terça-feira, 4 de abril de 2023

Alertas de garimpo caíram, mas invasão segue na Terra Yanomami, aponta Ibama

O número de alertas de garimpos em uma das regiões mais visadas na Terra Indígena Yanomami, o rio Uraricoera, desabou 88% desde que o Ibama interditou a calha do rio, indica um levantamento inédito feito pelo órgão ambiental em Brasília.

Contudo, a redução em toda a terra indígena foi bem menor, de 60%, e ainda foram registrados 94 garimpos novos ou ampliações desde 20 de fevereiro último.

Para o Ibama, a menor diminuição no território ocorre porque outros setores da terra indígena longe do rio continuam sendo mantidos pelo transporte aéreo. O controle do tráfego aéreo é uma atribuição das Forças Armadas. O governo permitiu até o próximo dia 6 a existência de um “corredor aéreo” para a saída “voluntária” dos garimpeiros. Ainda não está claro o que os militares farão a partir do dia 7 a respeito do tráfego aéreo.

A redução de 88% nos alertas de garimpo na região do Uraricoera compreende o período de 20 de fevereiro a 29 de março (com apenas seis alertas) na comparação com 36 dias anteriores deste ano, de 14 de janeiro a 20 de fevereiro. No primeiro período foram registrados 53 alertas na região do rio Uraricoera. A data de 20 de fevereiro é a referência porque foi quando o Ibama, com apoio da Funai e da Força Nacional, instalou um cabo de aço e uma base de operações no Uraricoera para impedir o envio de combustível e alimentação para os garimpos.

A queda na terra indígena como um todo também ocorreu, mas numa proporção menor. Foram 238 alertas de janeiro a 20 de fevereiro contra 94 no período mais recente. Assim, a redução foi de 88% na região do Uraricoera e de 60% em toda a terra indígena.

Para o Ibama, a redução dos alertas no Uraricoera foi uma consequência do bloqueio do rio e da instalação de uma base do órgão ambiental na região. Ela passou a armazenar combustível, permitindo que as aeronaves do Ibama possam apoiar operações de apreensão e queima de material garimpeiro em setores mais distantes dentro do território indígena.

Os fiscais do Ibama já foram alvos de pelo menos três ataques a tiros por garimpeiros e “seguranças” dentro da terra indígena. Somente em março foram dois episódios, conforme a Agência Pública revelou na última sexta-feira (31). A sucessão dos eventos levou os fiscais do Ibama a advertirem que o controle do tráfego aéreo é essencial para extirpar o garimpo. O Ibama considera que a manutenção desses núcleos de garimpeiros só é possível pela via aérea, cujo controle é missão dos militares.

Um fiscal do Ibama ouvido pela Pública sob a condição de não ter o nome divulgado disse que “hoje a gente já não consegue mais conter os garimpos só com os bloqueios fluviais. A logística foi substituída pelos meios aéreos. Atacar isso é essencial. O espaço aéreo está aberto há um tempo [desde fevereiro], os militares estão reticentes em querer fechar. Tem que fechar”.

Diferentes fontes e órgãos ouvidos pela Pública não conseguem cravar o número atual de invasores garimpeiros que permanecem no território indígena. Eles chegaram a 20 mil nos últimos anos, conforme denunciaram, ao longo do tempo, diversas lideranças Yanomami.

•        Pressão atual sobre o garimpo contrasta com a leniência no governo Bolsonaro

Apesar dos percalços, a operação desencadeada no final de janeiro por ordem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva não se compara com a passividade anterior registrada ao longo de todo o governo de Jair Bolsonaro. Em menos de dois meses da nova operação, há sinais positivos sobre a saída dos garimpeiros, o que contrasta com as alegações de integrantes do governo de Bolsonaro quando eram cobrados sobre a desintrusão dos invasores. Os próprios porta-vozes dos garimpeiros já determinaram a saída de todos os invasores até o próximo dia 6. Mas diversos núcleos persistem dentro do território a poucos dias do prazo final.

A atual pressão sobre os garimpeiros contrasta com a leniência do governo anterior. Em julho de 2020, por exemplo, o então vice-presidente Hamilton Mourão, presidente do CNAL (Conselho Nacional da Amazônia Legal), disse em entrevista coletiva que a retirada dos garimpeiros era “uma operação complexa” e que o assunto seria “estudado e debatido, aguardando as decisões finais”. Afirmou ainda que não se poderia comparar a operação com retirada de camelôs de rua. Ao longo dos quatro anos de Bolsonaro, ocorreram apenas operações pontuais, que não eliminaram a invasão. Com o agravamento da invasão garimpeira, nos últimos quatro anos 570 crianças Yanomami morreram de causas evitáveis, como desnutrição, malária e diarreia.

Depois da derrota eleitoral de Bolsonaro e da posse de Lula, os responsáveis pela desintrusão colocaram em prática algumas medidas simples, mas que tiveram efeito quase imediato na atividade garimpeira. No último dia 20 de fevereiro, o Ibama usou um cabo de aço para bloquear, com apoio da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e da Força Nacional, a navegação no Uraricoera. Desde então, apenas barcos autorizados previamente pelo Ibama na cidade de Boa Vista (RR) podem subir o rio exclusivamente para a retirada dos garimpeiros que persistem dentro da terra indígena.

O rio Uraricoera é uma das principais portas de entrada para a atividade ilegal garimpeira na terra indígena. Há garimpos tanto dentro da calha do rio, por meio de balsas, quanto nas margens, com compressores e jatos d’água que “desmontam” enormes extensões de terra e provocam clareiras imensas na floresta. Tanto a terra quanto o mercúrio contaminam rios e outros cursos d’água.

O especialista em geoprocessamento Juan Doblas disse à Pública que alertas de garimpo são, em tese, informações sobre garimpos novos, ou seja, a detecção de uma anomalia antes não reportada. As imagens são coletadas por satélites, mas a análise contínua é feita por técnicos. As ações garimpeiras costumam ser mais visíveis durante a análise das imagens de satélite do que os focos de desmatamento porque aparecem em formatos específicos e com um contraste mais acentuado em relação à floresta. “Quando um grupo de garimpeiros inicia uma área do garimpo, abre completamente o terreno. Eles removem toda a vegetação e depois tendem a alargá-la. O garimpo costuma ocorrer ao longo dos cursos d’água. Quando o solo fica descoberto, em geral costuma aparecer aquele solo mais arenoso. Isso provoca um contraste muito forte com a floresta.”

Por outro lado, apontou Doblas, a detecção sobre garimpos também enfrenta uma dificuldade relacionada ao tamanho da área, que costuma ser menor do que a de um novo desmatamento associado à prática como, por exemplo, a pecuária. Por isso, é necessária uma análise mais minuciosa das imagens de satélite.

Atualmente um garimpo novo pode se expandir muito mais rápido do que nos anos 1980, 1990 ou 2000 porque a Amazônia passou a viver um processo de mecanização nos garimpos, principalmente com o uso de retroescavadeiras, apelidadas de “PCs”. “As PCs abrem o garimpo de forma muito mais rápida do que antes. Têm uma capacidade de destruição assustadora, talvez dez vezes maior do que o padrão clássico, que utilizava compressores e jatos d’água.”

 

       Socorro aos yanomami ainda é insuficiente

 

A situação é tensa em um dos polos mais afetados pela crise humanitária causada pelo garimpo na Terra Indígena (TI) Yanomami, em Surucucu. Embora a emergência tenha entrado para a agenda do governo federal desde janeiro, a força-tarefa voltada para o atendimento à saúde e distribuição de alimentos ainda é insuficiente.

"A situação continua crítica. A equipe médica não conseguiu chegar em todas as comunidades. Tem muita coisa para ser resolvida, a ajuda ainda está no começo", afirma Ivo Macuxi, assessor jurídico do Conselho Indígena de Roraima (CIR), à DW.

A desnutrição infantil segue alarmante. Dados obtidos pela DW e confirmados pelo CIR indicam que a taxa de mortalidade de crianças menores de 5 anos foi de 1,8 por dia em janeiro – o que totaliza 56 vítimas naquele mês.

"O cenário é mais grave do que se imaginava. A fome é um problema sério, e a malária se alastrou muito. Houve também um surto recente de covid-19", comenta Ricardo Affonso Ferreira, presidente e fundador da Expedicionários da Saúde (EDS).

•        Lideranças acusam falta de apoio das Forças Armadas

Formada por voluntários e financiada por doações, a ONG levanta um hospital de campanha no território para amenizar a crise humanitária. O atendimento aos indígenas, que deve começar em meados de abril, poderia estar a pleno vapor se não fosse a falta de apoio das Forças Armadas, dizem lideranças ouvidas pela DW.

"O Exército não conseguiu concluir a revitalização da pista ainda. Se ela estivesse pronta, poderia receber aeronaves grandes e isso ajudaria muito no atendimento aos yanomami, pois chegariam mais suprimentos", critica Macuxi, se referindo à obra de ampliação do aeródromo de Surucucu.

A cerca de 300 quilômetros da capital Boa Vista, a pista é crucial para a chegada de aviões de carga a Surucucu, que só é acessível por via aérea. O polo também concentra a base do 4º Pelotão de Fronteira do Exército Brasileiro.

Para o advogado indígena, a lentidão é proposital. "A gente acredita que eles não querem concluir mesmo, para que o Estado não chegue lá para cuidar do nosso povo e expulsar os garimpeiros. A gente sabe que o Exército apoiava Bolsonaro, e parece que estão boicotando mesmo a gente", afirma.

Questionado, o Ministério da Defesa não se pronunciou até o fechamento desta reportagem.

•        Emergência de saúde

O hospital de campanha do EDS é visto como um reforço para estancar a crise humanitária. Há pelo menos seis semanas, equipes trabalham no preparo da infraestrutura no terreno, no tratamento de esgoto e água, na reforma de uma antiga enfermaria – construída pelo próprio EDS em 2013.

O ambiente onde os pacientes serão atendidos, composto por uma estrutura de alumínio e lona de eficiência térmica, é de montagem rápida e simples, afirma a ONG. Quando estiver pronto, ele terá sala de emergência, laboratório de análises e internet para dar suporte à telemedicina.

"Vamos com equipes nossas no começo. A nossa ideia é que o Estado depois assuma as operações", afirma Ferreira, acrescentando que as equipes de saúde terão sete profissionais que serão substituídos a cada dez dias.

O transporte dos equipamentos tem sido feito por aeronaves a serviço do Centro de Operações de Emergência, mobilizado em 26 de janeiro após a visita do presidente Lula ao território. "Nós atuamos de forma mais sistemática nos yanomami desde o começo de 2022. Sabíamos do que estava acontecendo. Mas estamos falando mais sobre a crise agora porque o presidente esteve lá e colocou a boca no trombone", ressalta Ferreira.

Segundo o Ministério da Saúde, 14 profissionais da Força Nacional do Sistema Único de Saúde atuam neste momento na Casa de Saúde Indígena (Casai), em Boa Vista. É lá onde se recuperam 24 crianças que iniciaram tratamento após quadro de desnutrição.

Na TI Yanomami, a maior do Brasil, distribuída pelos estados de Roraima e Amazonas, 17 equipes trabalham desde janeiro distribuídas nos polos de Auaris, Palimiú, Surucucu, Waputha, Maloca Paapiú e Yarotobi. Segundo dados oficiais, 15,3 mil cestas de alimentos foram encaminhadas à população yanomami, 10,3 mil atendimentos foram feitos desde o início da operação de emergência, com distribuição de 250 mil unidades de medicamentos para malária.

•        O impacto destrutivo do garimpo

A doença infecciosa, transmitida na picada do mosquito anopheles, é tratada com cloroquina desde a década de 1930. A droga, apesar de demonstrada ineficácia contra covid-19, era defendida por Bolsonaro como "tratamento precoce" durante a pandemia. Como sequência, o medicamento faltou onde era mais necessário.

"A malária aumentou muito e houve falta de remédio por muito tempo", diz Macuxi.

Ricardo Affonso Ferreira, médico do EDS, se diz assustado com o que presenciou na TI durante visita em fevereiro. "Os pais doentes de malária ficam na rede, com febre, e não têm condições de sair e trazer comida para as crianças", argumenta Ferreira.

A doença entre os indígenas cresceu mais de 300% com a onda de invasão dos garimpeiros, agravada em 2019. Em janeiro último, a Hutukara Fundação Yanomami estimava a presença de 20 mil invasores no território em busca de ouro.

"Uma parte da população começou a trabalhar para os garimpeiros e passou a não cuidar mais das roças. De certa maneira, passaram a ser dependentes dos garimpeiros para se alimentar. Com a saída dos garimpeiros, o impacto inicial é de aumento da fome", avalia Ferreira.

Ivo Macuxi confirma a situação, mas ressalta que as lideranças estão apurando quais comunidades se encontram em situação mais crítica.

•        Segurança para os indígenas e suas terras

Desde janeiro, uma operação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), com apoio da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e da Força Nacional de Segurança Pública, atua para acabar com o garimpo no local. Para evitar confrontos, o governo federal estabeleceu o dia 6 de maio como prazo para saída voluntária dos invasores.

As equipes de fiscalização encontram resistência em algumas situações. Em pelo menos duas ocasiões, os agentes foram recebidos a tiros. Em fevereiro, uma base do Ibama foi atacada por criminosos armados na aldeia Palimiú.

"Ainda há muito a ser feito. Os garimpeiros resistem, existem áreas remotas ainda a serem alcançadas", comenta Priscilla Oliveira, pesquisadora e ativista da Survival International, em entrevista à DW.

A ONG espera que a operação se prolongue pelo tempo necessário para retirada dos invasores e que não seja concluída em abril, como declarou recentemente o ministro da Justiça, Flávio Dino.

"Tem que durar o tempo necessário para remover todos os garimpeiros e proteger permanentemente os indígenas. É isso que estamos esperando deste novo governo, que haja uma resposta emergencial, e também uma resposta a longo prazo que esteja à altura da crise que está acontecendo", justifica Oliveira.

Para Ivo Macuxi, do Conselho Indígena de Roraima, o plano de ação precisa ser consistente. "A gente espera a retirada de todos os garimpeiros e que o governo mantenha a proteção da terra indigena a médio e longo prazo, para que os invasores não voltem", diz.

 

       Governo Bolsonaro preservou 2% da meta de floresta nativa em 2022

 

No governo Bolsonaro, o Ministério do Meio Ambiente bateu apenas 2% da meta de preservação de floresta nativa em 2022. Os dados estão em um relatório da Controladoria-Geral da União (CGU), que analisou a atuação da pasta de 2020 a 2022.

Os auditores apontaram que o ministério prometeu preservar 100 mil hectares de vegetação nativa em 2022, mas só alcançou 1.849 hectares. Essas ações aconteceram dentro do projeto Floresta+Amazônia, que foi deixado de lado: a pasta só usou 18% do orçamento reservado ao programa de 2020 a 2022.

O pouco dinheiro aplicado foi um expediente recorrente nas principais áreas do ministério, como conservação da biodiversidade, qualidade ambiental urbana e mudança do clima. De toda a verba garantida nesse período de três anos, a pasta só pagou 9%.

Já no programa Lixão Zero, o número de lixões e aterros inadequados no país aumentou de 2019 para 2020, de 1.694 para 2.162. Não é possível saber se a alta foi mantida porque o ministério não repassou essas informações aos técnicos da CGU.

Durante a maior parte do período analisado pelo relatório, o ministro do Meio Ambiente era Ricardo Salles, que saiu da pasta depois de ser investigado no STF por favorecer madeireiros. Hoje deputado, Salles tenta se candidatar à prefeitura de São Paulo no próximo ano, com o apoio de Bolsonaro.

 

Fonte: Por Rubens Valente, da Agencia Pública/Deutsche Welle/Metrópoles

 

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