Juntando os cacos:
os evangélicos na ressaca do bolsonarismo
A
cem dias de governo Lula, o campo evangélico ainda parece estar em dificuldades
para reorganizar suas bases em torno de um projeto político comum. Após a
derrota de Bolsonaro nas urnas, seguida pela tentativa de golpe de Estado em 8
de janeiro, os evangélicos – que até então se prefiguravam como um dos maiores
bastiões do bolsonarismo – estão agora divididos entre a apatia conservadora e
a disputa pelo “novo Messias” da direita.
Para
compreender os meandros dessa nova fratura no (já bastante fraturado) campo
evangélico, é preciso levar em conta alguns pontos de destaque. Em primeiro
lugar, o fator histórico: durante décadas, os evangélicos brasileiros foram
muito resistentes a uma participação política mais engajada. Inspirados por uma
leitura religiosa que entende que o cristão deve ter por princípio evitar se
envolver em assuntos deste mundo (público), gerações de evangélicos adotaram
uma postura quietista em relação à política.
Embora
essa tenha sido a postura mais ou menos comum entre os evangélicos ao longo da
sua história, o fato é que os ventos políticos dos anos 2010 anunciavam um
furacão no campo evangélico no país. Uma das principais razões para essa
mudança foi a guinada progressista ocorrida durante os governos Lula e Dilma.
Esse movimento afastou gradualmente as lideranças evangélicas da posição
tradicional governista, levando-as a adotar uma postura conservadora mais
militante. Além disso, o próprio projeto de poder evangélico, que pretendia (e
ainda pretende) converter as instituições sociais e políticas do país em
difusores do cristianismo fundamentalista, também contribuiu para esse
processo. Como resultado, fiéis e lideranças abandonaram o antigo estilo de que
“crente não se mete em política” em favor de um novo lema: “O Brasil é do
Senhor Jesus”.
Não
surpreende, a partir desse ponto de vista, a participação entusiasmada dos
evangélicos na campanha de Jair Bolsonaro em 2018. Tendo como slogan “Brasil
acima de tudo, Deus acima de todos”, Bolsonaro parecia canalizar essa visão de
mundo evangélica, tradicionalmente dispersa e fraturada por denominações, em um
projeto político unificado, encabeçado por um líder e contra um inimigo comum:
a “esquerda”, aqui entendida menos como um lado do espectro político e mais
como uma categoria genérica o suficiente para encarnar em pessoas e partidos
todo o pânico moral disseminado pela extrema-direita.
A
narrativa pegou. E, assim, os evangélicos ultraconservadores não só passaram a
dominar o campo protestante, como também assumem, a partir de 2018, um senso de
coesão e unidade inéditos em apoio à pessoa e ao projeto simbolizado por Jair
Bolsonaro. Prova disso é que mesmo após os quatro anos desastrosos de governo
Bolsonaro na saúde, na economia e na política, os evangélicos praticamente não
mudaram a sua orientação de voto em 2022, mantendo o seu apoio a Bolsonaro
próximo a 70% no segundo turno das eleições do ano passado.
Desde
a derrota de Bolsonaro nas urnas, porém, os evangélicos têm procurado mudar de
tom. De um lado, porque o envolvimento político das lideranças provocou um
significativo desgaste interno nas igrejas, o que fez com que alguns pastores e
líderes adotassem um caráter mais pragmático preferindo retornar ao estilo
tradicional quietista do que dobrar a aposta bolsonarista. Por outro lado,
porque o próprio apoio a Bolsonaro passou a diminuir entre os evangélicos à
medida que o ex-presidente não reagiu diante dos eventos políticos recentes,
preferindo o auto-exílio nos Estados Unidos, algo que foi lido por parte do
eleitorado como uma traição de Bolsonaro aos “patriotas”.
O
aparente silêncio das lideranças evangélicas nos púlpitos, porém, não significa
um abandono nem da agenda política conservadora nem do projeto político
fundamentalista. Pelo contrário, desde o pronunciamento do deputado evangélico
e bolsonarista Nikolas Ferreira (PL) contra as mulheres trans no dia 8 de
março, é possível observar pelas redes que lideranças ultraconservadoras têm
procurado juntar os cacos do apoio político dos evangélicos a partir de temas
como pânico moral, sobretudo relacionado aos direitos das populações trans,
além de narrativas que buscam associar o atual governo com a violência urbana e
o crime organizado.
Se
essas narrativas serão suficientes para reaquecer o ânimo evangélico dos
últimos anos, ainda é cedo para dizer, mas é inegável a força ideológica que a
extrema-direita desperta nas mentes e nos corações dos evangélicos brasileiros.
Se a esquerda e o campo progressista não colocarem como urgente a tarefa de
criar freios para o avanço do fundamentalismo religioso, corremos sério risco
de retornarmos num futuro próximo a um Brasil terrivelmente evangélico,
conservador e antiesquerdista.
Ø
O
bolsonarismo evangélico e o mal-estar que ele gera. Por Flávio Conrado
O
bolsonarismo, como principal fenômeno político das eleições de 2018, é bem mais
complexo do que se supunha. Enquanto os analistas tentam decifrá-lo a partir de
ideias como “extrema direita”, “onda de conservadorismo”, “fascistização do
discurso político”, gostaria de me deter brevemente no segmento evangélico, que
ganhou destaque nas eleições por sua adesão majoritária e qualitativa ao
candidato Jair Bolsonaro.
Houve
uma operação peculiar que garantiu a eficácia simbólica da conversão
qualitativa e do empenho ativista de lideranças que cruzam o espectro diverso
do evangelicalismo brasileiro: Jair Messias Bolsonaro investiu com muito
sucesso num simbolismo típico relacionado ao uso fundamentalista da Bíblia.
Utilizando o linguajar evangélico corrente, investiu-se e foi investido de uma
espécie de “unção messiânica” para realizar um “destino manifesto” declarado há
muitos anos pelo jargão evangélico neopentecostal: “O Brasil é do Senhor Jesus”
(transmutado estrategicamente para fins eleitorais em “Brasil acima de tudo.
Deus acima de todos”).
Diante
das duas outras candidaturas evangélicas, Cabo Daciolo e Marina Silva, o candidato
que mereceu a estrondosa adesão de lideranças e o voto de diferentes
comunidades de fé evangélica foi capaz de tocar no seu imaginário religioso com
uma estratégia extremamente pensada e eficaz de mitologização política (no
jargão das ciências sociais), construída ao longo dos últimos anos.
• A unção
A
relação de Bolsonaro com o segmento evangélico se adensou por meio de
enfrentamentos partilhados com a Frente Parlamentar Evangélica, no contexto da
visibilização de controvérsias em torno de pautas morais vis-à-vis a agenda de
direitos humanos, e protagonizadas em certos momentos do debate parlamentar da
última década. Tal adensamento se construiu na medida da aproximação e
apropriação do discurso que os evangélicos conservadores têm chamado de “defesa
da família” e contra a “ideologia de gênero” dos movimentos feminista e LGBTI.
Mas
a largada da “unção evangélica” foi, seguramente, o batismo no rio Jordão, em
Israel, local de alta densidade sagrada para evangélicos, feito pelo pastor da
Assembleia de Deus e presidente do PSC (Partido Social Cristão), Everaldo
Pereira. Esse foi um passo fundamental para que o capitão reformado do
Exército, que sempre se declarou abertamente católico, como ainda se declara,
pudesse ser reconhecido por fiéis como alguém “temente a Deus” e pessoa próxima
das igrejas evangélicas.
O
batismo de Jair Bolsonaro aconteceu durante a admissibilidade do impeachment de
Dilma Rousseff pelo Senado Federal, em maio de 2016. A data “coincide” com as
comemorações do 68º aniversário da criação do Estado de Israel, consolidado no
contexto da primeira guerra árabe-israelense, ou Al-Nakba (A Catástrofe), para
os palestinos.
O
fato de sua terceira esposa ser evangélica de longa data (a primeira também é,
razão da identidade evangélica dos filhos parlamentares), tendo frequentado por
vários anos a igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo, liderada pelo pastor
Silas Malafaia, passando a participar posteriormente da Igreja Batista Atitude,
é indicativo de uma aproximação mais orgânica no plano pessoal. Seus filhos
também se fizeram batizar no rio Jordão na mesma ocasião. Bolsonaro é um
outsider reconhecido como “um dos nossos”, um “amigo do Evangelho”.
• A missão
Bolsonaro,
no entanto, não apenas se fez batizar por imersão nas águas do rio Jordão, do
jeito mais conhecido e reconhecido pelos evangélicos. Também se apropriou da
própria linguagem religiosa dos crentes, dizendo-se possuidor de uma “missão
divina”. Ao filiar-se ao PSL (Partido Social Liberal) para concorrer à
Presidência da República, disse estar imbuído de uma missão dada por Deus e que
é um chamado que não poderia evitar.
O
batismo no rio Jordão e a declaração de possuir uma missão divina não estariam
completos se não fosse o próprio ato institutivo, o que muitos evangélicos chamariam
de “ato profético”, a oração da unção, realizadas por distintos modos e jeitos
de fazer evangélico, colocando sobre Bolsonaro a autorização para “tomar posse”
do que se espera em seu slogan: “Deus acima de todos”.
Bolsonaro
conseguiu aquilo que Cabo Daciolo não foi capaz de alcançar, a despeito de seu
peculiar exotismo tipicamente pentecostal, ou Marina Silva, com seu já
reconhecido pertencimento à maior denominação pentecostal do país, a Assembleia
de Deus. A ex-ministra do Meio Ambiente foi alvo das desconfianças de seus
pares evangélicos por não assumir com clareza as bandeiras típicas do moralismo
conservador que a Frente Parlamentar Evangélica adotou estrategicamente como
sua agenda, visando votos, influência e moeda de troca.
Bolsonaro
tornou-se um símbolo, ao ajustar seu alinhamento com essa frente parlamentar,
no antiesquerdismo verborrágico encontrado nas pautas morais, especialmente as
relacionadas aos direitos sexuais e reprodutivos. Bolsonaro declarou-se “a
favor da família”, nos termos evangélicos: contra o aborto, os direitos das
pessoas LGBTI, contra a legalização da maconha, a favor do armamento do
“cidadão de bem” e do punitivismo penal.
• A sagração
O
ápice dessa operação simbólica, organicamente efetiva e afetiva, se completa na
“sagração” da jornada eleitoral de Messias Bolsonaro. Foi o professor Pablo
Ortellado quem chamou atenção no Twitter para o fato de que houve um duplo
discurso do presidente eleito Jair Bolsonaro ao saber-se vencedor: o discurso
para o complexo político-econômico-midiático, em que acentuou o respeito à
Constituição e às normas democráticas, e o discurso para suas bases. No
discurso aos seus apoiadores, uma oração ao estilo pentecostal, de mãos dadas e
olhos fechados, por parte do pastor-senador Magno Malta, também bastante
conhecido por sua verborragia moralista e antiesquerdista, e uma fala informal
de vitória, recheada de palavrório evangeliquês.
Nesse
“momento solene”, na noite de domingo da eleição, quando se encontravam
reunidas as igrejas evangélicas em seus cultos mais concorridos, pastores não
poderiam deixar de anunciar, como o fizeram, Messias Bolsonaro presidente,
seguindo-se aplausos, assobios, “glórias e aleluias”, orações de gratidão a
Deus e projeções da bandeira nacional ou do próprio presidente eleito, agora
tratado como resposta de orações e o novo representante do povo de Deus no
Palácio do Planalto.
• O mal-estar evangélico
O
que torna Messias Bolsonaro tão atraente para os líderes evangélicos
conservadores, a ponto de o “ungirem” como o eleito de Deus nessa hora? A
resposta, a meu ver, está no fato de que o “mito” oferece uma ancoragem segura
no imaginário autoritário que pervade hoje uma parte expressiva das lideranças
evangélicas, tanto pentecostais como não pentecostais, de consolidar o projeto
de substituir o catolicismo como religião civil da nação brasileira. A eleição
de Bolsonaro valida, assim, tais pretensões de setores amplos das lideranças
eclesiais, com o apoio significativo de muitos de seus seguidores, e conta com
o silêncio conveniente de setores importantes de segmentos evangélicos outrora
moderados.
Essa
pretensão de hegemonia cultural faz com que se encontrem o “poder político”, já
habilmente aquilatado em 30 anos de presença na política partidária, com o
“poder religioso”, que cresce a olhos vistos, e que se ressente da paulatina
desconstrução de seu “poder patriarcal” (1) e “poder moral” (2) sobre os corpos
de mulheres e outras minorias que, nas últimas duas décadas, vêm paulatinamente
emancipando-se do controle exercido pela moralidade conservadora dita cristã.
Essa moralidade mais recentemente tem sido vocalizada por segmentos evangélicos
altamente cerceadores da liberdade sexual e antagônicos à igualdade de gênero.
O
“poder patriarcal evangélico” é a ilusão que homens evangélicos possuem de que
podem assegurar a manutenção do status quo familial, na desigualdade de gênero,
em que o “macho evangélico” pretende que continue a ter sancionado o seu
domínio inconteste sobre a família, na reprodução da perspectiva do
cis-heteropatriarcado que o cristianismo gestou ao longo dos séculos, desde
Santo Agostinho, dando ao homem o “direito bíblico” de controlar o que sua
mulher e filhos fazem na escola, no trabalho, nas ruas.
O
“poder moral evangélico” é a expectativa de que se possa impor ao país os
supostos valores cristãos, como os evangélicos os leem, que recusam a mulheres
e pessoas LGBTI, especialmente, mas também a outros segmentos sociais
subalternizados, o reconhecimento de seus modos de vida heterodoxos perante o
Estado.
É
inegável o mal-estar evangélico, com raras exceções, com as mudanças advindas
dos processos de pluralização, individualização e destradicionalização da vida
social brasileira, assim como com a presença cada vez mais ativa e engajada dos
setores da população que empurram o país para seu futuro inexorável de
superação de desigualdades históricas.
Recente
pesquisa do Pew Research Center ilustra bem alguns desses aspectos. Enquanto
68% dos brasileiros acreditam que a igualdade de gênero aumentou no país nos
últimos 20 anos e 54% opinam que a diversidade étnica, racial e religiosa
também aumentou, apenas 19% acreditam que os laços familiares se fortaleceram
nestas duas décadas. Não é por acaso que 59% da população veem com bons olhos o
papel público da religião, entre os quais 67% são religiosamente ativos, como
os evangélicos pentecostais.
O
poder religioso evangélico-pentecostal adquiriu sua maior força nos
acontecimentos que ocasionaram a deposição da presidente Dilma Rousseff. Sua
fidelidade radical e subserviente a esse projeto, determinado pelos acordos de
bastidores entre bancadas ultraconservadoras e regressivas em direitos como a
ruralista e das armas, levou-o a alcançar maior acesso a recursos e influência
em negociações de seu interesse. Mas, descontentes com o papel coadjuvante, as
elites políticas evangélicas lançaram-se no projeto de mais alto risco de sua
história recente desde o apoio ao golpe civil-militar de 1964: apoiar sem
reservas a extrema direita, representante maior do antagonismo aos direitos
humanos e da onda conservadora que bateu na ressaca da crise do sistema
político pós-2013.
Quando
legitima o moto deslaicizante “Deus acima de tudo”, o bolsonarismo evangélico
quer, para além do que o identifica com as razões que levaram a sociedade
brasileira a eleger o capitão do Exército, que ele garanta aos que o
consagraram mito o acesso aos mecanismos de poder real e simbólico que lhes
permita prestar culto a deuses que já são náufragos nas águas agitadas da
pluralidade cultural, individualização e destradicionalização brasileira. É uma
tarefa destinada ao fracasso. Já veremos se os evangélicos conseguirão andar
sobre as águas.
Fonte:
Por Rafael Rodrigues da Costa, no Le Monde/Nexo Jornal
Nenhum comentário:
Postar um comentário