Concílio Vaticano
2º: os 60 anos do encontro que modernizou a Igreja Católica
Padres mais antigos, que viveram o catolicismo pré e
pós-Concílio Vaticano 2º, costumavam dizer que antes as pessoas assistiam à
missa. Depois, passaram a participar dela. É uma verdade que ilustra, do ponto
de vista do católico participante, a dimensão do que foi esse encontro da
cúpula da Igreja Católica ocorrido de 11 de outubro de 1962 a 8 de dezembro de
1965.
Até
então, as missas eram celebradas em latim, com o padre de costas para os fiéis.
Só a partir dali é que os rituais passaram a ser na língua local, com o padre
virado para o povo, como se todos estivessem ao redor de uma mesma mesa — no
caso, o altar.
Mas
esta foi apenas uma das mudanças proporcionadas pelo encontro, que buscou
alterar significativamente a mentalidade da instituição religiosa milenar.
"Ao
promover um diálogo intra e extra-muros, o concílio significou a passagem da
Igreja Católica, então medieval, para a modernidade", define o teólogo,
historiador e filósofo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade
Presbiteriana Mackenzie.
Para
o filósofo e teólogo Fernando Altemeyer Junior, professor na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o encontro foi importante
"porque abriu a Igreja para dialogar com o mundo e sair das masmorras onde
havia se encerrado".
"O
Vaticano 2º foi orientado pela palavra 'atualização'. Atualização diante dos
desafios do mundo, com as mudanças, com o avanço da ciência e da tecnologia,
com a mudança das questões morais e com as questões sociais exigindo respostas,
no clima da guerra fria", destaca o vaticanista Filipe Domingues,
vice-diretor do Lay Centre em Roma. Ele ressalta que fazia "muito
tempo" que a Igreja não fazia uma reforma profunda e o concílio foi a
oportunidade de revisar paradigmas.
Não
foi algo simples, nem de uma hora para outra, é claro. Na história da igreja,
são chamados de concílios os encontros convocados pelo papa para deliberar
sobre o futuro da organização, a partir de paradigmas de fé, costumes e
doutrinas. Reúnem a cúpula hierárquica da Igreja e atravessam intensos debates.
·
Fiéis
O
Vaticano 2º foi realizado por meio de quatro sessões — de outubro de 1962 a
dezembro de 1965. No total, participaram 3.060 membros com voz e voto, entre
eles dois papas — João 23 (1881-1963), que convocou o sínodo, e seu sucessor,
Paulo 6º (1897-1978) —, 129 superiores gerais, 12 patriarcas, dois vigários
patriarcais, 122 cardeais, 398 arcebispos, 1.980 bispos, 91 prelados, entre
outros cargos eclesiásticos.
Dentre
todos os participantes do encontro, há apenas seis vivos, nenhum brasileiro.
"O Brasil enviou ao encontro 221 bispos e prelados, além de nove peritos e
um leigo", pontua Altemeyer Junior.
No
total, o concílio resultou na publicação de quatro constituições, nove decretos
e três declarações.
De
forma geral, é possível delimitar em quatro eixos o impacto do evento.
"A
nova liturgia em línguas vernáculas, a retomada da palavra de Deus como central
na fé católica, a ação em favor da transformação do mundo, e a nova consciência
da Igreja como instrumento de diálogo com as realidades do mundo e as outras
religiões", descreve Altemeyer.
Em
outras palavras, o catolicismo pós-concílio se tornou mais próximos dos fiéis,
mais profundo biblicamente, mais perto dos pobres e mais aberto às outras
manifestações religiosas.
"É
como se a Igreja Católica estivesse se reconciliando com a modernidade",
comenta Moraes. "Após o Vaticano 2º, podemos falar em renovação, em
reflorescimento do catolicismo."
"Demorou
para isso acontecer? Demorou. Mas é preciso lembrar que a Igreja Católica é um
transatlântico: virar esse negócio é muito difícil, manobrar é muito
difícil", acrescenta o teólogo.
·
Opção pelos pobres
Ao
longo de três anos, os padres conciliares reafirmaram que a Igreja precisava
estar junto aos pobres. "A Igreja reafirmou a opção preferencial pelos
mais pobres, e isso teve um eco enorme, por exemplo, na teologia da América
Latina, a teologia da libertação", comenta Moraes.
Isso
se tornou mais simbólico ainda no chamado Pacto das Catacumbas — oficialmente
Pacto da Igreja Servidora e Pobre —, um documento produzido e assinado por 42
participantes do concílio.
O
pacto recebeu esse nome porque foi assinado em um encontro realizado nas
catacumbas de Santa Domitila, em Roma. Depois, mais de 500 religiosos também se
tornaram signatários do documento.
Entre
os pontos do texto, há o compromisso em dar "tudo o que for necessário ao
serviço apostólico e pastoral das pessoas e dos grupos laboriosos e
economicamente fracos e subdesenvolvidos", a recusa a privilégios e
títulos e o ensejo de colocar "tudo em obra para que os responsáveis pelo
nosso governo e pelos nossos serviços públicos decidam e ponham em prática as
leis."
"A
Igreja Católica, ao entrar de fato na modernidade, ela faz uma opção pelos
pobres combatendo as estruturas geradoras de injustiça social", analisa
Moraes.
Com
13 pontos, o texto foi apresentado no dia 16 de novembro de 1965 e contou com a
participação de cinco brasileiros: o então arcebispo de Vitória, João Mota e
Albuquerque (1909-1984); o bispo de Afogados de Ingazeira, Francisco de
Mesquita Filho (1924-2006); o bispo auxiliar do Rio de Janeiro, José Castro
Pinto (1914-2007); o bispo de Botucatu, Henrique Golland Trindade (1897-1974);
e o então bispo de Crateús, Antônio Fragoso (1920-2006).
O
acordo teve como um dos mentores principais o arcebispo Helder Câmara
(1909-1999), um dos fundadores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB) e já conhecido como defensor dos direitos humanos. De acordo com pesquisa
de Altemeyer, Câmara não esteve presencialmente no evento porque no mesmo dia
precisou participar de uma reunião, junto à cúpula do Vaticano, relacionada ao
concílio.
·
Comunidade e ecumenismo
Outro
ponto relevante do concílio foi a melhora da comunicação com os próprios fiéis.
Não só pelo fato de que as missas deixaram de ser em latim e com o padre de
costas, mas também porque a liturgia passou a prever uma participação mais
ativa da comunidade.
"E
os leigos passaram a ser valorizados, com uma participação maior dentro das
estruturas da igreja. O Vaticano passa a olhar para os leigos de uma forma
diferente", diz Moraes.
Eram
questões, contextualiza ele, que estavam represadas há mais de um século, com
um anseio cada vez maior de participação. "Havia um anseio de uma série de
movimentos dentro da Igreja, que já vinham acontecendo e deságuam no Vaticano
2º", pontua o teólogo.
Segundo
o especialista, esse movimento leigo acabou trazendo sua peculiaridade para a
própria aproximação da Igreja com a comunidade. "Porque a Igreja é feita
de pessoas, e esse movimento refletiu as transformações e exigências
socioculturais do período, mostrando que a força do laicato é fundamental para
a vida da igreja", afirma. "E isso veio com muita força ao Brasil,
com presença em todos os segmentos da sociedade."
"O
concílio entendeu que hierarquia eclesiástica existe, mas precisa ser
equilibrada com a participação popular. A devoção popular precisa ser
valorizada, mas ao mesmo tempo orientada. Tudo isso foram coisas amadurecidas,
que já vinham de antes do concílio, já vinham sendo faladas e até praticadas em
alguns grupos", argumenta o vaticanista Domingues.
Moraes
recorda ainda que o concílio demarca um esforço de diálogo ecumênico,
principalmente com outras religiões cristãs, mas sem deixar de lado também
outros credos.
"Era
algo que alguns grupos já praticavam, mas não era uma política da Igreja",
analisa Domingues. "Tornou-se um ensinamento. Não se pode ser católico sem
ser a favor do ecumenismo, da unidade dos cristãos. Um católico que é contra
outros cristãos não é essencialmente católico."
O
vaticanista explica que é um princípio do concílio que os membros da Igreja
Católica rezem e busquem amizade com os de outras denominações. E isso é
visível na postura dos papas, que não raras vezes se encontram com líderes de
outras religiões.
E
isso vale, de certa maneira, também para as igrejas não cristãs. "Embora a
Igreja Católica continue acreditando que não há salvação sem Cristo, ela se
abre para a ideia de que o espírito de Deus pode se manifestar de alguma forma
por meio de outras religiões e até mesmo de pessoas que não acreditam. Em
outras palavras, não quer dizer que aquelas pessoas não batizadas ou que não
creem em Deus são blindadas pela ação do Espírito Santo", contextualiza o
vaticanista. "Isso muda completamente a presença da Igreja no mundo."
Por
fim, a Igreja também fez o que é chamado de "movimento patrístico",
ou seja, um mergulho em suas próprias bases teológicas. "Foi uma
redescoberta dos santos padres, as fontes referenciais da tradição católica.
Isso foi fundamental", acredita Moraes. Na mesma toada, a bíblia recupera
o centro, com aprofundamentos de estudos. "Nesse sentido, há avanços,
inclusive porque a ciência bíblica católica fez uma exegese profunda do texto, um
trabalho muito sério, contando com a colaboração da linguística, da
arqueologia…", exemplifica o professor.
Para
Moraes, foi inaugurada uma "nova teologia" levando em consideração
"os pais da igreja e os avanços exegéticos nessa 'volta à bíblia'".
·
Francisco
No
atual pontificado, papa Francisco dá sinais de que intensificar cada vez mais o
que ficou decidido no Vaticano 2º, inclusive demonstrando não tolerara aqueles
que negam tais avanços. "Todos os papas foram 100% a favor do concílio,
nenhum deles foi resistência. Mas cada qual abordou a seu modo", analisa
Domingues. "Francisco está sendo mais duro com aqueles que não reconhecem
o concílio."
Recentemente,
por exemplo, ele restringiu a chamada missa tridentina, ou seja, as celebrações
em latim. Ele entende que os que assim o fazem pretendem reforçar divergências.
"Para Francisco, ele já falou, para ser católico é preciso reconhecer o
concílio. Isso não é opcional", explica Domingues.
"Não
tem como ser membro da Igreja sem aceitar os ensinamentos dela de forma
integral", diz o vaticanista. "E as decisões tomadas em concílio têm
poder máximo do ponto de vista moral da Igreja."
O
rito litúrgico romano, embora não seja o único do catolicismo, é o principal da
Igreja ocidental. "A Igreja tem sido mais ou menos flexível com aqueles
que seguem o tridentino, mas Francisco tem buscado inibir isso, limitando a
alguns grupos, para que isso não cresça. Porque o concílio foi muito claro
sobre como deve ser celebrada a missa. E difundir a missa tridentina é, de
certa maneira, não aceitar o magistério do concílio", acrescenta
Domingues.
Essa
posição de Francisco é ainda mais interessante porque, se analisarmos à luz da
história, ele é o primeiro papa pós-concílio que não participou do encontro. O
então bispo Albino Luciani, depois papa João Paulo 1º (1912-1978), atuou como
padre conciliar. João Paulo II (1920-2005), então bispo Karol Wojtyla, também.
Papa Bento 16, na época padre Joseph Ratzinger atuou nos bastidores, como
consultor.
"Francisco
é o primeiro que não participou diretamente, mas segue colocando em prática
muita coisa", conclui Domingues. Um exemplo está nos documentos. O método
consagrado pelo Vaticano 2º, o "ver-julgar-agir" está visivelmente
presente nas publicações do atual pontificado, sobretudo nas encíclicas.
"Antes,
primeiro havia já as respostas, depois a ideia de mudar a realidade para fazer
com que ela se encaixasse nas respostas", comenta Domingues. "Agora
não é mais assim: a Igreja olha para a realidade, procura entendê-la e bater
com as verdades da fé, então vê o que faz com que isso."
Segundo
Domingues, o Concílio Vaticano 2º deixou aberta a porta para a Igreja
"assumir uma voz profética sobre questões sociais e humanas mais
latentes".
E
é por isso que atualmente Francisco pode se posicionar sobre os mais diversos
temas, com inegável autoridade política e moral. "Desde então, o mundo
para ouvir o papa sobre questões gerais, não só sobre questões de fé. Francisco
toca muito em assuntos assim, em temas cruciais para a humanidade, questões
sociais, familiares, temas importantes para a vida em sociedade."
Fonte:
BBC News Brasil
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