Gonzalo
Vecina: ‘Viver é um negócio muito perigoso’
Riobaldo
começa sua fala em Grande Sertão Veredas anunciando o perigo de viver. Por
certo naquelas paragens, tinha muitas razoes para estar certo. Mas cada vez
mais se pode afirmar que viver é perigoso. Onde estão os perigos?
O
fato é que não se pode viver sem consumir e todo ato de consumo produz risco de
adoecer e pior, para consumir, é necessário produzir e todo ato de produção
gera risco a saúde do trabalhador e ao meio ambiente, o que afeta a todos.
Portanto
se convive com o risco de ao consumir e produzir gerar danos a saúde. É um fato
real. E como diminuir a probabilidade da ocorrência do dano, da doença?
É
aqui que entra uma das mais importantes atividades de um sistema de saúde e que
na maioria das vezes está oculta – a VIGILANCIA SANITARIA. São as atividades da
vigilância sanitária que tem a função nas sociedades modernas de gerenciar o
risco de adoecer ao consumir e produzir.
Todos
os países têm um sistema que busca diminuir o risco sanitário de produzir e
consumir, e não é de hoje. Com diferentes ações desde o início da vida em
sociedade a vigilância sanitária ocorre. Basta lembrar das regras que os judeus
seguem para se alimentar e que em seu conjunto são chamadas de kosher e estão
intimamente ligadas a religião e que mais tarde foram adotadas também pelos
muçulmanos com o nome halau. É a religião que comanda essas regras, mas
realmente são regras higiênicas aprendidas ao longo de séculos e que com
certeza pouparam muitas vidas.
Mas,
hoje a ação de garantir que ao se alimentar, se tenha menos chance de adoecer é
uma das mais importantes ações da vigilância sanitária. Mas não somente com
alimentos – também com medicamentos, equipamentos médicos, cosméticos, material
de limpeza, enfim tudo que consumimos e produzimos para poder viver melhor. E
também com a prestação de serviços como os assistenciais e muitos outros que
devem também ter o controle da vigilância sanitária.
Essa
função da saúde pública repousa em cinco atributos:
• 1)
Segurança – seja para o que for o produto ou serviço a ser consumido, este não
pode produzir dano. Mas não existe nada isento de risco, portanto esse risco
deve ser avaliado e confrontado com o próximo atributo,
• 2)
Eficácia – que é a capacidade de produzir efeito e no caso o efeito é algo
desejável e que se contrapõe a segurança. O alimento pode além de alimentar,
engordar, intoxicar, produzir outros riscos. Esse conhecimento cria um conjunto
de regras para garantir um consumo que equilibre a segurança com a eficácia. O
risco com o efeito desejado. Existe o conhecimento que não existe eficácia sem
risco, tudo que consumimos pode produzir dano, portanto deve-se buscar um
equilíbrio,
• 3)
Qualidade – este atributo se prende ao fato da necessidade de produzir e de que
o produto produzido/consumido tenha os atributos que o tornam importante. Um
medicamento deve ser igual ao que foi pesquisado em bancada, um procedimento
deve ter resultados esperados, ou seja, produtos devem ter um PIC Padrão de
Identidade e Qualidade conhecido e os serviços devem ter um POP Procedimento
Operacional Padrão desenhado e seguido. Processos de produção de produtos e
serviços não são contínuos, portanto garantir ambientes de produção que busquem
a qualidade são tremendamente importantes e esta é sem dúvida uma das mais
importantes funções da vigilância sanitária – a inspeção de boas práticas de
produção, de boas práticas de pesquisa clínica, de boas práticas de
armazenamento, de boas práticas de transporte, etc,
• 4)
Acesso – se temos produtos seguros, eficazes e com qualidade, a sociedade e os
cidadãos devem ter acesso a eles. Como construir acesso a esses produtos? No
caso dos três outros atributos, embora outras áreas de atividade também
concorram para a sua produção, caso da agricultura, das indústrias, aqui também
o acesso tem a participação de muitas áreas da sociedade, mas a vigilância
sanitária é uma dessas áreas e deve ser responsabilizada em parte pelo acesso.
Ao conceder um registro para permitir a produção ou ao dar a autorização de
funcionamento de uma fábrica, ou ao realizar uma inspeção de boas práticas de
fabricação, a vigilância está garantindo acesso ao produto ou serviço.
Certamente o acesso é uma construção transversal onde múltiplos setores operam,
mas passa pela vigilância sanitária,
• 5)
Geração de valor – este é um dos atributos menos entendidos no campo da
vigilância sanitária. Aliás até há bem pouco tempo era desprezado, pois somente
era visto como fonte de lucro e não na sua capacidade de produzir empregos e
valor para a sociedade, não apenas através da venda de produtos – impacto
econômico, mas também impacto sanitário, do uso no cuidado aos cidadãos. O fato
é que este atributo tem muito espaço a ocupar na agenda das autoridades para
que a vigilância possa cumprir suas atividades de maneira adequada. Um deles
fundamental, diz respeito a verificação e estímulo das pesquisas clinicas. A
estrutura da Anvisa, seu corpo funcional capacitado, sua condição de acompanhar
eventos em todo o mundo, é fundamental para entregar segurança sanitária. Hoje
a vigilância sanitária está diretamente envolvida com algo em torno de 25% do
PIB do país.
Muitas
vezes me perguntaram por que temos que ter uma Anvisa, se a Anvisa da Uniao
Europeia ou a dos USA não é suficiente, já que são muito boas. A questão é mais
complexa. O surgimento da EMA – Agencia Europeia do Medicamento, substituiu as
ANVISAs dos países europeus graças a um acordo que transformou a EMA em sua
representante do ponto de vista sanitário e comercial. Para dialogar tanto do
ponto de vista da segurança como do comercio, o Brasil tem que ter uma agencia
local identificada e respeitada. E hoje a Anvisa faz parte do seleto clube de
agencias que certificam a segurança de todos seus produtos.
Aliás,
esse papel de ente regulador do mercado é uma das atividades invisíveis da
Anvisa – ela cria um mercado onde as exigências das condições em termos de
segurança da pesquisa, da produção e da comercialização, são homogêneas e
atingem todos os fabricantes e comerciantes. Isso cria um mercado regulado onde
todos tem igual tratamento. E essa foi uma das grandes conquistadas da criação
da agencia – um mercado com melhor qualidade. E no caso dos medicamentos com um
controle de preços que tem garantido um preço mais adequado dos medicamentos a
disposição da sociedade.
Mas
recentemente se iniciou uma discussão sobre o atraso da agencia em expedir
registros que permitem as fabricas entrar no mercado de medicamentos e isso tem
prejudicado as indústrias. Sempre houve atraso em registrar produtos que são de
interesse das indústrias, de medicamentos que já são oferecidos no mercado. E
isso ocorre devido a incapacidade de analisar todas as solicitações da
indústria, por falta de profissionais para analisar, mas essa falta de
profissionais nunca impediu a agencia de rearrumar seus fluxos de forma a
garantir que o que for prioritário seja analisado e em condições excepcionais
que decisões sejam tomadas de maneira inteligente – por exemplo liberando
medicamentos sem registro no país mas que foram analisados pela OMS/OPAS ou por
organismos por elas validados.
Mas
essas regras devem ser respeitadas. Alguns anos atrás, um ministro da saúde
interessado em fazer negócios na saúde tentou forçar a agencia a permitir a
importação de um fármaco sem o aval de nenhuma organização em uma negociata – a
agencia e seu corpo de servidores reagiram e essa autoridade teve que recuar.
A
regulação sanitária é um dos elementos que fazem parte do sistema de freios e
contrapesos que buscam construir uma sociedade melhor.
Durante
a pandemia a agencia não se apequenou, ao contrário analisou com a presteza
exigida e com a observação do que acontecia no mundo para liberar as vacinas
seguras e eficazes e não liberando vacinas que não apresentaram suas
comprovações como a vacina de origem russa. De um lado enfrentou pressões do
executivo federal e de outro do chamado Consorcio Nordeste – e escolheu seu
papel constitucional – garantir a segurança sanitária das vacinas.
O
Brasil e os brasileiros precisam entender mais sobre a importância da
vigilância sanitária e como garantir que a Anvisa prossiga sua vital atividade
para nosso sistema de saúde. E cuidar que ela não venha a se transformar em vítima
dos políticos de plantão ou da porta giratória operada pelo congresso.
Fonte:
CNN Brasil
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