terça-feira, 3 de setembro de 2024

Gonzalo Vecina: ‘Viver é um negócio muito perigoso’

Riobaldo começa sua fala em Grande Sertão Veredas anunciando o perigo de viver. Por certo naquelas paragens, tinha muitas razoes para estar certo. Mas cada vez mais se pode afirmar que viver é perigoso. Onde estão os perigos?

O fato é que não se pode viver sem consumir e todo ato de consumo produz risco de adoecer e pior, para consumir, é necessário produzir e todo ato de produção gera risco a saúde do trabalhador e ao meio ambiente, o que afeta a todos.

Portanto se convive com o risco de ao consumir e produzir gerar danos a saúde. É um fato real. E como diminuir a probabilidade da ocorrência do dano, da doença?

É aqui que entra uma das mais importantes atividades de um sistema de saúde e que na maioria das vezes está oculta – a VIGILANCIA SANITARIA. São as atividades da vigilância sanitária que tem a função nas sociedades modernas de gerenciar o risco de adoecer ao consumir e produzir.

Todos os países têm um sistema que busca diminuir o risco sanitário de produzir e consumir, e não é de hoje. Com diferentes ações desde o início da vida em sociedade a vigilância sanitária ocorre. Basta lembrar das regras que os judeus seguem para se alimentar e que em seu conjunto são chamadas de kosher e estão intimamente ligadas a religião e que mais tarde foram adotadas também pelos muçulmanos com o nome halau. É a religião que comanda essas regras, mas realmente são regras higiênicas aprendidas ao longo de séculos e que com certeza pouparam muitas vidas.

Mas, hoje a ação de garantir que ao se alimentar, se tenha menos chance de adoecer é uma das mais importantes ações da vigilância sanitária. Mas não somente com alimentos – também com medicamentos, equipamentos médicos, cosméticos, material de limpeza, enfim tudo que consumimos e produzimos para poder viver melhor. E também com a prestação de serviços como os assistenciais e muitos outros que devem também ter o controle da vigilância sanitária.

Essa função da saúde pública repousa em cinco atributos:

•                                         1) Segurança – seja para o que for o produto ou serviço a ser consumido, este não pode produzir dano. Mas não existe nada isento de risco, portanto esse risco deve ser avaliado e confrontado com o próximo atributo,

•                                         2) Eficácia – que é a capacidade de produzir efeito e no caso o efeito é algo desejável e que se contrapõe a segurança. O alimento pode além de alimentar, engordar, intoxicar, produzir outros riscos. Esse conhecimento cria um conjunto de regras para garantir um consumo que equilibre a segurança com a eficácia. O risco com o efeito desejado. Existe o conhecimento que não existe eficácia sem risco, tudo que consumimos pode produzir dano, portanto deve-se buscar um equilíbrio,

•                                         3) Qualidade – este atributo se prende ao fato da necessidade de produzir e de que o produto produzido/consumido tenha os atributos que o tornam importante. Um medicamento deve ser igual ao que foi pesquisado em bancada, um procedimento deve ter resultados esperados, ou seja, produtos devem ter um PIC Padrão de Identidade e Qualidade conhecido e os serviços devem ter um POP Procedimento Operacional Padrão desenhado e seguido. Processos de produção de produtos e serviços não são contínuos, portanto garantir ambientes de produção que busquem a qualidade são tremendamente importantes e esta é sem dúvida uma das mais importantes funções da vigilância sanitária – a inspeção de boas práticas de produção, de boas práticas de pesquisa clínica, de boas práticas de armazenamento, de boas práticas de transporte, etc,

•                                         4) Acesso – se temos produtos seguros, eficazes e com qualidade, a sociedade e os cidadãos devem ter acesso a eles. Como construir acesso a esses produtos? No caso dos três outros atributos, embora outras áreas de atividade também concorram para a sua produção, caso da agricultura, das indústrias, aqui também o acesso tem a participação de muitas áreas da sociedade, mas a vigilância sanitária é uma dessas áreas e deve ser responsabilizada em parte pelo acesso. Ao conceder um registro para permitir a produção ou ao dar a autorização de funcionamento de uma fábrica, ou ao realizar uma inspeção de boas práticas de fabricação, a vigilância está garantindo acesso ao produto ou serviço. Certamente o acesso é uma construção transversal onde múltiplos setores operam, mas passa pela vigilância sanitária,

•                                         5) Geração de valor – este é um dos atributos menos entendidos no campo da vigilância sanitária. Aliás até há bem pouco tempo era desprezado, pois somente era visto como fonte de lucro e não na sua capacidade de produzir empregos e valor para a sociedade, não apenas através da venda de produtos – impacto econômico, mas também impacto sanitário, do uso no cuidado aos cidadãos. O fato é que este atributo tem muito espaço a ocupar na agenda das autoridades para que a vigilância possa cumprir suas atividades de maneira adequada. Um deles fundamental, diz respeito a verificação e estímulo das pesquisas clinicas. A estrutura da Anvisa, seu corpo funcional capacitado, sua condição de acompanhar eventos em todo o mundo, é fundamental para entregar segurança sanitária. Hoje a vigilância sanitária está diretamente envolvida com algo em torno de 25% do PIB do país.

Muitas vezes me perguntaram por que temos que ter uma Anvisa, se a Anvisa da Uniao Europeia ou a dos USA não é suficiente, já que são muito boas. A questão é mais complexa. O surgimento da EMA – Agencia Europeia do Medicamento, substituiu as ANVISAs dos países europeus graças a um acordo que transformou a EMA em sua representante do ponto de vista sanitário e comercial. Para dialogar tanto do ponto de vista da segurança como do comercio, o Brasil tem que ter uma agencia local identificada e respeitada. E hoje a Anvisa faz parte do seleto clube de agencias que certificam a segurança de todos seus produtos.

Aliás, esse papel de ente regulador do mercado é uma das atividades invisíveis da Anvisa – ela cria um mercado onde as exigências das condições em termos de segurança da pesquisa, da produção e da comercialização, são homogêneas e atingem todos os fabricantes e comerciantes. Isso cria um mercado regulado onde todos tem igual tratamento. E essa foi uma das grandes conquistadas da criação da agencia – um mercado com melhor qualidade. E no caso dos medicamentos com um controle de preços que tem garantido um preço mais adequado dos medicamentos a disposição da sociedade.

Mas recentemente se iniciou uma discussão sobre o atraso da agencia em expedir registros que permitem as fabricas entrar no mercado de medicamentos e isso tem prejudicado as indústrias. Sempre houve atraso em registrar produtos que são de interesse das indústrias, de medicamentos que já são oferecidos no mercado. E isso ocorre devido a incapacidade de analisar todas as solicitações da indústria, por falta de profissionais para analisar, mas essa falta de profissionais nunca impediu a agencia de rearrumar seus fluxos de forma a garantir que o que for prioritário seja analisado e em condições excepcionais que decisões sejam tomadas de maneira inteligente – por exemplo liberando medicamentos sem registro no país mas que foram analisados pela OMS/OPAS ou por organismos por elas validados.

Mas essas regras devem ser respeitadas. Alguns anos atrás, um ministro da saúde interessado em fazer negócios na saúde tentou forçar a agencia a permitir a importação de um fármaco sem o aval de nenhuma organização em uma negociata – a agencia e seu corpo de servidores reagiram e essa autoridade teve que recuar.

A regulação sanitária é um dos elementos que fazem parte do sistema de freios e contrapesos que buscam construir uma sociedade melhor.

Durante a pandemia a agencia não se apequenou, ao contrário analisou com a presteza exigida e com a observação do que acontecia no mundo para liberar as vacinas seguras e eficazes e não liberando vacinas que não apresentaram suas comprovações como a vacina de origem russa. De um lado enfrentou pressões do executivo federal e de outro do chamado Consorcio Nordeste – e escolheu seu papel constitucional – garantir a segurança sanitária das vacinas.

O Brasil e os brasileiros precisam entender mais sobre a importância da vigilância sanitária e como garantir que a Anvisa prossiga sua vital atividade para nosso sistema de saúde. E cuidar que ela não venha a se transformar em vítima dos políticos de plantão ou da porta giratória operada pelo congresso.

 

Fonte: CNN Brasil

 

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