segunda-feira, 3 de abril de 2023

Falha de cadastro do governo permite ‘grilagem digital’ em terras indígenas

A grilagem de terras avança agora de forma digital na Amazônia. Criado para centralizar informações sobre a vegetação nativa, o sistema do Cadastro Ambiental Rural (CAR) permitiu um “vale-tudo” na internet e se tornou uma ferramenta para a tomada de florestas e a invasão efetiva de territórios indígenas e da União. Nos últimos dez anos, o cadastro, que é autodeclaratório, se transformou em uma máquina rápida de produzir documentos oficiais que ligam grileiros a uma propriedade.

O mecanismo da grilagem digital atinge especialmente as terras indígenas com processos de homologação em fase inicial. Por meio de cruzamentos de bases de dados geoespaciais com milhares de registros do CAR, o Estadão identificou 325 fazendas registradas ilegalmente, entre 2014 e 2023, sobre cinco áreas que deveriam ser ocupadas exclusivamente por comunidades tradicionais da floresta.

A legislação diz que o CAR é válido enquanto os órgãos ambientais dos Estados não reconhecem a ilegalidade, ainda que as propriedades estejam flagrantemente sobrepostas a terras públicas. Como o poder público leva anos para analisar cada registro, o grileiro inscreve áreas virgens no sistema e consegue instantaneamente um documento oficial da terra. A demora na análise do cadastro dá tempo ao falsificador de se consolidar como proprietário de seu suposto imóvel. Com o papel, fazendeiros podem, por exemplo, emitir guia para transporte de gado e até solicitar financiamentos.

As projeções mostram brigas de grileiros pelos mesmos espaços e um avanço feroz de fazendeiros sobre florestas de Roraima, Rondônia, Amazonas, Pará e Mato Grosso. A grilagem digital combinada com o desmatamento se intensificou nos momentos em que o governo federal negligenciou a renovação das proibições de acesso às terras, restrição que caracteriza áreas em vias de reconhecimento por decreto.

Na criação do CAR, em 2012, o governo argumentou que pretendia mapear informações ambientais de todos os imóveis rurais do País Cada dono de terra deve informar características hidrográficas, áreas de proteção, florestas, restingas e veredas, por exemplo. Os dados são enviados pela internet, por meio dos sites dos órgãos ambientais. O que se viu, no entanto, foi um novo mapa de áreas extensas da floresta elaborado pelo crime organizado de terras.

As fragilidades tornam o sistema vulnerável aos falsificadores e prejudica o próprio mercado de terras e proprietários do País inteiro, uma vez que o cadastro não separa o proprietário real do falsário.

•        Alerta

Referência na pesquisa e no enfrentamento da grilagem de terras, a promotora Eliane Moreira, do Ministério Público do Pará, disse ser urgente a atualização no sistema do CAR que impeça automaticamente cadastros sobrepostos a terras indígenas ou áreas públicas. “É uma providência para ontem”, afirmou. “O problema é que o decreto que regulamentou o Código Florestal diz que, enquanto não for analisado o CAR pelo órgão ambiental, ele é válido para todas as finalidades previstas em lei. Para quem quer desviar ele acaba sendo muito útil.”

Doutor em Geografia Humana pela USP e pesquisador de conflitos territoriais na Amazônia, o professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) Maurício Torres destacou que grileiros negociam terras com o argumento de que elas estão “documentadas” com o CAR. “Na prática, alimentou-se um mercado. Vendem e compram terra grilada a partir desse documento, que é um documento oficial, mas sem lastro nenhum. É como você roubar um carro e o Estado permitir que você licencie o carro roubado. Ou que permita que você cadastre o carro para trabalhar como taxista ou Uber”, disse.

•        Sobreposição

O CAR é gerido pelo Serviço Florestal Brasileiro (SFB). No governo de Jair Bolsonaro, o SFB foi transferido do Ministério do Meio Ambiente para a pasta da Agricultura, o que motivou críticas de ambientalistas. Na nova gestão de Luiz Inácio Lula da Silva, o serviço voltou a ser atribuição do Meio Ambiente, comandado por Marina Silva.

Em junho de 2020, Jalisson Parente decidiu que uma fazenda de 1,8 mil hectares dentro da terra indígena Pirititi, em Roraima, seria dele. Ele acessou o CAR e cadastrou o terreno como de sua propriedade. O espaço equivalente a 2,5 mil campos de futebol fica quase integralmente na porção norte da terra indígena. Filiado ao MDB, Jota, como é conhecido, admitiu que chegou à fazenda porque “estava atrás de terra”.

À reportagem, ele negou ter relação com o desmatamento no local e disse que só soube dos índios que ali habitavam posteriormente “A gente estava atrás de terras, mas não levamos à frente”, disse. “Com os índios aqui em Roraima a gente não mexe. Até dei andamento, mas não tive interesse. Evitei o conflito”, disse.

Outra evidência de fraude está em uma fazenda ainda maior ao sul do território Pirititi. Com 2 mil hectares, a Fazenda Marinho foi inserida no CAR em 28 de maio de 2021 por um contador que vive no entorno de Brasília. Localizado pela reportagem, Eduardo Marinho negou ter propriedades em Roraima e negou ter feito o registro do imóvel em favor de algum terceiro.

“Certamente isso deve ser um erro, não tenho propriedade por lá”, disse. Quando questionado se tinha alguma ideia de como todos os seus dados pessoais estavam no cadastro e se pretendia tomar alguma providência, ele respondeu: “Não registrei nada, então nem vou ligar para isso”.

•        Xingu

O caso mais emblemático de expropriação de territórios de comunidades tradicionais em fase inicial de homologação está na região do Médio Xingu, no Pará. Mais de 90% dos 142 mil hectares da terra indígena Ituna-Itatá, entre os municípios de Altamira e Senador José Porfírio, estão, no papel, nas mãos de falsários.

Os mapas gerados pela reportagem a partir de dados do CAR mostram a profusão de lotes conjugados e de tamanhos parecidos, além de fazendeiros reivindicando os mesmos hectares. Para especialistas, a característica é um forte indicativo de grilagem e de disputas de posseiros. Dos 208 imóveis rurais registrados dentro da terra indígena, 69 têm mais de mil hectares – o equivalente a cerca de 1,4 mil campos de futebol, cada. O tamanho ajuda a traçar o perfil dos grileiros. Em vez de colonos e de pequenos produtores rurais, são ruralistas e especuladores imobiliários que se apossam de áreas protegidas.

A portaria que proíbe – ao menos formalmente – invasões na Ituna-Itatá perdeu a validade em 2021. Às vésperas do vencimento e sob a expectativa de o governo Bolsonaro não renovar a proibição, a derrubada de árvores alcançou recorde nos dois anos anteriores. O fim da restrição representaria a queda do último entrave às expropriações que, na prática, já ocorriam. O governo não renovou e a restrição formal só foi restabelecida em agosto de 2022, por decisão da Justiça.

Maurício Torres, da UFPA, disse que o CAR demanda conhecimento técnico para geração de dados cartográficos e envio de informações ao sistema, uma desvantagem aos povos da floresta. “É uma política pública, um registro cartográfico que só conversa na linguagem do expropriador. É inacessível aos indígenas que estão lá e que obviamente são quem os que têm o direito à terra. Ela se adequa à sanha expropriatória daquele que vem por cima, repetindo um movimento de violências, de expropriação, de grilagem, de desmatamento”, observou o professor.

 

       Grilagem digital: metade de área indígena no PA foi registrada em nome de engenheiro

 

O esquema de grilagem virtual une engenheiros e grileiros na apropriação ilegal de terras na Amazônia que resulta no desmatamento da floresta. A inscrição de um imóvel no Cadastro Ambiental Rural (CAR) demanda conhecimento técnico para preenchimento da documentação e uso de sistemas de projeção cartográfica dos imóveis.

Em Ituna-Itatá, no Pará, 42% das fazendas que aparecem sobre a terra indígena foram cadastradas por uma única pessoa, o engenheiro Jorge Luiz Barbosa Corrêa. Conhecido de investigadores no Pará, ele foi alvo de inquéritos que apuraram manutenção de trabalhadores em condições análogas à escravidão e atuação de empresas fantasmas ligadas a esquema de venda de madeira ilegal. No início do mês, Corrêa prestou depoimento à Polícia Federal em inquérito que apura suspeita de crimes relacionados à grilagem.

Localizado pelo Estadão, Corrêa afirmou desconhecer a maioria das terras registrada em seu nome. Segundo o engenheiro, alguém usou os dados dele. "Usaram indevidamente meu nome. Vários desses imóveis eu não sei de quem são nem onde ficam. Aí eu pergunto para o meu cliente. Ele diz: 'Olha, não sei quem fez'. Sinceramente, eu não sei quem fez então", declarou.

A terra indígena Ituna-Itatá tem 142 mil hectares, uma área quase do tamanho da cidade de São Paulo, e é habitada por comunidades que vivem em isolamento na floresta. É um dos casos mais simbólicos de avanço da grilagem porque já tem mais de 90% de sua área tomada por fazendas.

•        Disputa

Em Roraima, o engenheiro agrônomo Idelban Pereira da Silva é responsável por colocar no CAR, entre 2016 e 2022, mais de 6 mil hectares de fazendas que tomam ao menos uma parte do território Pirititi, localizado dentro dos limites do município de Rorainópolis. Questionado sobre o fato de as propriedades se sobreporem a uma área que não é privada, ele afirmou não reconhecer a terra indígena. "Na minha visão, as pessoas (donos das fazendas) estão lá desde 2008. A pretensão está em estudo, não existe terra indígena", alegou Idelban.

A versão contradiz os entendimentos oficiais do poder público. Embora ainda não homologada, isto é, demarcada por decreto do presidente da República, existe um processo em andamento e o governo já nomeia a área como terra indígena. De acordo com portaria da Funai, somente indígenas e servidores da fundação podem acessar o local.

Idelban foi um dos alvos de uma grande operação da PF contra o desmatamento em Roraima, em 2012. A investigação apontou que uma quadrilha de empresários, engenheiros e servidores grilava terras em Rorainópolis e forjava documentos para dar aspecto de legalidade à extração criminosa de madeiras da floresta.

Uma interceptação telefônica revelou que Idelban tinha acesso à movimentação de fiscais ambientais e avisava sobre vistorias. Em uma delas, chegou a sugerir a um desmatador que "ou tu quebra a ponte ou dá um jeito de o pessoal não ir lá". O engenheiro chegou a ser condenado a pagamento de multa em 2017, mas a maior parte dos crimes prescreveu.

Uma cozinheira que teve o nome usado por ele no esquema narrou em um processo de 2019 como se deu a abordagem. Em 2006 o grupo de Idelban procurou a mulher, que havia prestado serviços a um fazendeiro próximo a ele entre 1991 e 2004. A promessa era a de que ela e o marido poderiam ter um pequeno pedaço de terra para plantar o que quisessem. Bastava entregar alguns documentos e aguardar até que tudo fosse providenciado nos órgãos competentes. Interessada em garantir um lote, assinou tudo o que lhe foi pedido, até em cartório.

O terreno não foi repassado e ela acabou presa. Segundo a polícia, a cozinheira sabia do esquema e recebeu R$ 20 mil em troca. Ela, porém, se disse vítima e processou Idelban por danos morais. A ação judicial não avançou por falta de provas e porque as acusações da mulher prescreveram.

•        Índio do buraco

Sobre os 8 mil hectares da terra indígena Tanaru, em Rondônia, há mais um flagrante de irregularidades. Cinco imóveis estão registrados no CAR com algum nível de sobreposição à área habitada por um povo que não resistiu ao avanço do gado e da exploração de madeira. Em agosto de 2022, o "Índio do Buraco" foi encontrado morto em sua palhoça. Era o último sobrevivente do povo Tanaru, massacrado nos anos 1990.

Em virtude da vida em isolamento extremo, pouco se soube sobre os costumes dos Tanarus, à exceção do hábito de escavar buracos. Mas o último deles ajudou a manter de pé uma parte da floresta durante as mais de duas décadas em que viveu sozinho na mata. A presença dele levou a Funai a restringir o local a não indígenas de 2012 até 2025, para que ele pudesse ficar sem contato com o restante da sociedade.

Apesar das vedações, fazendas foram sendo registradas no CAR. As inscrições mais recentes são de 2020 e 2021. E pouco depois que o último tanaru morreu, fazendeiros que se dizem donos da terra pediram a derrubada da portaria que restringiu o loteamento sob a justificativa de que a medida perdeu o sentido.

•        Investigação

A investida dos ruralistas é monitorada pelo Ministério Público Federal. Nos últimos anos, o órgão atuou na proteção ao último tanaru com medidas judiciais e extrajudiciais que visavam manter invasores afastados. Uma nova ação civil pede que a terra indígena tenha destinação socioambiental e seja demarcada, apesar da morte do último indivíduo.

"O argumento jurídico para demarcar o território é a sua ancestralidade, a tradição da sua ocupação, a sua importância histórica, a função para a preservação do ambiente, das práticas tradicionais do tanaru, da biodiversidade, dentre outros", disse o procurador Leonardo Caberlon.

A indigenista Ivaneide Bandeira atuou por anos no monitoramento da área do "Índio do Buraco" e em ações para evitar invasões. Com quatro décadas de dedicação às defesa de povos indígenas, ela não tem dúvida de que o surgimento de fazendas sacramentou o destino dos Tanarus. "O avanço das fazendas em cima da terra indígena massacrou, fez desaparecer um povo, a ponto de se ter um único sobrevivente."

Agora, Ivaneide espera que o corpo do "Índio do Buraco", sepultado no local onde foi encontrado depois de um longo impasse judicial, sirva para manter a floresta de pé, assim como fez em vida. "A minha visão é a de que aquela área precisa ser transformada em um memorial, um parque indígena. É a memória de um povo massacrado."

 

Fonte: Agencia Estado

 

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