Organizações alertam sobre risco de
retrocesso em direitos indígenas no STF
Doze organizações e
representações que atuam como amici curiae – “amigas da Corte” nas Ações
Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) contra a Lei do Marco Temporal (Lei
14.701/2023), emitiram uma nota pública expressando profunda preocupação com a
condução da mesa de conciliação estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal
(STF). A mesa, liderada pelo ministro Gilmar Mendes, tem sido alvo de críticas
crescentes devido à falta de transparência e ao risco de retrocesso nos
direitos indígenas.
As organizações se
solidarizam com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que decidiu
se retirar das negociações na última quarta-feira (28/08), após considerar que
“negociar direitos fundamentais é inadmissível”. O principal foco das críticas
é a forma como as discussões têm sido conduzidas, sem que questões cruciais
levantadas pela Apib tenham sido devidamente respondidas, como o pedido de
reconhecimento da inconstitucionalidade da Lei 14.701 (Lei do Marco Temporal),
especialmente em relação aos dispositivos já julgados inconstitucionais pela
Suprema Corte no Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que teve repercussão
geral e foi concluído em setembro de 2023.
Esse julgamento do STF
foi considerado um marco na defesa dos direitos constitucionais indígenas. A
posição do STF foi diametralmente oposta a diversos pontos que, depois, foram
incluídos pelo Congresso Nacional na Lei 14.701. A norma está em vigor desde
sua promulgação, em dezembro de 2023.
As organizações
apontam que a falta de clareza sobre o objeto da discussão nas audiências de
conciliação levam a crer que os direitos territoriais indígenas, reconhecidos
como direitos fundamentais pelo próprio STF no julgamento de repercussão geral,
podem acabar sendo “negociados e mesmo sofrer retrocesso”.
A nota também denuncia
a postura intransigente do juiz auxiliar Diego Viegas Veras, que na primeira
audiência chegou a exibir um áudio protagonizado pelo presidente do Senado
Federal, Rodrigo Pacheco, em que ameaçava colocar em votação no Congresso a Proposta
de Emenda Constitucional (PEC) 48, que institui o Marco Temporal, caso não
houvesse resultado da conciliação. Tal atitude, segundo as organizações, gerou
um sentimento de “indignação e humilhação” entre as representações indígenas.
As entidades apoiam a
saída da Apib, sublinhando que “a própria ideia de conciliação como
autocomposição de conflitos parece supor que todas as partes concordaram com
essa forma de solução da controvérsia. Quando uma das partes a recusa, o tema
necessariamente volta ao julgador para a decisão. Do contrário, a parte
recusante terá negado o seu acesso à justiça. A Apib, e não outra entidade
indígena, convém lembrar, é uma das autoras da ADI 7.582”.
Apesar das críticas,
as organizações reafirmam sua confiança no STF, citando o julgamento do RE
1.017.365 como um exemplo de interpretação que deve ser mantida para garantir o
respeito aos direitos indígenas consagrados na Constituição Federal.
<><> Leia
a nota na íntegra:
Nota dos amici curiae
sobre a condução da mesa de conciliação que discute a constitucionalidade da
Lei 14.701/2023
As entidades abaixo
relacionadas, todas admitidas como amici curiae nos autos da ADC 87, onde se
encontram reunidas as ADI 7.582, 7.583 e 7.586, bem como a ADO 86, vêm externar
a sua posição a respeito da condução dos trabalhos, pelo juiz auxiliar Diego Viegas
Veras, no âmbito da Comissão Especial instituída pelo Ministro Gilmar Mendes
com o propósito de buscar a resolução de problemas “no que se refere ao tema
dos direitos da população indígena e não indígena que envolvem o art. 231 da CF
e a Lei 14.701/2023”.
1. A Comissão Especial começou a funcionar
sem que questões prejudiciais, suscitadas reiteradamente pela Apib, fossem
respondidas, em especial a necessidade de afirmar a inconstitucionalidade da
Lei 14.701, ao menos de seus dispositivos em completo desacordo com o
julgamento do STF no RE 1.017.365. Há jurisprudência tranquila no sentido de
que uma lei que surge em oposição direta ao entendimento do STF nasce com a
presunção iuris tantum de inconstitucionalidade, recaindo sobre o legislador
ônus argumentativo que justifique a razão de superação de julgado da Corte, o
que não ocorreu.
2. A audiência inaugural da Comissão
Especial, sob o comando do juiz Diego Viegas Veras, começou com a ameaça de
que, caso não houvesse a conciliação, uma PEC para instituir o Marco Temporal
de 5 de outubro de 1988 seria posta em votação. Um áudio protagonizado pelo
presidente do Senado Federal foi colocado em alto volume, para que não houvesse
dúvidas a respeito. O mesmo ocorreu na segunda audiência, onde a postura da
condução da mesa foi demasiado intransigente com os apontamentos feitos pelos
povos indígenas, reduzindo os questionamentos constitucionais a “questões
laterais”.
3. Na sequência, vários incidentes
demonstraram o absoluto desconhecimento do juiz instrutor com a temática posta
sob conciliação, ora sugerindo que a Funai teria algum papel de representação
dos povos indígenas, ora afirmando que a conciliação seguiria mesmo sem a
presença da representação indígena.
4. Tampouco houve clareza sobre os limites
do que seria passível de conciliação, tudo levando a crer que direitos cuja
fundamentalidade foi afirmada pelo próprio STF no julgamento do RE 1.017.365
poderiam ser negociados e mesmo sofrer retrocesso.
5. O sentimento coletivo, tanto das
representações indígenas como das entidades que há décadas trabalham com a
matéria, foi de indignação e humilhação, dado o aviltamento a que foi submetida
questão constitucional.
6. A decisão tomada no dia de hoje, de saída
da APIB enquanto movimento de representação nacional e que agrega organizações
de todas as regiões do Brasil, é referendada pelas entidades signatárias por
duas razões muito básicas. A primeira é que a própria ideia de conciliação como
autocomposição de conflitos parece supor que todas as partes concordaram com
essa forma de solução da controvérsia. Quando uma das partes a recusa, o tema
necessariamente volta ao julgador para a decisão. Do contrário, a parte recusante
terá negado o seu acesso à justiça. A APIB, e não outra entidade indígena,
convém lembrar, é uma das autoras da ADI 7.582. E a segunda é a própria
centralidade que os povos indígenas têm nas questões que lhes concernem
diretamente, nos termos da Convenção 169 da OIT. É inconcebível que se discutam
seus direitos territoriais sem a presença de povos indígenas.
7. As entidades signatárias reafirmam a sua
confiança no Supremo Tribunal Federal, que soube bem compreender o sentido do
artigo 231 da Constituição Federal por ocasião do julgamento do RE 1.017.365.
Brasília, 28 de agosto
de 2024
ASSINAM:
Associação Brasileira
de Antropologia (ABA)
Comissão Arns
Associação Juízes para
a Democracia – AJD
WWF-Brasil
Centro de Trabalho
Indigenista – CTI
Conselho Indigenista
Missionário – Cimi
Comissão Guarani
Yvyrupa – CGY
Conectas Direitos
Humanos
Povo Xokleng da Terra
Indígena Ibirama La-Klãnõ
Alternativa Terrazul
Instituto
Socioambiental (ISA)
Instituto Alana
• Nota do Cimi: com fracasso evidente da
conciliação, é urgente que STF decida sobre Lei 14.701 e reafirme direitos
indígenas
A segunda reunião da
mesa de conciliação convocada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF)
Gilmar Mendes com o objetivo de “compor” um acordo sobre direitos fundamentais
dos povos indígenas inseridos no artigo 231 da Constituição Federal – e nela
reconhecidos como direitos indisponíveis e imprescritíveis – confirmou o
insucesso e a inviabilidade desse mecanismo de negociação.
Da mesma forma que na
primeira reunião, ocorrida no dia 5 de agosto, a audiência realizada nesta
quarta-feira (28) voltou a ser conduzida de forma confusa e arbitrária por
pessoas que mostraram, em diversos momentos, evidente parcialidade, muito pouco
conhecimento da matéria e nenhuma sensibilidade com a realidade que vivem os
povos indígenas.
A discussão atravessou
em diversos momentos níveis muito baixos e precários de qualificação e de
competência. Todas as preocupações despertadas durante a primeira reunião foram
confirmadas ontem de forma clara: trata-se de uma mesa sem objeto definido, com
uma composição desfavorável aos povos indígenas e que pretende avançar na
modulação e reformulação de direitos fundamentais por sistema de maioria
simples.
O caráter perverso
alcançou seu nível mais cruel quando o coordenador da mesa, em sua fala
introdutória, afirmou que os povos indígenas carregariam com o ônus da
violência nos territórios caso decidissem retirar-se da mesa de conciliação.
Esta afirmação foi feita poucas horas depois de um novo ataque armado contra o
povo Avá-Guarani no Tekoha Y’Hovy, localizado na Terra Indígena (TI) Tekoha
Guasu Guavirá, no oeste do Paraná, que deixou quatro indígenas feridos e um
ambiente de terror que permanece ainda hoje.
A retirada do
movimento indígena da mesa – nela representado pela Articulação dos Povos
Indígenas (Apib), autora da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 7582
– após a leitura pública de uma declaração é uma decisão política legítima e
altiva por parte dos povos originários. Evitando cair na cilada política e
jurídica de uma conciliação forçada, os povos indígenas demonstram um
compromisso firme com a garantia de seus direitos, duramente conquistados e
reconhecidos na Constituição Federal de 1988, e transmitem ao STF a plena
confiança de que a Corte assumirá seu dever e obrigação de guardar a
Constituição Federal e garantir os direitos das minorias.
Por outro lado, a
eventual continuidade da mesa de conciliação sem a presença dos povos indígenas
fere, por si mesma, direitos fundamentais e compromissos internacionais que
fazem parte do marco normativo mais elevado do país, o que já deveria ser
motivo suficiente para que representantes dos Poderes Legislativo e Executivo e
dos órgãos de controle também se retirassem da mesa e para que o Poder
Judiciário revisse, definitivamente, a iniciativa.
O Conselho Indigenista
Missionário (Cimi) reafirma que o mecanismo da mesa de conciliação ou
autocomposição, em seu mérito e essência, não é um instrumento válido, nem
legítimo, nem competente para dirimir sobre matéria indígena. Não há
negociação, nem modulação e nem composição possível quando se fala de direitos
fundamentais e indisponíveis. Em apenas duas reuniões já ficou evidenciado o
insucesso da iniciativa e agora urge retomar os caminhos da institucionalidade
democrática para resolver a situação.
É absolutamente
urgente e imprescindível que o STF suspenda os efeitos da Lei 14.701/2023, ou
que de pronto já declare sua flagrante inconstitucionalidade. A vigência desta
lei é imoral e afronta a vida e o futuro dos povos indígenas. Os procedimentos
administrativos de demarcação estão paralisados e todo o país está
testemunhando uma escalada da violência armada contra os povos indígenas em
seus territórios.
Fazendeiros,
ruralistas e milicianos continuam assediando, intimidando e atacando
comunidades indígenas, cercando-os e ateando fogo, impedindo a chegada de ajuda
humanitária e atirando contra mulheres e crianças em ataques covardes,
acobertados pela ineficiente ação do Estado, o que lhes garante absoluta
impunidade. Não é possível desvincular a persistente violência contra os povos
indígenas da vigência da Lei 14.701/2023 e da manutenção da falaciosa mesa de
conciliação.
O STF tem nas suas
mãos a possibilidade, ante a sua obrigação institucional, de declarar a
inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023 e abrir um novo cenário que firme a
atuação do Estado brasileiro para a garantia dos direitos dos povos indígenas.
O ministro Gilmar Mendes tem a responsabilidade de apreciar os pedidos levados
pelos indígenas nas ações de controle de constitucionalidade, das quais ele é o
ministro relator.
Não pode abdicar dessa
responsabilidade e não pode distanciar-se do já decidido pela Corte Suprema em
setembro de 2023 no âmbito do Tema 1.031. Na ocasião, o próprio ministro Gilmar
Mendes emitiu voto favorável aos direitos originários dos povos indígenas
contemplados no artigo 231 da Constituição Federal de 1988 posicionando-se,
consequentemente, pela inconstitucionalidade do marco temporal.
Tramitam ainda no STF
dois pedidos de incidente de inconstitucionalidade, de relatoria do ministro
Edson Fachin, e aguardam decisão os embargos de declaração do julgamento do
Tema 1.031, que já estão aptos e disponíveis para serem pautados no plenário pelo
presidente do Supremo. Todas estas ações possibilitam, processualmente, uma
decisão imediata e urgente do STF pela inconstitucionalidade da Lei
14.701/2023, o que resultaria na retomada dos procedimentos de demarcação de
terras indígenas, obrigação constitucional da União.
Ainda, no entendimento
do Cimi, há possibilidades concretas, administrativas e jurídicas, para que o
governo federal avance de forma sistemática nos procedimentos administrativos
de demarcação, inclusive durante a vigência da Lei 14.701/2023 e enquanto se
aguarda pela declaração de sua definitiva inconstitucionalidade. Numerosos
processos de demarcação em curso não são afetados pelo marco temporal e não
cabe, de forma alguma e mesmo sob a vigência da lei, qualquer eventual
retrocesso nas etapas já concluídas dos procedimentos administrativos de
demarcação, uma vez que se trata de atos jurídicos perfeitos sobre um direito
constitucionalmente declarado.
O momento atual requer
determinação política e compromisso constitucional para avançar na garantia dos
direitos dos povos indígenas e pôr fim à escalada de violência nos territórios.
Os caminhos existem, estão abertos e são possíveis. A demora e inação colocaria
o Estado brasileiro em situação de conivência com a violência contra os povos
indígenas e em escancarado descumprimento de suas obrigações constitucionais e
internacionais.
O Conselho Indigenista
Missionário conclama a todas as instâncias do Estado e a toda a sociedade
brasileira para somar esforços, assumir as responsabilidades e avançar, com
determinação e urgência, sem curvar-se a interesses particulares, na defesa da
vida, dos direitos e do futuro dos povos indígenas, que é o futuro de nosso
país.
Brasília (DF), 29 de
agosto de 2024
Conselho Indigenista
Missionário – Cimi
Fonte: Terra de
Direitos/Cimi
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