segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Organizações alertam sobre risco de retrocesso em direitos indígenas no STF

Doze organizações e representações que atuam como amici curiae – “amigas da Corte” nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) contra a Lei do Marco Temporal (Lei 14.701/2023), emitiram uma nota pública expressando profunda preocupação com a condução da mesa de conciliação estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A mesa, liderada pelo ministro Gilmar Mendes, tem sido alvo de críticas crescentes devido à falta de transparência e ao risco de retrocesso nos direitos indígenas.

As organizações se solidarizam com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que decidiu se retirar das negociações na última quarta-feira (28/08), após considerar que “negociar direitos fundamentais é inadmissível”. O principal foco das críticas é a forma como as discussões têm sido conduzidas, sem que questões cruciais levantadas pela Apib tenham sido devidamente respondidas, como o pedido de reconhecimento da inconstitucionalidade da Lei 14.701 (Lei do Marco Temporal), especialmente em relação aos dispositivos já julgados inconstitucionais pela Suprema Corte no Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que teve repercussão geral e foi concluído em setembro de 2023.

Esse julgamento do STF foi considerado um marco na defesa dos direitos constitucionais indígenas. A posição do STF foi diametralmente oposta a diversos pontos que, depois, foram incluídos pelo Congresso Nacional na Lei 14.701. A norma está em vigor desde sua promulgação, em dezembro de 2023.

As organizações apontam que a falta de clareza sobre o objeto da discussão nas audiências de conciliação levam a crer que os direitos territoriais indígenas, reconhecidos como direitos fundamentais pelo próprio STF no julgamento de repercussão geral, podem acabar sendo “negociados e mesmo sofrer retrocesso”.

A nota também denuncia a postura intransigente do juiz auxiliar Diego Viegas Veras, que na primeira audiência chegou a exibir um áudio protagonizado pelo presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, em que ameaçava colocar em votação no Congresso a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 48, que institui o Marco Temporal, caso não houvesse resultado da conciliação. Tal atitude, segundo as organizações, gerou um sentimento de “indignação e humilhação” entre as representações indígenas.

As entidades apoiam a saída da Apib, sublinhando que “a própria ideia de conciliação como autocomposição de conflitos parece supor que todas as partes concordaram com essa forma de solução da controvérsia. Quando uma das partes a recusa, o tema necessariamente volta ao julgador para a decisão. Do contrário, a parte recusante terá negado o seu acesso à justiça. A Apib, e não outra entidade indígena, convém lembrar, é uma das autoras da ADI 7.582”.

Apesar das críticas, as organizações reafirmam sua confiança no STF, citando o julgamento do RE 1.017.365 como um exemplo de interpretação que deve ser mantida para garantir o respeito aos direitos indígenas consagrados na Constituição Federal.

<><> Leia a nota na íntegra:

Nota dos amici curiae sobre a condução da mesa de conciliação que discute a constitucionalidade da Lei 14.701/2023

As entidades abaixo relacionadas, todas admitidas como amici curiae nos autos da ADC 87, onde se encontram reunidas as ADI 7.582, 7.583 e 7.586, bem como a ADO 86, vêm externar a sua posição a respeito da condução dos trabalhos, pelo juiz auxiliar Diego Viegas Veras, no âmbito da Comissão Especial instituída pelo Ministro Gilmar Mendes com o propósito de buscar a resolução de problemas “no que se refere ao tema dos direitos da população indígena e não indígena que envolvem o art. 231 da CF e a Lei 14.701/2023”.

1.       A Comissão Especial começou a funcionar sem que questões prejudiciais, suscitadas reiteradamente pela Apib, fossem respondidas, em especial a necessidade de afirmar a inconstitucionalidade da Lei 14.701, ao menos de seus dispositivos em completo desacordo com o julgamento do STF no RE 1.017.365. Há jurisprudência tranquila no sentido de que uma lei que surge em oposição direta ao entendimento do STF nasce com a presunção iuris tantum de inconstitucionalidade, recaindo sobre o legislador ônus argumentativo que justifique a razão de superação de julgado da Corte, o que não ocorreu.

2.       A audiência inaugural da Comissão Especial, sob o comando do juiz Diego Viegas Veras, começou com a ameaça de que, caso não houvesse a conciliação, uma PEC para instituir o Marco Temporal de 5 de outubro de 1988 seria posta em votação. Um áudio protagonizado pelo presidente do Senado Federal foi colocado em alto volume, para que não houvesse dúvidas a respeito. O mesmo ocorreu na segunda audiência, onde a postura da condução da mesa foi demasiado intransigente com os apontamentos feitos pelos povos indígenas, reduzindo os questionamentos constitucionais a “questões laterais”.

3.       Na sequência, vários incidentes demonstraram o absoluto desconhecimento do juiz instrutor com a temática posta sob conciliação, ora sugerindo que a Funai teria algum papel de representação dos povos indígenas, ora afirmando que a conciliação seguiria mesmo sem a presença da representação indígena.

4.       Tampouco houve clareza sobre os limites do que seria passível de conciliação, tudo levando a crer que direitos cuja fundamentalidade foi afirmada pelo próprio STF no julgamento do RE 1.017.365 poderiam ser negociados e mesmo sofrer retrocesso.

5.       O sentimento coletivo, tanto das representações indígenas como das entidades que há décadas trabalham com a matéria, foi de indignação e humilhação, dado o aviltamento a que foi submetida questão constitucional.

6.       A decisão tomada no dia de hoje, de saída da APIB enquanto movimento de representação nacional e que agrega organizações de todas as regiões do Brasil, é referendada pelas entidades signatárias por duas razões muito básicas. A primeira é que a própria ideia de conciliação como autocomposição de conflitos parece supor que todas as partes concordaram com essa forma de solução da controvérsia. Quando uma das partes a recusa, o tema necessariamente volta ao julgador para a decisão. Do contrário, a parte recusante terá negado o seu acesso à justiça. A APIB, e não outra entidade indígena, convém lembrar, é uma das autoras da ADI 7.582. E a segunda é a própria centralidade que os povos indígenas têm nas questões que lhes concernem diretamente, nos termos da Convenção 169 da OIT. É inconcebível que se discutam seus direitos territoriais sem a presença de povos indígenas.

7.       As entidades signatárias reafirmam a sua confiança no Supremo Tribunal Federal, que soube bem compreender o sentido do artigo 231 da Constituição Federal por ocasião do julgamento do RE 1.017.365.

Brasília, 28 de agosto de 2024

ASSINAM:

Associação Brasileira de Antropologia (ABA)

Comissão Arns

Associação Juízes para a Democracia – AJD

WWF-Brasil

Centro de Trabalho Indigenista – CTI

Conselho Indigenista Missionário – Cimi

Comissão Guarani Yvyrupa – CGY

Conectas Direitos Humanos

Povo Xokleng da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ

Alternativa Terrazul

Instituto Socioambiental (ISA)

Instituto Alana

 

•        Nota do Cimi: com fracasso evidente da conciliação, é urgente que STF decida sobre Lei 14.701 e reafirme direitos indígenas

A segunda reunião da mesa de conciliação convocada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes com o objetivo de “compor” um acordo sobre direitos fundamentais dos povos indígenas inseridos no artigo 231 da Constituição Federal – e nela reconhecidos como direitos indisponíveis e imprescritíveis – confirmou o insucesso e a inviabilidade desse mecanismo de negociação.

Da mesma forma que na primeira reunião, ocorrida no dia 5 de agosto, a audiência realizada nesta quarta-feira (28) voltou a ser conduzida de forma confusa e arbitrária por pessoas que mostraram, em diversos momentos, evidente parcialidade, muito pouco conhecimento da matéria e nenhuma sensibilidade com a realidade que vivem os povos indígenas.

A discussão atravessou em diversos momentos níveis muito baixos e precários de qualificação e de competência. Todas as preocupações despertadas durante a primeira reunião foram confirmadas ontem de forma clara: trata-se de uma mesa sem objeto definido, com uma composição desfavorável aos povos indígenas e que pretende avançar na modulação e reformulação de direitos fundamentais por sistema de maioria simples.

O caráter perverso alcançou seu nível mais cruel quando o coordenador da mesa, em sua fala introdutória, afirmou que os povos indígenas carregariam com o ônus da violência nos territórios caso decidissem retirar-se da mesa de conciliação. Esta afirmação foi feita poucas horas depois de um novo ataque armado contra o povo Avá-Guarani no Tekoha Y’Hovy, localizado na Terra Indígena (TI) Tekoha Guasu Guavirá, no oeste do Paraná, que deixou quatro indígenas feridos e um ambiente de terror que permanece ainda hoje.

A retirada do movimento indígena da mesa – nela representado pela Articulação dos Povos Indígenas (Apib), autora da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 7582 – após a leitura pública de uma declaração é uma decisão política legítima e altiva por parte dos povos originários. Evitando cair na cilada política e jurídica de uma conciliação forçada, os povos indígenas demonstram um compromisso firme com a garantia de seus direitos, duramente conquistados e reconhecidos na Constituição Federal de 1988, e transmitem ao STF a plena confiança de que a Corte assumirá seu dever e obrigação de guardar a Constituição Federal e garantir os direitos das minorias.

Por outro lado, a eventual continuidade da mesa de conciliação sem a presença dos povos indígenas fere, por si mesma, direitos fundamentais e compromissos internacionais que fazem parte do marco normativo mais elevado do país, o que já deveria ser motivo suficiente para que representantes dos Poderes Legislativo e Executivo e dos órgãos de controle também se retirassem da mesa e para que o Poder Judiciário revisse, definitivamente, a iniciativa.

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) reafirma que o mecanismo da mesa de conciliação ou autocomposição, em seu mérito e essência, não é um instrumento válido, nem legítimo, nem competente para dirimir sobre matéria indígena. Não há negociação, nem modulação e nem composição possível quando se fala de direitos fundamentais e indisponíveis. Em apenas duas reuniões já ficou evidenciado o insucesso da iniciativa e agora urge retomar os caminhos da institucionalidade democrática para resolver a situação.

É absolutamente urgente e imprescindível que o STF suspenda os efeitos da Lei 14.701/2023, ou que de pronto já declare sua flagrante inconstitucionalidade. A vigência desta lei é imoral e afronta a vida e o futuro dos povos indígenas. Os procedimentos administrativos de demarcação estão paralisados e todo o país está testemunhando uma escalada da violência armada contra os povos indígenas em seus territórios.

Fazendeiros, ruralistas e milicianos continuam assediando, intimidando e atacando comunidades indígenas, cercando-os e ateando fogo, impedindo a chegada de ajuda humanitária e atirando contra mulheres e crianças em ataques covardes, acobertados pela ineficiente ação do Estado, o que lhes garante absoluta impunidade. Não é possível desvincular a persistente violência contra os povos indígenas da vigência da Lei 14.701/2023 e da manutenção da falaciosa mesa de conciliação.

O STF tem nas suas mãos a possibilidade, ante a sua obrigação institucional, de declarar a inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023 e abrir um novo cenário que firme a atuação do Estado brasileiro para a garantia dos direitos dos povos indígenas. O ministro Gilmar Mendes tem a responsabilidade de apreciar os pedidos levados pelos indígenas nas ações de controle de constitucionalidade, das quais ele é o ministro relator.

Não pode abdicar dessa responsabilidade e não pode distanciar-se do já decidido pela Corte Suprema em setembro de 2023 no âmbito do Tema 1.031. Na ocasião, o próprio ministro Gilmar Mendes emitiu voto favorável aos direitos originários dos povos indígenas contemplados no artigo 231 da Constituição Federal de 1988 posicionando-se, consequentemente, pela inconstitucionalidade do marco temporal.

Tramitam ainda no STF dois pedidos de incidente de inconstitucionalidade, de relatoria do ministro Edson Fachin, e aguardam decisão os embargos de declaração do julgamento do Tema 1.031, que já estão aptos e disponíveis para serem pautados no plenário pelo presidente do Supremo. Todas estas ações possibilitam, processualmente, uma decisão imediata e urgente do STF pela inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023, o que resultaria na retomada dos procedimentos de demarcação de terras indígenas, obrigação constitucional da União.

Ainda, no entendimento do Cimi, há possibilidades concretas, administrativas e jurídicas, para que o governo federal avance de forma sistemática nos procedimentos administrativos de demarcação, inclusive durante a vigência da Lei 14.701/2023 e enquanto se aguarda pela declaração de sua definitiva inconstitucionalidade. Numerosos processos de demarcação em curso não são afetados pelo marco temporal e não cabe, de forma alguma e mesmo sob a vigência da lei, qualquer eventual retrocesso nas etapas já concluídas dos procedimentos administrativos de demarcação, uma vez que se trata de atos jurídicos perfeitos sobre um direito constitucionalmente declarado.

O momento atual requer determinação política e compromisso constitucional para avançar na garantia dos direitos dos povos indígenas e pôr fim à escalada de violência nos territórios. Os caminhos existem, estão abertos e são possíveis. A demora e inação colocaria o Estado brasileiro em situação de conivência com a violência contra os povos indígenas e em escancarado descumprimento de suas obrigações constitucionais e internacionais.

O Conselho Indigenista Missionário conclama a todas as instâncias do Estado e a toda a sociedade brasileira para somar esforços, assumir as responsabilidades e avançar, com determinação e urgência, sem curvar-se a interesses particulares, na defesa da vida, dos direitos e do futuro dos povos indígenas, que é o futuro de nosso país.

Brasília (DF), 29 de agosto de 2024

Conselho Indigenista Missionário – Cimi

 

Fonte: Terra de Direitos/Cimi

 

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