As lições que já deveríamos ter aprendido
com a histórica ascensão do fascismo
Pablo Marçal lançou
sua candidatura de última hora pelo pequeno PRTB, um partido de direita
popularesca que foi liderado pelo polêmico e folcório Levy Fidélix, o “homem do
aerotrem” – já falecido e substituído por dirigentes mais controversos ainda.
Hoje, ele sobe em todas as pesquisas, ameaçando o que seria uma disputa entre o
prefeito Ricardo Nunes (MDB) e Guilherme Boulos (PSOL).
Ainda que pareça uma
novidade, o plano de Marçal é uma roupagem ultramoderna de uma velha
estratégia. Já na década de 1910, o jornalista Benito Mussolini teve uma ideia
genial na Itália do pós-guerra: fazer a engenharia reversa dos
partidos socialistas para criar um partido de massas de direita, podendo assim competir
com a esquerda em eleições amplas – o que foi reproduzido várias vezes desde
então.
Para além das muitas,
prováveis justas denúncias contra Marçal, o fato é que ele virou um fenômeno
nessas eleições não porque o povo “não sabe” votar, mas por repetir a fórmula
de se colocar como o candidato mais radical da mudança – quando o seu real objetivo
é mudar tudo para que nada mude, a máxima de O Gattopardo,
clássico de Giuseppe di Lampedusa, que os fascistas repetiram, com êxito,
inúmeras vezes na história.
Marçal, o candidato
contra a ordem?
Ao aparecer no
primeiro debate televisivo, impetuoso, agressivo e eloquente, um militante
experimentado ou um intelectual progressista só poderiam notar o mau gosto, a
falta de educação e o desprezo pelos oponentes. Mas não é assim que aparece
para as massas: Marçal pareceu um vingador audacioso, algo irreverente e com
uma enorme sede de justiça e indignação.
A análise do primeiro
debate pelo instituto de pesquisas Quaest demonstrou
essa percepção positiva de Marçal no
primeiro debate. Isso também não deveria ser novidade para ninguém depois de
Jair Bolsonaro, a forma como ocorreu sua ascensão ao poder em 2018 e, ainda,
seus trágicos quatro anos no governo. Não só, a atitude de Marçal desconcertou
os adversários e fez suas bases militantes parecerem elitistas e deslocadas – e
esse era o plano.
“A questão é por que
Guilherme Boulos, justo o único candidato paulistano com uma trajetória
singular de luta por injustiças, parecia igual aos demais políticos?”
No dia seguinte,
militantes se dividiram entre aqueles que defendiam “não dar palco para Marçal”
– enquanto davam – e quem caia na velha arapuca de guerra cultural:
afirmar uma pauta de princípios bem no meio de diversas crises só mostra que a
extrema direita, na verdade, só queria gerar pânico moral em setores do eleitorado como idosos, religiosos entre
outros setores vulneráveis. O velho erro de lutar no terreno e da maneira que o
adversário planejou.
A demarcação que
Marçal estabeleceu no primeiro debate foi no tom e na performance, o que quebra
o “clima de contentes” e lhe fez parecer o candidato diferente, a voz
destoante. A questão é por que Guilherme Boulos, justo o único candidato
paulistano com uma trajetória singular de luta por injustiças, parecia igual
aos demais políticos? Simples, pelo engessamento e uma homogeneização trazida
pelo media training e os velhos esquemas padrão do marketing
político.
·
Boulos e os frutos de 2020
Em 2020, Guilherme
Boulos protagonizou uma das campanhas mais inventivas dos últimos
tempos no Brasil. Enfrentando na esquerda a
candidatura de Jilmar Tatto pelo PT, o que foi questionado pela própria base
petista, Boulos protagonizou a campanha, chefiada pelo veterano marqueteiro de esquerda Chico Malfitani, com inovações na comunicação, diálogo despojado e um clima
arejado.
Boulos terminou o
primeiro turno de 2020 à frente de Tatto, que teve menos votos do que a bancada do PT na disputa para a Câmara dos Vereadores. Era um cenário
complexo, em plena pandemia, com Bolsonaro no poder, Lula libertado mas sem
direitos políticos de volta, um arco de alianças modesto – e Boulos conseguiu
20% dos votos e chegou à etapa final da eleição contra Bruno Covas, o então
prefeito.
“Aquela campanha
também contribuiu para a virada do clima político na cidade, o que assegurou a
vitória de Lula em São Paulo em 2024.”
A campanha de Boulos
de 2020 gerou um enorme acúmulo de forças para o campo progressista, o que
serviu de impulso para ele se eleger deputado federal em 2022 mais votado de
São Paulo com mais de um milhão de votos.
Aquela campanha também contribuiu para a virada do clima político na cidade, o
que assegurou a vitória de Lula em São Paulo em 2024 – portanto, 2020 foi
uma derrota eleitoral mas que levou a uma vitória política dois anos depois.
Os outros anos, é
claro, foram duros. Bruno Covas, que seguia uma linha de centro à
centro-direita moderada, faleceu do câncer contra o qual lutava há alguns anos
e, em seu lugar, entrou Ricardo Nunes, um vice pouco conhecido, mas que antes
foi vereador – e esteve envolto em uma nuvem de negócios no mínimo duvidosos. Nunes
criou um amplo arco de apoio, mas governou sob a égide de um bolsonarismo soft.
O eleitorado
paulistano quer mudanças
Protegido pela mídia
corporativa, Nunes passou os últimos anos incólume, tendo o nome poupado e uma
cobertura que mais parecia um gerenciamento de crises profissional. O fato é
que os paulistanos não estavam felizes com o prefeito, embora durante anos, pesquisas
esconderam parte dessa insatisfação, sempre na margem da nota “regular” em
questionários bizantinos que não perguntavam, diretamente, sobre rejeição ou
aprovação.
Raras pesquisas
miravam o par rejeição e aprovação, mas estes mostravam já há meses que Nunes
estava longe de ser um prefeito em uma situação medíocre. O desejo, na
verdade, era de mudança. Certas
decisões comunicacionais, na verdade, são fruto de opções políticas e podem
levar a erros. Repetir, talvez, a fórmula que elegeu Fernando Haddad em 2012
ignora, talvez, que Boulos não é Haddad, nem mais de uma década atrás na
dinâmica das redes.
Acreditar na variável
de que o clima estava morno, levou a decisões burocráticas que conduziram a
campanha uma guerra de trincheira: cada um na sua, atirando com o que tem a
espera de um desfecho tático – no caso de Boulos, uma hipótese plausível de que
aumentando o conhecimento sobre o fato de que ele é o candidato apoiado por
Lula, ele poderia bater Nunes em um segundo turno.
“O que não se
esperava, e se calculou errado, é que poderia aparecer uma candidatura de
extrema direita fraudando uma posição “de ruptura” para hackear o espaço
político da direita, com sua linguagem e símbolos.”
A campanha de Boulos
renunciou a assumir uma ofensiva na condução da imaginação e da mudança,
preferindo fazer um jogo cauteloso – em um suposto clima de favoritismo. Com
Bolsonaro sendo obrigado a apoiar Ricardo Nunes, ficando quieto nos bastidores
para só entregar seu eleitorado sem fazer muito barulho, enquanto o atual
prefeito esperava receber, discretamente, os votos bolsonaristas sem herdar,
graças a isso, a rejeição de Bolsonaro.
O que não se esperava,
e se calculou errado, é que poderia aparecer uma candidatura de extrema direita
fraudando uma posição “de ruptura” para hackear o espaço político da direita,
com sua linguagem e símbolos – e que isso não avançaria sobre o bolsonarismo
envergonhado de Nunes. Ainda mais se essa proposta viesse com doses cavalares
de messianismo, promessas de mudança e propostas mirabolantes.
A ideia de rumar ao
centro, para parecer mais crível e competitivo, nem sempre funciona, sobretudo
se um adversário resolve puxar a polarização para um extremo – e consegue fazer
isso funcionar. Isso não serviu nem para reduzir a rejeição, nem expandir a
votação – que dependia menos adoção de um tom cordato e mais linguagem popular
para, por exemplo, apresentar que Boulos é o candidato de Lula.
O que deveríamos ter
aprendido com Bolsonaro?
Em 2018, entre um
clima de que seria impossível Bolsonaro vencer, e logo ele encontraria “seu
teto”, a campanha do PT, sem Lula, preso injustamente pouco antes, procurou
adotar um tom, e um programa, com uma moderação extrema. De um modo geral,
tanto a campanha de Haddad quanto a militância de esquerda variaram entre a
tentativa de resposta racional às loucuras de Bolsonaro ao escândalo, passando
pela denúncia.
É claro que o clima
era outro. Lula estava preso e havia um pânico moral enorme,
dirigido pela Lava Jato. Igualmente, Bolsonaro abusava do uso das redes
sociais, com disparos em massa no Whatsapp sem nenhum controle
ou intervenção da autoridade eleitoral, que não compreendia o que estava
acontecendo e deixou correr o jogo. Mas isso não diminuiu sua necessidade de
inventar fake news e criar um clima de pânico moral
específico, com episódios como a célebre mamadeira de piroca.
A reação foi entre
tratar isso como bobagem jocosa, denunciar a falta de coerência de Bolsonaro e
performar a racionalidade e os bons modos, como “contraste”. O outro, era uma
disputa de valores quando, precisamente, a campanha bolsonarista inventava boatos
alucinados sobre “ideologia de gênero”. A esquerda foi disputar na mesma
trincheira moral, fazendo uma disputa de valores com um eleitorado amedrontado.
Bolsonaro mobilizou a
“mudança”, enquanto os demais candidatos eram a “continuidade” e campanha de
Haddad escolheu cair nessa armadilha, em uma defesa abstrata da democracia que,
aos ouvidos do eleitor da época, soava como reproduzir mais do mesmo – e contradizia
o que foi a vitoriosa prática da esquerda brasileira na transição da ditadura à
democracia, que era justamente denunciar a normalidade criada
pelo sistema.
“A vitória de Lula
poderia ter sido mais ampla, e a adoção de uma frente ampla demais, talvez,
tenha diminuído o apelo à mudança – fazendo Bolsonaro parecer oposição, mesmo
que ele fosse o presidente.”
É evidente que, pelo
menos para militantes experientes, era fácil prever que desastre poderia ser um
governo Bolsonaro. Mas não era sobre isso. Era como seu discurso simples, a
performance que pregava contra o sistema, sua mobilização de símbolos e afetos,
além da construção de um inimigo claro, forneciam uma válvula de escape para as
massas – e reagir de forma arrogante a isso só aumentava o fosso em relação ao
povo.
Parte desses erros,
contudo, foram repetidos em 2022. A vitória de Lula poderia ter sido mais
ampla, e a adoção de uma frente ampla demais, talvez, tenha diminuído o apelo à
mudança – fazendo Bolsonaro parecer oposição, mesmo que ele fosse o presidente
– e tem seu peso no governo atual, que menos que gerir a ordem deveria buscar
mudá-la – e decisões de inelegibilidade de Bolsonaro tem fôlego curto.
O que fazer contra
Marçal?
Marçal é sobre
performance, não sobre conteúdo. Exige menos aderência e atenção, sem
depender da Justiça Eleitoral, e mais uma resposta para o eleitorado, apontando
claramente para mudanças reais, mobilizando e inspirando a base, abarcando a
indignação popular e propondo planos simples com slogans diretos: o Bolsa
Família não é um sucesso apenas pelo programa, mas pela marca.
Eleição não é um
episódio de Scooby-doo ou uma série policial na qual o vilão vai ser
desmascarado. E quem é o receptor da informação é o eleitorado, ele que precisa
ser convencido de qualquer coisa. Levando em consideração quem se disputa e em
que medida. As eleições paulistanas não mudaram muito dos anos 1980 para cá. A
esquerda tem uma base sólida de 30%, mas é uma grande parcela centrista que
define a eleição.
Venhamos e
convenhamos, esse grande campo liberal paulistano, normalmente, tende à
direita, mas vez ou outra ele pende – ou pode ser pendido – à
esquerda. São setores do eleitorado local que moram em distritos no entorno do
centro expandido, uma classe média baixa feita de pequenos e médios
empreendedores, que estão sujeitos a campanhas de pânico moral justamente
porque estão expostos às turbulências da vida na cidade.
Esse setor se inclinou
e votou à esquerda em cenários de crise, como a terra arrasada pós-ditadura ou
pós-malufismo – em termos municipais –, mas isso vale também para a ressaca aos
oito anos de governo FHC (2002) ou ao desastre Bolsonaro (2022) no plano
federal. Ele é um setor sensível à crítica política, embora
pragmática e, muitas vezes, amoral em termos denuncistas. Há um precedente
aqui, uma janela como naquelas ocasiões.
Sim, outros 30% do
eleitorado, ou um pouco mais, tende à direita em São Paulo. Mas sozinho esse
setor não decide uma eleição. Nunca decidiu. Possivelmente, não há muito o que
disputar nessa fatia do eleitorado. Embora seja possível abrir canais de diálogo
e evitar estardalhaços, é preciso gastar energia onde há votos realmente em
disputa – não fazer declarações que busquem agradar setores que não votarão
numa proposta progressista.
É preciso mapear
setores e regiões em disputa real e avançar sobre elas, sem
deixar de consolidar o voto em regiões que já poderiam estar mais mobilizadas –
assim como é necessária uma sinalização clara de mudança para a cidade. O
eleitor se moverá pelo Ele sim, não pela negativa – mas pode ser
vergado pelo medo, sobretudo para o mal, o que é possível em cenários nos quais
a proposta da esquerda não é de mudança.
“Em vários cenários da
história, seja na Itália no começo dos anos 1920 ou na Alemanha dos anos 1920,
quando a esquerda trocou um programa de mudança pela gestão da ordem, a
tendência é que a extrema direita avance eleitoralmente.”
O cenário atual é
bastante parecido ao de quatro anos atrás, embora o clima esteja mais à
direita, a direita radical não esteja rachada – em 2020, lembremos, havia Celso
Russomanno e Artur do Val rachando votos –, mas o governo atual está longe de
ter a mesma força que Covas – assim como há um desgaste com a sucessão de
prefeitos que se vieram na esteira da vitória de João Doria em 2016.
Em vários cenários da
história, seja na Itália no começo dos anos 1920 ou na Alemanha dos anos 1920,
quando a esquerda trocou um programa de mudança pela gestão, pura e simples, da
ordem, a tendência é que a extrema direita avance eleitoralmente, sobretudo em
momentos de crise e abalo social. Maior metrópole do país, São Paulo sintetiza
muitas dessas agonias e aspirações universais.
É evidente que isso
não se fará com radicalismo vazio e estridência. Mas é possível radicalizar sem
perder o calor, deixando para um candidato como Boulos fazer o que ele sabe de
melhor. Ternos e gravatas não lhe caem bem, e ele não pode ser apresentado como
o tecnocrata que ele, felizmente, não é e nunca foi. Sob uma suposta decisão
técnica, se faz uma opção política que pode não funcionar.
“Boulos é o único
candidato que corresponde ao desejo de transformação em São Paulo e pode vencer
performando isso – a esquerda francesa fez isso recentemente e colheu frutos.”
Eleições municipais
têm sua dimensão própria no Brasil, mas o que se passa em grandes capitais tem
seu peso. Guilherme Boulos tem uma oportunidade de ouro em 2024, e o Brasil
precisa, pode e merece dar um passo além que nos afaste do bolsonarismo e gere
um projeto para o futuro. Aderir à normalidade, como o próprio governo federal
por vezes faz, na verdade ajuda o bolsonarismo.
Como a derrota
vitoriosa de 2020 ensina, o que mais importa é o processo político, pois aquele
evento abriu a janela para uma série de vitórias posteriores. É melhor sofrer
uma boa derrota do que ter uma má vitória, muito embora o objetivo deva ser
sempre vencer – mas há sempre a possibilidade infernal da má derrota,
o que é o pior dos mundos, e já vimos isso ocorrer, infelizmente, há pouco
tempo com Marcelo Freixo no Rio de Janeiro.
É preciso buscar
vencer, mas com a mudança à frente – e renunciar a ela, sobretudo quando se
trata das grandes lideranças da esquerda, tem um peso gravíssimo. Boulos é o
único candidato que corresponde ao desejo de transformação em São Paulo e pode
vencer performando isso – a esquerda francesa fez isso recentemente e colheu
frutos. A história, camaradas, ensina – e o que ela não faz é perdoar.
Fonte: Por Hugo
Albuquerque, em Jacobin Brasil
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