A JORNADA DE BRUNO
PEREIRA EM BUSCA DE INDÍGENAS ISOLADOS
Um filme de 2022 que ainda não estreou em circuito
comercial oferece uma oportunidade única para se ver em ação o indigenista Bruno
Pereira, assassinado há pouco mais de um ano junto com o jornalista britânico
Dom Phillips. A invenção do outro, do cineasta
pernambucano Bruno Jorge, acompanha uma expedição realizada em março de 2019
sob a liderança de Pereira, que era coordenador-geral de Indígenas Isolados da
Funai, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas.
A
missão buscou fazer contato com um grupo de Korubos que vivem no Vale do Javari, no extremo Oeste
do Amazonas, perto da tríplice fronteira do Brasil com Colômbia e Peru, onde
está a maior concentração de povos isolados do mundo. Pereira foi exonerado do
cargo que ocupava em outubro de 2019, após liderar investidas contra o garimpo
ilegal na Terra Indígena Yanomami. Depois, se licenciou da Funai e passou a
trabalhar como assessor da Univaja, a União dos Povos Indígenas do Vale do
Javari.
O
documentário de Bruno Jorge só foi finalizado três anos e meio após a
expedição, quando Pereira já estava morto. Estreou em novembro do ano passado
no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, onde levou o prêmio de melhor
longa-metragem e outras três distinções. O filme vem percorrendo o circuito de
festivais no Brasil e no exterior e ainda não há previsão de estreia nas salas
de cinema ou plataformas de streaming.
Bruno
Pereira estava atrás de um cineasta que pudesse documentar a expedição de
contato com os Korubo, e convidou Bruno Jorge, que é pernambucano como ele. O indigenista
havia visto o filme anterior do cineasta, Piripkura,
codirigido por Mariana Oliva e Renata Terra. Esse documentário acompanha um
agente da Funai que monitora há mais de três décadas dois indígenas nômades do
povo Piripkura, em Mato Grosso. “Ficamos meses conversando até nos encontrarmos
em Tabatinga para a expedição”, disse o diretor à piauí.
A
operação liderada por Pereira foi a maior expedição de contato realizada nas
últimas décadas e estava sendo tramada há anos. Ironicamente, acabou
concretizada no início do governo Bolsonaro, que ficou marcado pelos ataques aos direitos dos povos
indígenas.
“O álibi que Bruno encontrou para me colocar na expedição foi justamente que eu
fizesse registros que pudessem legitimar o trabalho deles diante do próprio
governo”, disse Jorge.
Integrantes dos Korubo já haviam sido contatados pela
Funai desde 1996. Em 2014, um grupo se desgarrou e entrou em conflito com os
Matis, povo com quem os Korubo têm um histórico de violência que vem ganhando
escala nos últimos anos e levou a mortes dos dois lados. Esse núcleo foi
contatado pela Funai e vivia desde então longe de seus parentes. Promover o reencontro
deles com o núcleo original era um dos propósitos da expedição de 2019. Outro
objetivo era apaziguar as relações dos Korubo com os Matis. “Os indígenas
isolados acreditavam que aqueles que estavam conosco tinham sido mortos pelos
Matis”, disse Bruno Jorge.
Seis
dos Korubo que já haviam sido contatados fizeram parte da expedição liderada
por Bruno Pereira. Eles ajudariam a equipe da Funai a localizar os indígenas
isolados e a estabelecer contato com eles. Era importante deixar claro que se
tratava de uma missão de paz – seis funcionários da Funai haviam sido mortos em
tentativas anteriores de contato com os Korubo.
Pereira
planejou a expedição para a época da cheia, pois durante a seca seria
impossível chegar de barco até a área onde estavam os indígenas isolados. O
grupo enfrentou sete dias de viagem de barco até o ponto em que iniciaram a
busca por terra. A equipe se cercou de cuidados para que, em caso de contato,
os indígenas isolados não contraíssem resfriado ou outras doenças. Em dado
momento, o grupo chegou a retardar seu avanço porque havia integrantes com
sintomas de gripe.
A
câmera de Bruno Jorge registrou o momento em que os Korubo que guiavam o grupo
da Funai deparam finalmente com seus parentes que não viam há anos. As cenas do
reencontro registram a alegria e a surpresa de um reencontro que alguns deles
imaginavam impossível, e que poria fim a anos de saudade acumulada. Desde já,
estão entre as imagens mais emocionantes já produzidas pelo cinema brasileiro.
O reencontro se dá pouco após a metade do filme, que tem 2h24min de duração, e
marca um ponto de virada narrativo, a partir do qual os Korubo se tornam os
sujeitos das imagens.
Bruno
Jorge filmou freneticamente durante a expedição, que durou 34 dias. Começava
antes de todos acordarem e ia até o fim da noite. Voltou da viagem com mais de
60 horas de filmagens. Mas aquilo era só o começo: o diretor ainda precisava
traduzir os diálogos entre os indígenas na língua korubo. Só conseguiu
viabilizar a tradução em 2021, por causa da pandemia que restringiu o acesso às
terras indígenas. Seu intérprete foi Takvan Vakwë, um Korubo que havia sido
contatado em 1996, com quem Jorge passou uma temporada de oito dias de trabalho
intensivo na cidade de Tabatinga. “Só ali descobri o filme que tinha feito e as
coisas começaram a ficar mais claras”, disse o cineasta. Foi daquele processo
também que emergiu o título do filme. “Depois que compreendi o que de fato
estava sendo dito por eles para além da comunicação corporal, entendi o quanto
a gente inventa o outro como forma de inventar a si mesmo.”
Depois disso, Jorge passou cerca de um ano montando o
filme. Chegou a mostrar uma versão para Bruno Pereira, que se emocionou com as
imagens. No meio do processo, o indigenista foi assassinado com Dom Phillips no
Vale do Javari, durante a pesquisa para um livro que o britânico preparava
sobre a Amazônia. O diretor tinha planos de filmar outro documentário sobre o
trabalho que Pereira vinha fazendo junto à Univaja. O indigenista estava em
contato com o cineasta durante a viagem em que foi emboscado e morto por
pescadores ilegais. “No dia em que ele viajou, mandou um áudio dizendo que
ligaria quando chegasse em Atalaia do Norte”, contou Jorge. “Nunca ligou.”
Para
o diretor, a tragédia significou também a perda de dois amigos e o fim de um
projeto. “Foram vários lutos, ainda estou tentando entender.” O assassinato não
fez Jorge mudar o rumo do filme que estava finalizando. Acrescentou informações
sobre a morte de Pereira ao final e dedicou o filme à sua memória, mas a versão
que está sendo exibida em festivais é muito próxima daquela que o indigenista
havia visto meses antes.
De
uma hora para outra, as imagens de Bruno Pereira ganharam grande interesse
político e jornalístico. Bruno Jorge diz ter sido procurado por parlamentares e
por organizações não governamentais da área socioambiental interessadas em
investir no documentário. Preferiu finalizá-lo praticamente sozinho, como tem
feito em seus outros filmes. “Para manter a independência,
entendi que precisaria fazer tudo até o final da maneira mais autônoma
possível”, afirmou.
Jorge
foi procurado também pela imprensa após o assassinato de Pereira e Phillips.
Cedeu algumas imagens do primeiro encontro do grupo, em 2019, e depois
autorizou o uso de outras sequências num documentário da jornalista Sonia Bridi
sobre o assassinato. Com exceção dessas cenas, tudo o que se vê em A
invenção do outro é novidade para o público, que poderá testemunhar em
primeira mão a extrema empatia de Bruno Pereira com os indígenas e seu
comprometimento inegociável com a luta pelos direitos dos povos originários.
Bruno
Jorge preferiu não dar contorno político ao documentário. “Sei que seria muito
mais fácil para a repercussão fazer um filme mais curto, criar campos heroicos
no próprio filme ou me vincular a um espectro ideológico”, afirmou. Mesmo que o
diretor não tenha cedido a essa tentação, o simples fato de contar essa
história no Brasil de 2023 acaba funcionando como um gesto de defesa dos direitos
dos indígenas e de desagravo ao desmonte da política indigenista promovido pelo
governo de Jair Bolsonaro.
Depois
das láureas conquistadas no Festival de Brasília, A invenção do
outro ganhou ainda o prêmio de melhor documentário internacional no
festival belga Docville e foi considerado melhor longa-metragem tanto pelo júri
quanto pelo público da Mostra Ecofalante de Cinema. No fim de junho, levou o
prêmio do júri de imprensa no Festival Internacional de Cinema e Vídeo
Ambiental, do qual a piauí fez
parte.
Fonte:
Revista Piauí
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