Alertas de garimpo
caíram, mas invasão segue na Terra Yanomami, aponta Ibama
O
número de alertas de garimpos em uma das regiões mais visadas na Terra Indígena
Yanomami, o rio Uraricoera, desabou 88% desde que o Ibama interditou a calha do
rio, indica um levantamento inédito feito pelo órgão ambiental em Brasília.
Contudo,
a redução em toda a terra indígena foi bem menor, de 60%, e ainda foram
registrados 94 garimpos novos ou ampliações desde 20 de fevereiro último.
Para
o Ibama, a menor diminuição no território ocorre porque outros setores da terra
indígena longe do rio continuam sendo mantidos pelo transporte aéreo. O
controle do tráfego aéreo é uma atribuição das Forças Armadas. O governo
permitiu até o próximo dia 6 a existência de um “corredor aéreo” para a saída
“voluntária” dos garimpeiros. Ainda não está claro o que os militares farão a
partir do dia 7 a respeito do tráfego aéreo.
A
redução de 88% nos alertas de garimpo na região do Uraricoera compreende o
período de 20 de fevereiro a 29 de março (com apenas seis alertas) na
comparação com 36 dias anteriores deste ano, de 14 de janeiro a 20 de
fevereiro. No primeiro período foram registrados 53 alertas na região do rio
Uraricoera. A data de 20 de fevereiro é a referência porque foi quando o Ibama,
com apoio da Funai e da Força Nacional, instalou um cabo de aço e uma base de
operações no Uraricoera para impedir o envio de combustível e alimentação para
os garimpos.
A
queda na terra indígena como um todo também ocorreu, mas numa proporção menor.
Foram 238 alertas de janeiro a 20 de fevereiro contra 94 no período mais
recente. Assim, a redução foi de 88% na região do Uraricoera e de 60% em toda a
terra indígena.
Para
o Ibama, a redução dos alertas no Uraricoera foi uma consequência do bloqueio
do rio e da instalação de uma base do órgão ambiental na região. Ela passou a
armazenar combustível, permitindo que as aeronaves do Ibama possam apoiar
operações de apreensão e queima de material garimpeiro em setores mais
distantes dentro do território indígena.
Os
fiscais do Ibama já foram alvos de pelo menos três ataques a tiros por
garimpeiros e “seguranças” dentro da terra indígena. Somente em março foram
dois episódios, conforme a Agência Pública revelou na última sexta-feira (31).
A sucessão dos eventos levou os fiscais do Ibama a advertirem que o controle do
tráfego aéreo é essencial para extirpar o garimpo. O Ibama considera que a
manutenção desses núcleos de garimpeiros só é possível pela via aérea, cujo
controle é missão dos militares.
Um
fiscal do Ibama ouvido pela Pública sob a condição de não ter o nome divulgado
disse que “hoje a gente já não consegue mais conter os garimpos só com os
bloqueios fluviais. A logística foi substituída pelos meios aéreos. Atacar isso
é essencial. O espaço aéreo está aberto há um tempo [desde fevereiro], os
militares estão reticentes em querer fechar. Tem que fechar”.
Diferentes
fontes e órgãos ouvidos pela Pública não conseguem cravar o número atual de
invasores garimpeiros que permanecem no território indígena. Eles chegaram a 20
mil nos últimos anos, conforme denunciaram, ao longo do tempo, diversas
lideranças Yanomami.
• Pressão atual sobre o garimpo contrasta
com a leniência no governo Bolsonaro
Apesar
dos percalços, a operação desencadeada no final de janeiro por ordem do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva não se compara com a passividade anterior
registrada ao longo de todo o governo de Jair Bolsonaro. Em menos de dois meses
da nova operação, há sinais positivos sobre a saída dos garimpeiros, o que
contrasta com as alegações de integrantes do governo de Bolsonaro quando eram
cobrados sobre a desintrusão dos invasores. Os próprios porta-vozes dos
garimpeiros já determinaram a saída de todos os invasores até o próximo dia 6.
Mas diversos núcleos persistem dentro do território a poucos dias do prazo
final.
A
atual pressão sobre os garimpeiros contrasta com a leniência do governo
anterior. Em julho de 2020, por exemplo, o então vice-presidente Hamilton
Mourão, presidente do CNAL (Conselho Nacional da Amazônia Legal), disse em
entrevista coletiva que a retirada dos garimpeiros era “uma operação complexa”
e que o assunto seria “estudado e debatido, aguardando as decisões finais”.
Afirmou ainda que não se poderia comparar a operação com retirada de camelôs de
rua. Ao longo dos quatro anos de Bolsonaro, ocorreram apenas operações
pontuais, que não eliminaram a invasão. Com o agravamento da invasão
garimpeira, nos últimos quatro anos 570 crianças Yanomami morreram de causas
evitáveis, como desnutrição, malária e diarreia.
Depois
da derrota eleitoral de Bolsonaro e da posse de Lula, os responsáveis pela
desintrusão colocaram em prática algumas medidas simples, mas que tiveram
efeito quase imediato na atividade garimpeira. No último dia 20 de fevereiro, o
Ibama usou um cabo de aço para bloquear, com apoio da Funai (Fundação Nacional
dos Povos Indígenas) e da Força Nacional, a navegação no Uraricoera. Desde
então, apenas barcos autorizados previamente pelo Ibama na cidade de Boa Vista
(RR) podem subir o rio exclusivamente para a retirada dos garimpeiros que
persistem dentro da terra indígena.
O
rio Uraricoera é uma das principais portas de entrada para a atividade ilegal
garimpeira na terra indígena. Há garimpos tanto dentro da calha do rio, por
meio de balsas, quanto nas margens, com compressores e jatos d’água que
“desmontam” enormes extensões de terra e provocam clareiras imensas na
floresta. Tanto a terra quanto o mercúrio contaminam rios e outros cursos
d’água.
O
especialista em geoprocessamento Juan Doblas disse à Pública que alertas de
garimpo são, em tese, informações sobre garimpos novos, ou seja, a detecção de
uma anomalia antes não reportada. As imagens são coletadas por satélites, mas a
análise contínua é feita por técnicos. As ações garimpeiras costumam ser mais
visíveis durante a análise das imagens de satélite do que os focos de
desmatamento porque aparecem em formatos específicos e com um contraste mais
acentuado em relação à floresta. “Quando um grupo de garimpeiros inicia uma
área do garimpo, abre completamente o terreno. Eles removem toda a vegetação e
depois tendem a alargá-la. O garimpo costuma ocorrer ao longo dos cursos
d’água. Quando o solo fica descoberto, em geral costuma aparecer aquele solo
mais arenoso. Isso provoca um contraste muito forte com a floresta.”
Por
outro lado, apontou Doblas, a detecção sobre garimpos também enfrenta uma
dificuldade relacionada ao tamanho da área, que costuma ser menor do que a de
um novo desmatamento associado à prática como, por exemplo, a pecuária. Por
isso, é necessária uma análise mais minuciosa das imagens de satélite.
Atualmente
um garimpo novo pode se expandir muito mais rápido do que nos anos 1980, 1990
ou 2000 porque a Amazônia passou a viver um processo de mecanização nos
garimpos, principalmente com o uso de retroescavadeiras, apelidadas de “PCs”.
“As PCs abrem o garimpo de forma muito mais rápida do que antes. Têm uma
capacidade de destruição assustadora, talvez dez vezes maior do que o padrão
clássico, que utilizava compressores e jatos d’água.”
Socorro aos yanomami ainda é insuficiente
A
situação é tensa em um dos polos mais afetados pela crise humanitária causada
pelo garimpo na Terra Indígena (TI) Yanomami, em Surucucu. Embora a emergência
tenha entrado para a agenda do governo federal desde janeiro, a força-tarefa
voltada para o atendimento à saúde e distribuição de alimentos ainda é
insuficiente.
"A
situação continua crítica. A equipe médica não conseguiu chegar em todas as
comunidades. Tem muita coisa para ser resolvida, a ajuda ainda está no
começo", afirma Ivo Macuxi, assessor jurídico do Conselho Indígena de
Roraima (CIR), à DW.
A
desnutrição infantil segue alarmante. Dados obtidos pela DW e confirmados pelo
CIR indicam que a taxa de mortalidade de crianças menores de 5 anos foi de 1,8
por dia em janeiro – o que totaliza 56 vítimas naquele mês.
"O
cenário é mais grave do que se imaginava. A fome é um problema sério, e a
malária se alastrou muito. Houve também um surto recente de covid-19",
comenta Ricardo Affonso Ferreira, presidente e fundador da Expedicionários da
Saúde (EDS).
• Lideranças acusam falta de apoio das
Forças Armadas
Formada
por voluntários e financiada por doações, a ONG levanta um hospital de campanha
no território para amenizar a crise humanitária. O atendimento aos indígenas,
que deve começar em meados de abril, poderia estar a pleno vapor se não fosse a
falta de apoio das Forças Armadas, dizem lideranças ouvidas pela DW.
"O
Exército não conseguiu concluir a revitalização da pista ainda. Se ela
estivesse pronta, poderia receber aeronaves grandes e isso ajudaria muito no
atendimento aos yanomami, pois chegariam mais suprimentos", critica
Macuxi, se referindo à obra de ampliação do aeródromo de Surucucu.
A
cerca de 300 quilômetros da capital Boa Vista, a pista é crucial para a chegada
de aviões de carga a Surucucu, que só é acessível por via aérea. O polo também
concentra a base do 4º Pelotão de Fronteira do Exército Brasileiro.
Para
o advogado indígena, a lentidão é proposital. "A gente acredita que eles
não querem concluir mesmo, para que o Estado não chegue lá para cuidar do nosso
povo e expulsar os garimpeiros. A gente sabe que o Exército apoiava Bolsonaro,
e parece que estão boicotando mesmo a gente", afirma.
Questionado,
o Ministério da Defesa não se pronunciou até o fechamento desta reportagem.
• Emergência de saúde
O
hospital de campanha do EDS é visto como um reforço para estancar a crise
humanitária. Há pelo menos seis semanas, equipes trabalham no preparo da
infraestrutura no terreno, no tratamento de esgoto e água, na reforma de uma
antiga enfermaria – construída pelo próprio EDS em 2013.
O
ambiente onde os pacientes serão atendidos, composto por uma estrutura de
alumínio e lona de eficiência térmica, é de montagem rápida e simples, afirma a
ONG. Quando estiver pronto, ele terá sala de emergência, laboratório de
análises e internet para dar suporte à telemedicina.
"Vamos
com equipes nossas no começo. A nossa ideia é que o Estado depois assuma as
operações", afirma Ferreira, acrescentando que as equipes de saúde terão sete
profissionais que serão substituídos a cada dez dias.
O
transporte dos equipamentos tem sido feito por aeronaves a serviço do Centro de
Operações de Emergência, mobilizado em 26 de janeiro após a visita do
presidente Lula ao território. "Nós atuamos de forma mais sistemática nos
yanomami desde o começo de 2022. Sabíamos do que estava acontecendo. Mas
estamos falando mais sobre a crise agora porque o presidente esteve lá e
colocou a boca no trombone", ressalta Ferreira.
Segundo
o Ministério da Saúde, 14 profissionais da Força Nacional do Sistema Único de
Saúde atuam neste momento na Casa de Saúde Indígena (Casai), em Boa Vista. É lá
onde se recuperam 24 crianças que iniciaram tratamento após quadro de
desnutrição.
Na
TI Yanomami, a maior do Brasil, distribuída pelos estados de Roraima e
Amazonas, 17 equipes trabalham desde janeiro distribuídas nos polos de Auaris,
Palimiú, Surucucu, Waputha, Maloca Paapiú e Yarotobi. Segundo dados oficiais,
15,3 mil cestas de alimentos foram encaminhadas à população yanomami, 10,3 mil
atendimentos foram feitos desde o início da operação de emergência, com
distribuição de 250 mil unidades de medicamentos para malária.
• O impacto destrutivo do garimpo
A
doença infecciosa, transmitida na picada do mosquito anopheles, é tratada com
cloroquina desde a década de 1930. A droga, apesar de demonstrada ineficácia
contra covid-19, era defendida por Bolsonaro como "tratamento
precoce" durante a pandemia. Como sequência, o medicamento faltou onde era
mais necessário.
"A
malária aumentou muito e houve falta de remédio por muito tempo", diz
Macuxi.
Ricardo
Affonso Ferreira, médico do EDS, se diz assustado com o que presenciou na TI
durante visita em fevereiro. "Os pais doentes de malária ficam na rede,
com febre, e não têm condições de sair e trazer comida para as crianças",
argumenta Ferreira.
A
doença entre os indígenas cresceu mais de 300% com a onda de invasão dos
garimpeiros, agravada em 2019. Em janeiro último, a Hutukara Fundação Yanomami
estimava a presença de 20 mil invasores no território em busca de ouro.
"Uma
parte da população começou a trabalhar para os garimpeiros e passou a não
cuidar mais das roças. De certa maneira, passaram a ser dependentes dos
garimpeiros para se alimentar. Com a saída dos garimpeiros, o impacto inicial é
de aumento da fome", avalia Ferreira.
Ivo
Macuxi confirma a situação, mas ressalta que as lideranças estão apurando quais
comunidades se encontram em situação mais crítica.
• Segurança para os indígenas e suas
terras
Desde
janeiro, uma operação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis (Ibama), com apoio da Fundação Nacional dos Povos Indígenas
(Funai) e da Força Nacional de Segurança Pública, atua para acabar com o
garimpo no local. Para evitar confrontos, o governo federal estabeleceu o dia 6
de maio como prazo para saída voluntária dos invasores.
As
equipes de fiscalização encontram resistência em algumas situações. Em pelo
menos duas ocasiões, os agentes foram recebidos a tiros. Em fevereiro, uma base
do Ibama foi atacada por criminosos armados na aldeia Palimiú.
"Ainda
há muito a ser feito. Os garimpeiros resistem, existem áreas remotas ainda a
serem alcançadas", comenta Priscilla Oliveira, pesquisadora e ativista da
Survival International, em entrevista à DW.
A
ONG espera que a operação se prolongue pelo tempo necessário para retirada dos
invasores e que não seja concluída em abril, como declarou recentemente o
ministro da Justiça, Flávio Dino.
"Tem
que durar o tempo necessário para remover todos os garimpeiros e proteger
permanentemente os indígenas. É isso que estamos esperando deste novo governo,
que haja uma resposta emergencial, e também uma resposta a longo prazo que
esteja à altura da crise que está acontecendo", justifica Oliveira.
Para
Ivo Macuxi, do Conselho Indígena de Roraima, o plano de ação precisa ser
consistente. "A gente espera a retirada de todos os garimpeiros e que o
governo mantenha a proteção da terra indigena a médio e longo prazo, para que
os invasores não voltem", diz.
Governo Bolsonaro preservou 2% da meta de
floresta nativa em 2022
No
governo Bolsonaro, o Ministério do Meio Ambiente bateu apenas 2% da meta de
preservação de floresta nativa em 2022. Os dados estão em um relatório da
Controladoria-Geral da União (CGU), que analisou a atuação da pasta de 2020 a
2022.
Os
auditores apontaram que o ministério prometeu preservar 100 mil hectares de
vegetação nativa em 2022, mas só alcançou 1.849 hectares. Essas ações
aconteceram dentro do projeto Floresta+Amazônia, que foi deixado de lado: a
pasta só usou 18% do orçamento reservado ao programa de 2020 a 2022.
O
pouco dinheiro aplicado foi um expediente recorrente nas principais áreas do
ministério, como conservação da biodiversidade, qualidade ambiental urbana e
mudança do clima. De toda a verba garantida nesse período de três anos, a pasta
só pagou 9%.
Já
no programa Lixão Zero, o número de lixões e aterros inadequados no país
aumentou de 2019 para 2020, de 1.694 para 2.162. Não é possível saber se a alta
foi mantida porque o ministério não repassou essas informações aos técnicos da
CGU.
Durante
a maior parte do período analisado pelo relatório, o ministro do Meio Ambiente
era Ricardo Salles, que saiu da pasta depois de ser investigado no STF por
favorecer madeireiros. Hoje deputado, Salles tenta se candidatar à prefeitura
de São Paulo no próximo ano, com o apoio de Bolsonaro.
Fonte:
Por Rubens Valente, da Agencia Pública/Deutsche Welle/Metrópoles
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