Candidatos violam regra eleitoral e usam
imagem de IA para criticar Lula sobre queimadas
O rosto do presidente
do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), misturado com uma floresta em
chamas. Na semana que o interior de São Paulo registrou recordes históricos de
queimadas, a imagem viralizou entre críticos do governo, que responsabilizam
Lula pelo fogo, sem apresentar provas.
A imagem, contudo, não
foi produzida de forma convencional. Ela foi gerada por programas que utilizam
inteligência artificial generativa (IA generativa) – um tipo de tecnologia que
cria conteúdos a partir de comandos em texto enviados por usuários.
O problema é que o uso
de imagens desse tipo por parte de candidatos às eleições neste ano, sem a
identificação de que foram produzidas usando inteligência artificial, é vetado
pela Justiça Eleitoral.
Em 2024, o Tribunal
Superior Eleitoral (TSE) atualizou as regras da propaganda, dispondo, pela
primeira vez, de dois pontos específicos para a regulação do uso de IA com fins
políticos. São eles: “conteúdo sintético multimídia gerado por meio de inteligência
artificial deve ser informado de modo explícito” e “os provedores de aplicação
[como redes sociais ou sites] serão responsáveis quando não promoverem a
indisponibilização imediata de conteúdos e contas em desacordo com as formas de
rotulagem de IA”.
No X, antigo Twitter,
a imagem circulou principalmente a partir do dia 23 de agosto – o dia que
registrou o recorde de focos de queimadas no estado. Só esse dia teve mais fogo
que o ano passado inteiro em São Paulo, a maior parte sendo iniciada em um
intervalo de apenas 90 minutos.
Na segunda-feira, dia
26 de agosto, o vereador de São Bernardo do Campo (SP), Glauco Braido, do MDB,
candidato à reeleição, postou a imagem. Apesar da resolução do TSE, não há o
rótulo no post indicando o uso de IA. Na publicação, consta apenas que é um material
de propaganda eleitoral pela coligação “São Bernardo Que Segue em Frente”
(PP/PSD/Solidariedade/PL/MDB/PSDB/Cidadania). O nome do candidato e o número da
legenda também aparecem na imagem, com a sobreposição “O GOVERNO DAS
QUEIMADAS!”.
Na legenda do post,
Braido, que se identifica como membro do movimento de direita Brasil Livre
(MBL), pergunta: “qual a sua opinião sobre a atuação de Lula e Marina Silva no
combate às queimadas?”. Em seguida, pede votos e divulga o seu número de urna.
A postagem teve quase mil curtidas e 20 comentários.
Quem também é do MBL e
veiculou a imagem (em forma de vídeo) no mesmo dia foi o candidato a vereador
de Americana (SP) Rafael Macris, do Progressistas. Assim como Braido, não há o
rótulo de que a imagem foi produzida usando IA, apenas a menção à legenda da
coligação “Americana no Topo de Novo” (Progressistas/União Brasil/Cidadania/
MDB/PSDB).
Na publicação, Macris,
que se apresenta como empresário do agronegócio, pergunta: “o que você vê nesse
vídeo?”. Nos comentários, um usuário responde “a cara do companheiro pegando
fogo”. Em outro, “a imagem e semelhança do próprio demônio L U L A !!!”. A
postagem teve 649 curtidas e 42 comentários.
Ele já havia postado a
imagem em outra ocasião, em 6 de março, antes mesmo do início do período de
propaganda eleitoral. Na publicação, que teve 143 comentários, Macris menciona
Braido e escreve: “Tá pegando fogo de tanto amor!”.
Na avaliação de
Fernando Neisser, advogado especialista em direito eleitoral, a falta do rótulo
nas postagens indicando o uso de IA configura irregularidade eleitoral. “É uma
conduta que pode levar a aplicação de uma multa ou cassação de candidatura, mas
não leva à cadeia, não é crime”, explica.
• A origem da imagem
A história da imagem
de Lula misturada às queimadas começa bem antes, há um ano. Ela surgiu em um
dos maiores fóruns brasileiros de discussão política no Reddit – uma plataforma
gratuita que funciona como um fórum, onde é possível criar grupos, fazer e responder
a postagens.
O Brasil Livre tem
mais de 218 mil membros e se apresenta como “o subreddit brasileiro mais livre
do reddit”. Nele, são comuns postagens de críticas ao Partido dos
Trabalhadores, a Lula e ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre
de Moraes.
Em 13 de agosto de
2023, aparece a primeira postagem no grupo. O responsável é um usuário ativo do
Brasil Livre, mas que hoje tem a conta suspensa pelo próprio Reddit. Ele
compartilhou quatro imagens produzidas a partir do rosto de Lula. Duas delas,
misturavam cenas de incêndios florestais ao rosto do presidente. As outras
duas, combinavam o rosto de Lula com imagens de favelas.
A postagem tinha a
instrução: “Compilação final pra vocês mandarem pras tias do Zap!”. Em um dos
comentários, o usuário explica como se deu a criação: “O processo é feito
utilizando Stable Diffusion + Control Net. Tem bastante material sobre no
Youtube e no Reddit”.
A Stable Diffusion é
um programa de código aberto criado pela empresa startup Stability AI, do
empresário de tecnologia Mohammad Emad Mostaque, do Reino Unido/Bangladesh. O
programa foi lançado em agosto de 2022, catapultando a empresa, cujo valor
chegou a ser estimado em US$ 1 bilhão.
O programa, contudo,
tem sido acusado de permitir que usuários customizem o código e o utilizem para
gerar imagens falsas realistas de pessoas nuas, os chamados nude deepfakes. Um
dos casos com maior repercussão recente foi o da cantora pop Taylor Swift, que
teve imagens falsas criadas a partir de IA. Imagens de políticos segurando
armas também têm sido geradas por usuários, que burlam as travas de segurança
do código original do programa.
A origem da imagem com
Lula já havia sido verificada pelo veículo de checagens Factchequeado, da
América Latina, em 2023.
• Uso irregular de IA já rendeu multa a
candidato
Como explica Neisser,
apesar da proibição do TSE, somente outros candidatos, partidos, coligações e
Ministério Público Eleitoral poderão solicitar que a Justiça Eleitoral avalie o
uso de imagens produzidas por IA que são compartilhadas sem o rótulo devido. A
mesma regra vale para outros tipos de publicação que são vedadas pela Justiça
Eleitoral, como conteúdos desinformativos no geral, ou o uso de chatbots para
intermediar a comunicação com eleitores.
O prazo é de duas
semanas para que a representação eleitoral analise as justificativas da parte
interessada e notifique os possíveis infratores, que podem apresentar suas
defesas. Em seguida, o juiz decide, podendo determinar a derrubada dos links e
posts pelas plataformas, cabendo recurso em um dia para ambas as partes – quem
solicitou a denúncia e o denunciado.
Em maio deste ano, o
prefeito de Guarulhos (SP), Gustavo Henric Costa, do Republicanos, candidato à
reeleição, foi multado pela Justiça Eleitoral em R$ 5 mil após publicação
criada com o uso de IA no Instagram. A Justiça entendeu que a postagem
configurava propaganda eleitoral antecipada contra o PT. A decisão do juiz
eleitoral Gilberto Azevedo de Moraes Costa, da 278ª zona eleitoral de
Guarulhos, destacou a irregularidade eleitoral no conteúdo, em que, segundo
ele, “a manipulação da imagem é evidente ante as falhas de imagem
características do uso desta ferramenta”.
O uso da IA nas
eleições tem sido analisado pelo Desinformante*, uma plataforma que reúne
pesquisadores em desinformação. A reportagem conversou com Tatiana Dourado,
pós-doutoranda pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia
Digital (INCT.DD) e o Democracia em Xeque. Segundo ela, essas publicações podem
potencializar a desinformação ao acionar sentidos como o humorístico.
“É na mistura do humor
com uma política radicalizada que políticos e contas extremistas ampliam o
público que desejam cooptar. Pensando do ponto de vista eleitoral, isso é
totalmente estratégico. Para que serve o humor nas eleições senão para
mobilizar?”, questiona.
No caso das imagens
produzidas por IA associando as queimadas ao governo federal, Dourado explica a
mobilização gerada na opinião pública a partir da ambiguidade sugerida pela
imagem. “Por isso que é um risco o TSE promover parcerias com agências de checagem
apenas nas eleições, porque o problema passa a ser naturalizado nos outros
períodos. É a partir da dúvida que a desinformação se manifesta e mina os
sistemas de justiça ou a própria imprensa. O uso da técnica de replicação em
massa da IA é justamente para romper com esse combate desinformativo das
instituições”, diz.
• Políticos entram na onda da IA para
criticar governo federal
Não são apenas
candidatos a vereadores que vêm veiculando imagens produzidas por IA associando
as queimadas ao governo federal. No dia 26 de agosto, o deputado federal José
Medeiros (PL-MT) publicou na sua conta pessoal do Instagram duas imagens
produzidas usando IA. Uma delas representa o mapa do Brasil em chamas, tomado
pela fumaça. A publicação tem 67 comentários, todos eles respondidos por
Medeiros com um emoji de fogo.
Na outra imagem, em
que aparece a sigla do MST tomada de chamas em meio a uma floresta, o deputado
escreve: “Só Deus na causa!”. O post tem 351 comentários e segue o mesmo modelo
de interação com os seguidores da outra publicação, mudando apenas o emoji na
resposta.
Essa mesma imagem foi
compartilhada também pelo deputado federal Zé do Trovão (PL-SC). Conforme
mostrou reportagem da Pública, deputados ruralistas usaram suas redes sociais
nesta semana para disparar notícias falsas acusando o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) de estar por trás dos incêndios
florestais.
Já no dia 28 de
agosto, a senadora Damares Alves (Republicanos-DF), publicou um vídeo produzido
a partir de IA. A publicação mescla manchetes jornalísticas atuais de veículos
como a Revista Oeste, Folha de S. Paulo, BNC e BBC com um vídeo de 2021 em que artistas
como Gilberto Gil e Daniela Mercury pediam para que se salvasse a Amazônia. Na
montagem os cantores aparecem envolvidos em fogo. Na legenda, Damares escreve:
“Recorde de queimadas. E imaginem se fosse no governo Bolsonaro.” Recebeu 1.847
comentários.
Fonte: Por Bruno
Fonseca, Danilo Queiroz, da Agência Pública
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