão atrás das grades mais habitável, mais confortável”,
explica Dent.
Para
a autora, é preciso “abordar o dano que vemos no agora e trabalhar em prol das
reformas que acreditamos que vão levar à maior liberdade. Como alguém que já
lecionou dentro do sistema carcerário – que é um tipo de reforma, a educação –
eu me sinto bastante contemplada pelo fato de que a educação fez com que as
pessoas aceitassem melhor o conhecimento ou a incorporação dessas pessoas que
passam pelo sistema prisional”, diz Davis. “Infelizmente, o feminismo
abolicionista não é uma forma de mágica”, pontua Dent.
• “É preciso conectar experiências
abolicionistas feministas ao redor do mundo”
Angela
Davis e Gina Dent defendem que “é preciso conectar as experiências feministas
abolicionistas ao redor do mundo, principalmente no Sul Global”. “Eu já afirmei
várias vezes aqui no Brasil e nos Estados que nós temos muito a aprender com a
tradição dos feminismos negros brasileiros. Mulheres como Lélia Gonzalez, que
eu conheci em 1995. O ecossistema feminista tem que ser internacionalista”,
afirma Davis.
Lideranças
feministas negras, como a ex-vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), se tornaram
símbolos mundiais de resistência à violência policial e militarização das
polícias. O trabalho político da vereadora carioca em vida e seu brutal
assassinato são abordados no livro pelas autoras norte-americanas como exemplos
de movimentos que transcedem fronteiras nacionais.
“Em
qualquer lugar que estejamos nesse mundo, as contribuições das mulheres negras
tendem a ser apagadas. Tem sido maravilhoso durante esse último período que
mulheres negras, como Marielle Franco, surgiram como o rosto desse movimento,
especialmente movimentos contra a militarização da polícia. Ela é uma das
maiores figuras dessa era não só no Brasil, mas também nos Estados Unidos”, diz
Angela Davis
Outro
marco é a insurgência global do #BlackLivesMatter [#VidasNegrasImportam] em
2020, após o assassinato de George Floyd, um homem negro, morto por um policial
branco nos Estados Unidos. As repercussões e sismos causados por mobilizações
antirracistas e abolicionistas locais se espalharam como chamas.
Essas
mobilizações, no entanto, também trazem perigos. Dent explica que um deles é a
incorporação de pautas antirracistas e feministas pelo status quo. “As formas
de representação podem nos confundir e nos levar a abandonarmos as mesmas
estratégias que nos permitiram sobreviver até aqui”, considera. “As raízes
feministas negras do abolicionismo são modeladas para trazer para dentro da
sociedade essas formas de resistência. Nós precisamos resistir aos elogios da
câmera, da atenção, da pressuposição de que termos um bom emprego nos tornará
mais iguais”, considera.
Para
a professora Gina Dent, o conceito de igualdade carrega um problema, já que foi
estabelecido segundo as normas da sociedade dominante. “Precisamos documentar
nossas próprias práticas, sustentá-las entre nós e levá-las ao resto do mundo”,
finaliza.
O
feminismo abolicionista tem que ser, segundo as intelectuais, antes de tudo,
anticapitalista e aliado a quem está na base da pirâmide social. “O feminismo de nossa era é um feminismo
moldado por mulheres da classe trabalhadora, mulheres negras, envolvidas com o
movimento ambientalista. Em outras palavras, não diz respeito a mulheres
avançando profissionalmente de forma individual. Diz respeito a mudar a
sociedade, criar um mundo melhor para todas as pessoas”, diz Angela Davis.
EUA: cancelar as minorias étnicas. Por
Luigi Benevelli
"Após
o recente posicionamento da Suprema Corte Federal, a tendência claramente
discriminatória irá, portanto, retomar força, impedindo a muitos não-brancos o
acesso aos estudos superiores e às profissões", escreve Luigi Benevelli,
médico italiano, em artigo publicado por Settimana News.
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Eis o artigo.
No
final de junho passado, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu pela
anulação da chamada discriminação positiva, ou seja, a norma que facilitava o
acesso ao ensino superior para alunos pertencentes a grupos étnicos não
brancos, em especial afro-americanos, nativos indígenas e latinos.
A
revogação - que não se aplica ao acesso às academias militares - significa que
a pertença a tais grupos não constitui, a partir de agora, um critério de
favorecimento para a admissão às universidades estadunidenses.
O
presidente da Suprema Corte, John Roberts, comentou que por demasiado tempo as
universidades "concluíram, erroneamente, que o ponto de referência da
identidade de um indivíduo não é constituído pelos desafios vencidos, pelas
habilidades adquiridas ou as lições aprendidas, mas pela cor de sua pele".
A
decisão criou uma barreira aos caminhos abertos pela resolução anterior Brown
vs. Conselho de Educação de 1954, que aboliu a segregação escolar, bem como
pelo Civil Right Act com o qual em 1964 - presidente Lyndon Johnson –
afirmava-se o dever de garantir a igualdade entre todos os cidadãos da União.
Para
entender o significado de um confronto tão duro dentro da sociedade
estadunidense, é importante considerar a recente pesquisa histórica realizada
pela APA (Associação Americana de Psicologia), que reconstruiu a sucessão,
desde sua fundação em 1892 até os dias atuais, de suas próprias pesquisas e posicionamentos,
quase todos destinados a privilegiar a cultura dos brancos assumida como padrão
de referência da normalidade.
Essas
culturas científicas e profissionais inserem-se no contexto dos eventos
políticos, históricos e sociais dos EUA, partindo, em particular, da questão da
escravatura e do status dos povos nativos despojados de terras e da criação dos
filhos. Nesse sentido, pode-se falar de uma psicologia racista que tem
legitimado políticas eugênicas, pensando demonstrar a inferioridade mental de negros
e a falta de confiabilidade dos nativos, apoiando a existência de hierarquias
entre os humanos com base em dados biológicos.
Aqui
estão alguns exemplos históricos.
Em
1904, Stanley Hall, primeiro presidente da APA, publicou Adolescence, um texto
em que define os adultos nativos, mentalmente, semelhante a crianças e
adolescentes brancos. Ele defendeu a necessidade de "programas de
civilização" adaptados às necessidades dos nativos para erradicar suas
culturas, línguas e espiritualidades.
Em
1910, foi criado o Cartório de Registro Eugenético (Eugenic Record Office) na
Estação de Washington para a Evolução Experimental do Instituto Carnegie:
tornou-se referência para pesquisas em eugenia, promoveu programas de
esterilização de indivíduos de raças consideradas inferiores e apoiou políticas
e legislações anti-imigração baseadas na discriminação racial.
Em
1914, William McDougall, professor titular de psicologia da Universidade de
Harvard, desenvolveu um projeto de estudo sobre as bases hereditárias das qualidades
mentais: ele se pronunciou a favor das restrições aos casamentos entre
indivíduos de raças diferentes, argumentando que a descendência é pouco dotada
intelectualmente; propôs a criação de territórios separados de vida para os
negros estadunidenses e incentivou a psicologia científica a estabelecer
padrões e definir testes para identificar os sujeitos mentalmente degenerados,
pouco ou nada dotados, a serem destinados à esterilização. Em 1930, cerca de
35.000 pessoas diagnosticadas como débeis mentais ou deficientes mentais foram
submetidas à esterilização. A maioria delas eram imigrantes, negros, nativos,
brancos pobres e pessoas portadoras de deficiência.
Em
1916, Lewis Terman criou a Escala Stanford-Binet. Usando as diferenças que
reuniu nos resultados de desempenho, defendeu escolas e sistemas educacionais
separados para crianças negras, mexicanas e nativas a serem destinadas a
tornar-se simplesmente "bons trabalhadores".
No
mesmo ano, G. O. Ferguson publicou The psychology of the Negro, um clássico do
racismo científico, em que as características de capacidade de raciocínio,
memória e inteligência foram associadas à cor da pele, para concluir que os
negros são mais instáveis emocionalmente e menos capazes de pensamento
abstrato. Ele também formulou a mulatto hypothesis, segundo a qual as
capacidades mentais dos mestiços seriam proporcionais à porcentagem de sangue
branco que possuem.
Em
1924 foi aprovada a lei Johnson-Reed que limitou a imigração do sul e do leste
da Europa, enquanto favoreceu aquela do norte e do oeste: o objetivo da lei era
preservar a homogeneidade da raça estadunidense. Italianos, gregos, europeus
orientais, judeus, foram fortemente afetados. A exclusão foi então estendida
também aos asiáticos.
Os
jovens negros tiveram dificuldades para ter acesso a profissões e carreiras. Só
foi em 1951 que Efrain Sanchez-Hidalgo, primeiro porto-riquenho, obteve seu
doutorado em psicologia na Universidade de Columbia; em 1952, Carolyn Lewis
Attneave foi a primeira índia estadunidense a se formar em Stanford com o
título de Doutora em Psicologia. Mas naquele mesmo ano, o presidente da APA,
Henry E. Garrett, testemunhou em juízo em apoio à segregação racial; Garrett
colaborará até sua morte em 1973 com os movimentos racistas e neonazistas.
Somente
em 1963 o Comitê da APA para a Igualdade de Acesso a Estudos Psicológicos
documentou a escassez de oportunidades de estudo e trabalho oferecidas a
estudantes e psicólogos de pele negra.
Em
1966, Kenneth Clark se tornou o primeiro presidente negro, 74 anos após a
criação da APA, enquanto o uso discriminatório de testes continuava. Arthur
McDonald foi o primeiro índio estadunidense a obter um doutorado em psicologia
pela Universidade de Dakota do Sul. No mesmo ano, Martin Luther King foi
convidado à convenção anual da APA.
Em
1973, uma pesquisa revelou que, de 1.335 matriculados, os estudantes de
psicologia chicanos na Universidade de Chicago eram apenas 15, os latinos
graduandos e inscritos em mestrados 51 e 37 em cursos de doutorado.
Em
1978, o primeiro relatório da Comissão do Presidente sobre Saúde Mental
documentou a presença anormal de negros nas estatísticas de patologias mentais.
Em 1979, nas audiências do Congresso para verificar a confiabilidade dos dados
das pesquisas em psicologia, os psicólogos brancos atestaram a utilidade e o
valor de atribuir pontuação a desempenhos ligados às habilidades, enquanto os
psicólogos negros reiteraram que os testes padronizados eram pouco confiáveis e
discriminatórios. No mesmo ano, a Corte Distrital Federal do Norte da Califórnia
decidiu a favor de 5 estudantes negros matriculados em escolas especiais com
base nos resultados de testes psicológicos.
Em
1983, Rogler forneceu dados mostrando que porto-riquenhos e negros eram mais
diagnosticados com portadores de transtornos mentais e, consequentemente,
encaminhados para centros de saúde mental.
Em
2019, a APA divulgou a composição de seus membros por pertença étnica e
“racial”: asiáticos 4% (4.887), negros afro-americanos 3% (3.733), hispânicos
7% (8.203), outros (índios, nativos do Alasca, nativos havaianos e das ilhas do
Pacífico) 2% (2.145), brancos 83% (91.302). Enquanto a composição da população
dos EUA é a seguinte: asiáticos 5,9%, negros afro-americanos 13,4%, hispânicos
18,5%, outros 4,3%, brancos 60%.
Após
o recente posicionamento da Suprema Corte Federal, a tendência claramente
discriminatória irá, portanto, retomar força, impedindo a muitos não-brancos o
acesso aos estudos superiores e às profissões.
Entre
as personalidades ilustres que no passado desfrutaram das oportunidades
oferecidas pelas disposições recentemente revogadas pela Corte estão Barak
Obama e sua esposa Michelle.
Fonte:
Por Débora Britto, da Agencia Pública/IHU OnLine
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