terça-feira, 4 de abril de 2023

Terreiro da Casa Branca, em Salvador, acumula cerca de 40 denúncias de invasão desde 2000

Sob ameaça de uma obra irregular vizinha, o Terreiro da Casa Branca — Ilê Axé Iyá Nassô Oká, no bairro do Engenho Velho da Federação, em Salvador, acumula cerca de 40 denúncias de invasões a sua sede durante 23 anos. “Desde o ano 2000, a casa oficia ao Iphan a existência de obras irregulares no entorno do terreno. Ao longo desse tempo, o próprio órgão confeccionou 33 autos de infração constatando o fato”, declarou a advogada Isaura Genoveva, equede do centro religioso, em entrevista coletiva concedida durante esta segunda-feira (3).

O CORREIO tentou, sem sucesso, ter acesso à descrição dos casos citados. Genoveva, porém, relembrou que, antes mesmo desses episódios, aconteceu uma invasão da parte frontal do território por um posto de gasolina. Na época, a Casa Branca não possuía a escritura do local e precisou entrar com uma ação na Justiça.

“Houve, no passado, um posto de gasolina que invadia a praça, e a comunidade conseguiu retirá-lo e implantar a Praça de Oxum, que está preservada até hoje”, exaltou o equipamento, inaugurado em 1993 e que levou a assinatura de Oscar Niemeyer, um dos maiores arquitetos brasileiros.

Tamanho feito faz jus à história do terreiro, que foi o primeiro a ter recebido, do Iphan, o reconhecimento como Patrimônio Cultural Brasileiro e, também, a ter sido inscrito nos livros do Tombo Histórico e Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, em 1984. Além disso, é considerado um exemplar típico do modelo básico jeje-nagô. Fundado em 1830 e mantido pela Associação São Jorge do Engenho Velho, a Casa Branca é, ainda, o terreiro mais antigo do Brasil.

•        Obra embargada

Iniciada em 2019, a obra adjacente ao centro religioso, na Ladeira Manoel Bonfim, possuía cinco pavimentos, mas o último deles foi demolido pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (Sedur), na sexta-feira (31). “Além disso, o acesso à obra foi interditado fisicamente, deixando apenas a passagem liberada para os moradores. Na ocasião, o material de construção também foi apreendido”, afirmou o órgão.

Antes, na terça (28), o prédio foi interditado pela Sedur, que informou que a interdição ocorreu após ter sido identificado material de construção no local e ressaltou que a obra já tinha sido embargada em setembro do ano passado, por falta de alvará, e que “vem realizando constantemente fiscalização na área”.

A imagem do edifício que está sendo erguido assusta, devido a sua proximidade em relação à sede do terreiro. O caso veio à tona depois que os integrantes do centro religiosos denunciaram a situação nas redes sociais, com medo de que a obra desabasse sobre o espaço.

"Já está com cinco andares, desafiando autoridades. Construção segue sem qualquer acompanhamento técnico, e isso só aumenta os riscos. Ao desabar, e os riscos de isso acontecer são óbvios, destruirá a Casa Sagrada do Orixá Omolu e matará filhas e filhos de santo da Casa Branca", diz o texto publicado no Instagram.

Agora, após o embargo da obra, a Casa Branca aguarda os encaminhamentos jurídicos resultantes da ocorrência, afirmou Isaura Genoveva. Segundo a advogada, a comunidade tem acompanhado a situação pelas redes sociais, porém não recebeu notificação formal por parte do órgão municipal.

“Nós acompanhamos pelas redes sociais que a prefeitura embargou a obra novamente e que foram demolido o último pavimento e recolhido o material, mas a Casa não recebeu nenhuma notificação oficial sobre isso nem do Iphan [Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional] nem da prefeitura”, queixou-se Genoveva.

“A Casa aguarda o retorno para saber se tem risco, ou não, de desabamento e de invadir o espaço sagrado do território. [...] Os órgãos públicos, como o Iphan, é que dizem o que está acontecendo e o que põe em risco a comunidade”, acrescentou ela, que espera “a melhor solução possível para a Casa Branca e para toda a comunidade”.

Ainda de acordo com a equede do terreiro, o Ministério Público estadual (MP-BA) foi acionado formalmente em 2021. Com isso, um inquérito civil público chegou a ser instaurado, para investigar o caso, mas não há informações sobre seu andamento. Procurado pela reportagem, o MP, assim como o Iphan, não deu retorno até o fechamento da matéria.

•        Visita do Crea

Diante da repercussão, o presidente do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia da Bahia (Crea-BA), Joseval Carqueija, resolveu visitar o centro religioso na sexta-feira, acompanhado pelo coordenador de fiscalização Marcos Bezerra e pelo supervisor Marcelo Gomes. Durante a visita, foi confirmada a inexistência de profissional responsável pela execução da obra.

“Viemos verificar de perto a situação, pois, embora o Crea seja responsável por fiscalização do exercício profissional, podemos e devemos atuar em parceria aos demais órgãos públicos em situações como essa. Enviaremos as informações ao Ministério Público, para que as devidas providências sejam tomadas”, declarou o presidente.

•        Perdas sem dimensão

Sem ter dimensão da área total perdida pela Casa Branca em decorrência de invasões, Isaura Genoveva disse que seria necessária a atuação do Iphan. “A gente tem um registro da planta, da época do tombamento, e precisa, agora, que o Iphan elabore um laudo técnico que dimensione quanto a gente perdeu território, para saber o que é possível fazer para reintegrar essa área ao terreiro”, justificou.

Presente na entrevista coletiva, o padre Lázaro Muniz, da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e membro do Conselho Inter-religioso da Bahia reiterou a necessidade de proteger os espaços pertencentes a religiões de matriz africana. “O Terreiro da Casa Branca é um desses espaços sagrados de grande importância para a Bahia e o Brasil e deve ser preservado. Não só porque é tombado mas também por, antes de tudo, ser um espaço onde uma comunidade religiosa se congrega”, observou Muniz.

O doutor em Antropologia Ordep Serra, que é também ogã da Casa Branca, classificou o episódio mais recente como ‘agressão monstruosa’. “Só tem um jeito: demolição total, já!”, exclamou ele. “O Iphan precisa tomar medidas judiciais sérias, porque esse é o primeiro monumento negro tombado no Brasil. Ele antecedeu o tombamento da Serra da Barriga”, enfatizou.

 

Fonte: Correio

 

Nenhum comentário: