terça-feira, 4 de abril de 2023

“Há um conspirador em cada um de nós”, afirma intelectual italiana

mundo mudou repentinamente após a queda das Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001. O curso da história acelerou em uma direção irregular. O que se passava já não podia ser analisado com a lógica do progresso e grande parte dos cidadãos, marcados pelo ressentimento, subscreveram a conspiração. É disso que trata A conspiração no poder (Sexto Piso, 2023), último livro traduzido para o espanhol de Donatella Di Cesare (Roma, 66 anos), uma das mais ponderadas e lúcidas intelectuais da Itália. Nascida em uma família judia, foi educada na Alemanha e foi uma das últimas alunas de Hans-Georg Gadamer. Seus primeiros trabalhos estão próximos da teoria da desconstrução de Derrida. Mais tarde, analisou o nazismo de Heidegger. A obra da filósofa italiana, quase sempre nos afluentes da política, tem marcado boa parte do debate do país nos últimos anos.

>>> Eis a entrevista.

·         Somos todos um pouco conspiradores?

Sim, claro. Mas me afasto do conceito de teorias da conspiração. A pergunta costuma ser formulada em termos de verdadeiro ou falso, como se fossem apenas notícias falsas. E lutam pensando em como evitá-las, comprová-las... Está mal formulado. Os complôs não são apenas declarações falsas ou patologias psíquicas. Não deliram.

·         O que significa?

Que a corrente antienredo também é ineficaz e afeta o mundo da informação. Agindo assim, estigmatizando, corre-se o risco de criar uma separação entre o mundo da mídia e o povo, que busca a verdade. E isso é perigoso. Hoje o mundo inteiro se pergunta quem controla nossos governantes, quem tem o poder. E a questão do complô está ligada a um problema político, ao fato de nos sentirmos excluídos dessa tomada de decisão mesmo vivendo em uma democracia. Sentimo-nos impotentes, gostaríamos de ter voz. Chamamos isso de desafeto e se traduz em abstenção. Mas é uma sensação enorme de impotência.

·         Diante do quê?

Sentimos a presença de um poder inacessível, sem nome e sem rosto. Se há um problema, a resposta é sempre: “A Europa decidiu”. Ou: “Você tem que fazer assim, essas são as regras do mercado”. E é automático imaginar a política como um dispositivo de poder.

·         Visto como tudo funciona, essa conspiração parece algo natural.

Sim. Mas não pode ser subestimado. É uma arma de despolitização das massas. O conspirador padrão senta-se ao computador e tenta criar informações para si mesmo, mas no final cede ao desamparo. Ele tenta desmascarar esse poder, mas na realidade cede a uma passividade.

·         Qual é a causa?

Uma delas é que as partes não têm mais a capacidade de se envolver como antes. Isso causa um distanciamento e isolamento das pessoas. A conspiração não é uma dúvida legítima, mas se torna um dogma sem interesse em verificá-la. Não há coordenação da raiva, da vontade de mudar. 

·         Onde nasce a conspiração moderna?

Um ponto de virada foi a queda das Torres Gêmeas. Por um lado, por não conseguir decifrar a história, para entender o que está por vir. Desaparece a ideia de progresso que guiava a modernidade, a ideia de melhorar sempre. É aí que começa a rachadura do século XXI, a desorientação e a perplexidade. O que vem nos próximos 20 anos é um cisne negro atrás do outro: a crise econômica, a guerra, a pandemia... Espalha-se a ideia de que o progresso está desaparecendo. E diante desse cenário trágico, a tentação é o atalho e questionar quem rege nosso destino e puxa os cordões da ordem mundial. 

·         Sim, mas como disse Kurt Cobain do Nirvana, “ser paranoico não significa que você não está sendo perseguido”.

É verdade: os mercados decidem, somos despossuídos, somos mais impotentes... Há um conspirador em cada um de nós. Mas a conspiração nos dá aquela passividade que acaba premiando as forças políticas reacionárias que apelam ao ressentimento.

·         O último meio século na Itália parece o paraíso das conspirações: os atentados na Praça Fontana, o assassinato de Pasolini, o de Aldo Moro, o desaparecimento de Emanuela Orlandi... Todos sem solução.

A Itália é a terra dos complôs. Por sua história misturada, feita de intrigas, o país de Maquiavel. Quase tudo de relevante que aconteceu nos últimos anos é baseado em um segredo. E todos esses casos influenciam no distanciamento do cidadão da política.

·         Que efeito a conspiração teve na política italiana?

Muito, especialmente em fenômenos como o Movimento 5 Estrelas (M5S). A ligação entre conspiração e populismo é muito importante. A ideia principal é que o povo foi enganado e aparece um profeta que acende a luz e diz que a democracia é uma farsa. No caso dos Irmãos da Itália [partido de Giorgia Meloni] também é evidente. Eles são a nova versão de uma direita reacionária. São pós-fascistas: carregam a mochila do fascismo, mas se adaptando. A mensagem de Meloni é: “Você foi enganado pela Europa e pelo partido da conspiração, que é o partido dos estrangeiros. Então é hora de proteger a Itália para que ela não seja alterada”.

·         Protegê-la de quê?

De forças externas ocultas: Europa, poderes constituídos, migrantes, feministas… É a mensagem vencedora.

·         Quem é Meloni hoje e para onde ela está indo?

Ela vem daquela direita romana com um passado perturbador feito de violência, antissemitismo, bandidos e tantos crimes. Eu vivi esses anos. Meloni é um trauma para a Itália. Para nós é um choque que uma pessoa com esse passado esteja à frente do governo. E a responsabilidade é da esquerda. Mas sua força é que, justamente, vem das pessoas. Uma menina do bairro, de Garbatella. E isso já é uma distância com a esquerda. É um novo animal político, muito habilidoso e difícil de analisar. Não concordo com aqueles que o estudam com as velhas categorias.

·         O nacionalismo é uma forma de conspiração?

Sim, sem dúvida. O nacionalismo que reivindica uma soberania em perigo através da conspiração. Sempre sublinhando certas feridas. E, a meu ver, também se aplica ao Vox.

·         Claro. E para o movimento de independência da Catalunha? Com a ideia de uma Espanha que rouba e dilui a identidade...

Sim… Mutatis mutandis. Mas há aspectos diferentes. Uma coisa é a direita reacionária que está tentando recuperar um boom na Alemanha e na Itália. Mas o movimento de independência da Catalunha tem elementos relacionados com a tensão dentro do Estado espanhol e levanta o problema da coabitação interna. Não é tanto uma questão política.

·         Que impacto a covid-19 teve na conspiração?

A pandemia o potencializou. Foi uma tentativa de explicar um evento dramático com um atalho. Muitos acreditavam que o perigo era exagerado para limitar a liberdade individual. Na Itália, alguns canais, como o TG1, decidiram excluir os conspiradores. Foi um erro. Você não pode estigmatizar um grupo de pessoas. E mais se houver liberdade de expressão.

·         Mesmo que eles espalhem mentiras? Mesmo que alguém diga que não existe, por exemplo, mudança climática?

É um grande problema para o jornalismo, sim. Você tem que analisar caso a caso, mas quando você tem alguém que diz essas coisas, não adianta excluí-lo. É melhor acolher quem assume ou espalha fake news para respondê-las e demonstrá-las com argumentos.

·         Não corre o risco de se tornar um circo inútil?

Mas o outro risco é que se crie uma separação entre a esfera da informação, protegida do ponto de vista da verdade e da ciência, e qualquer outra parte, a dos conspiradores. Essa rachadura é um problema de informação. Na Itália já aconteceu. Há um distanciamento entre os jornais e aqueles que constroem sua própria informação.

·         Você mesmo experimentou um episódio de marginalização na mídia porque suas opiniões sobre a guerra na Ucrânia não eram de apoio ao envio de armas.

Vivi um momento dramático porque comecei a escrever artigos como aquele sobre o suicídio da Europa em que indicava as possíveis repercussões desta guerra para a Europa e a importância de sua intervenção. E tive que deixar o jornal La Stampa para o qual escrevia. Foi um caso complicado, virei alvo de ataques e virei símbolo do pacifismo. Acho que o que aconteceu na Itália com informações nos últimos meses foi devastador e indicativo dos limites do debate público e democrático. Os jornais contam com uma única versão e uma única forma de ver a guerra e as vozes daqueles que, como eu, se criticaram ou duvidaram, se marginalizaram ou se agrediram.

·         Sua posição não é enviar armas, então?

Minha posição é de esquerda pacifista. Não acredito que uma guerra entre dois nacionalismos como a que está ocorrendo traga vantagens ou benefícios. Além disso, é uma guerra que prejudicará os mais pobres de todos os países europeus. Não acho que estar do lado do povo ucraniano seja dar armas para usar seus corpos para uma guerra que no final é entre a OTAN de um lado e Rússia e China do outro. Sou europeísta e sempre acreditei no papel da Europa, e um dos pontos decisivos é que a Europa não teve o papel de mediação que deveria ter.

E a segunda questão mais profunda é que no século XXI tal guerra na Europa é completamente inaceitável. A política não cumpriu seu papel. Pensar que os conflitos fronteiriços e a coabitação se resolvem com armas é absolutamente inaceitável. Essa é a minha posição. Não é que eu não reconheça o erro da invasão criminosa de Putin, mas você também precisa ver no contexto para encontrar uma solução. Ainda acredito na paz, mas ela se constrói com mediadores, não com o envio de armas. Especialmente em um contexto nuclear e apocalíptico.

 

Ø  Manifestar-se pela paz e parar essa loucura. Por Donatella Di Cesare

 

"Somente os sonâmbulos ainda podem permanecer cegos diante do perigo atômico destas horas. Nunca teríamos imaginado que teria cabido justamente a nós a experiência do abismo", escreve Donatella Di Cesare, filósofa italiana e professora de Filosofia Teórica na Universidade de Roma La Sapienza, em artigo publicado il Fatto Quotidiano.

>>> Eis o artigo. 

Vejo ao meu redor pessoas que trabalham, ensinam, estudam – aparentemente como se nada estivesse acontecendo. Mas olhando mais de perto não é difícil apreender aquela angústia sutil e irreprimível que já permeia a existência de todos. A remoção, por mais efetiva que seja, não pode esconder a enormidade do que somos obrigados a viver. A ameaça nuclear paira sobre nós todos os dias, materializa-se nas palavras dos maiores líderes mundiais, toma forma nas imagens das operações preparatórias, assume concretude nas projeções dos cientistas, que são também advertências. Os riscos se agravam, os avisos devem ser levados a sério.

Gostemos ou não, aquela guerra distante, nas fronteiras do Donbass, da qual poucos tinham ouvido falar, chegou até nós, sem ninguém que a detivesse, invadiu nossas casas, promete mudar nosso modo de vida e, por fim, aniquilar as nossas existências.

Somente os sonâmbulos ainda podem permanecer cegos diante do perigo atômico destas horas. Nunca teríamos imaginado que teria cabido justamente a nós a experiência do abismo.

Nesse cenário destrutivo, e mesmo diante da escalada, não há uma única voz na União Europeia que se levante para pronunciar a palavra “paz”, para delinear pelo mesmo a possibilidade de uma negociação. Pelo contrário, o empenho se traduz a cada vez em novas sanções.

Tudo isso assumiria o aspecto de uma farsa, se não fosse uma tragédia para nós. O cinismo desta liderança, que desde o início desistiu de qualquer iniciativa, é uma vergonha para a Europa. E, como tal, passará para a história. Os movimentos e gestos de Ursula von der Leyen são uma mistura de miopia e imprudência, arrogância e mediocridade. Não é uma política aberta, flexível e perspicaz, mas exatamente o oposto. Em que mãos estamos? Quem nos representa? Em quem podemos confiar?

Esse mainstream, que com uma reviravolta se definiu como “atlantista”, traindo todos os valores europeus e aceitando a guerra como um fato inelutável, nos últimos meses não fez nada além de atacar as vozes contrárias. Nunca antes havia se visto tal campanha difamatória contra quem só ousasse mencionar a paz. As palavras foram dobradas para indicar o contrário, os significados foram distorcidos em uma propaganda sem precedentes que com violência impôs a militarização dos alinhamentos. Os pacifistas foram zombados, ridicularizados, expostos à chacota pública. Como aconteceu na Itália, também durante a campanha eleitoral, foram tachados de serem espiões, traidores, fantoches, peões conscientes ou inconscientes de Putin. Ainda agora acontece de ler ataques patéticos daqueles que convidam os chamados "pró-putinianos", diante das vitórias ucranianas, a se emendar, a reconhecer seus erros.

Nunca nos rendemos e não nos renderemos a essa lógica de guerra. Ser pela paz não significa ser contra a Ucrânia, ser pela paz não significa ser a favor da Rússia. Aqueles que buscam a paz são movidos apenas pelo bom senso. E é realmente surpreendente que grande parte da liderança europeia siga servilmente o ditado estadunidense, aproximando-nos cada vez mais do abismo. Nenhuma alternativa é prospectada. A palavra "vitória" ainda faz sentido em um cenário nuclear? Qual é o objetivo?

Nunca como agora a nossa impotência nos pareceu insuperável. Não sabemos mais o que fazer, a quem recorrer. No entanto, o apelo do Papa Francisco, por mais dramático que seja, infunde confiança e coragem.

É tempo de parar a escalada da loucura, é tempo de construir uma política de convivência. Ir além significaria aceitar a autodestruição. Precisamente por isso é necessário reagir. A desagregação e o isolamento, longe de serem casuais, são o resultado da política bélica. Precisamos sair às ruas, manifestar a nossa reprovação, o nosso protesto. Fora das cercas, sem flâmulas e bandeiras, apenas com a palavra "paz". Essa manifestação serve – serve para nos reencontrarmos, para não acreditarmos que somos os únicos a sentir angústia, os únicos a ainda abrigar esperança. Mas é especialmente importante como sinal político, tanto aqui como fora.

Para que se entenda que existe uma parte da Itália – a maioria? – que não está patrioticamente disposta a seguir a liderança europeia rumo à catástrofe. Esse será talvez um sinal para os outros, para os irlandeses, para os gregos, para os espanhóis, para os eslovenos e para todos aqueles que são mais afetados pelas repercussões das sanções e das ameaças desta guerra. Deve ficar finalmente claro que as trabalhadoras e os trabalhadores da Europa, os mais pobres, os mais vulneráveis, têm tudo a perder nesta guerra e nada a ganhar. 

 

Fonte: Entrevista com Donatella Di Cesare, para El País

 

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